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4 ELENA E A PÉROLA

4.2 O ritual de retorno

Elena é um filme que nos impele a vê-lo muitas vezes. Há sempre uma coisa sobre a qual não se consegue apreender, ainda que o filme não deixe o espectador em redemoinho. Mesmo depois da primeira audição, o filme é capaz de surpreender-nos. Senão por alguns artifícios que fazem parte do habitus do documentarista de si, como comentamos no capítulo anterior.

B u u (2004) z c m u p m qu : “ habitus é a p ç p p qu é p u ” E B u u sintetiza o grifo de algumas partes desse texto. O habitus do documentarista não é o

habitus de Salles ou de Costa apenas, mas de uma parte considerável de

documentaristas de filmes em primeira pessoa. Isso quer dizer que, mesmo decorridos tantos anos entre um filme e outro, o modo como o sujeito opera sua entrada no bem cultural que gera, carrega mais similaridades que diferenças. Os

filmes, em seus extremos, são mais parecidos que diferentes. Os traços que os unem têm a forma de elos. Suas lógicas são circulares, ao voltarem-se para dentro, percebem-se em contato com o exterior, como na mítica imagem de ouroboros72.

Uma construção que atravessa o filme todo é a ideia de que a personagem central – Petra –, retorna para o interior de sua própria história a fim de investigar seus laços mais profundos com a irmã e, por conseguinte, com sua família. O filme desfila em vários momentos as passagens onde a casa da família é mostrada, tanto no Brasil, como em Nova Iorque. Ao tomar a decisão de retornar para onde sua irmã morreu, é como se anunciasse um chamado pelo retorno. A realizadora confessa ter levado anos entre decidir fazer o filme e terminá-lo, pois que vivia perseguida pela ideia de um dia buscar saber mais sobre sua irmã. A imaginação a levava a mitificar o modo profundamente melancólico com o qual as coisas haviam sido processadas em sua cabeça a partir da supressão da irmã. Os p c m c m “ m m u p b ch p p p qu ” ( A BELL, 2007, p 68), c m u J ph Campbell em Herói de mil faces, que ainda complementa:

O fio de Ariadne trouxe Teseu de volta, com segurança, da aventura do labirinto. É este o poder orientador que permeia a obra de Dante, representado nas figuras femininas de Beatriz e da Virgem; ele aparece no Fausto de Goethe, sucessivamente, como Gretchen, Helena de Tróia e a V m” ( A BELL, p c , p 76)

Pensei em abrir esse diálogo com o referido autor, por compreender que o “habitus ” m m p m p , m h mitologia, pode ser pensado como prática recorrente nestes filmes que nos servem de objetos de análise. Aqui na formulação da tese, já havíamos pensado no retorno à casa e à família com Santiago, e vemos em Elena a reprodução uma história que a faz aproximar-se do filme de Salles. A tipificação desse habitus é, na ótica de Campbell (2007), uma questão universal, não particular. Pois que, segundo explica, em sociedades tradicionais estudadas, como nos polinésios, ocorre o apelo entre seus membros, para que as narrações considerem suas h p “ A b

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A Ouroboros ou Oroboro é a imagem de uma criatura mitológica, uma serpente que engole a própria cauda formando um círculo e que simboliza o ciclo da vida, o infinito, a mudança, o tempo, a evolução, a fecundação, o nascimento, a morte, a ressurreição, a criação, a destruição, a renovação. Muitas vezes, esse símbolo antigo está associado à criação do Universo. Fonte: https://www.dicionariodesimbolos.com.br/ouroboros/

do ser é a base do nosso ser, e, quando simplesmente nos voltamos para fora, vemos todos esses pequenos problemas, aqui e ali. Mas, quando olhamos para , m qu m ” ( A BELL, p c , p 41)

Em um tempo em que não se buscam mais os mitos salvadores, nem luzes no céu que te salvem do perigo, ou uma mão forte que lhe tirará da areia movediça, lhe sobra o presente, nada desvanecedor, cheio de falhas e lacunas, para que sejam corrigidas. Quem, senão eu, posso ocupar-me de cuidar de mim?

Desprovido do dedo que lhe indica o caminho, ou das histórias que lhe ensinem sobre a metamorfose da lagarta em borboleta, o indivíduo diante de si, sofrendo da angústia e das dores do sistema nervoso, muitas vezes causadas pela hiper velocidade do mundo contemporâneo, passa a ser exigido em governar-se a si mesmo. Ao instalar-se em si, na consciência de seus atos e nas consequências que estes podem ter, eles partem para busca de autonomizarem- “ m , documentário atende ao desejo individualista de ser mais participativo e autônomo ( )” (CAMPBELL, 2007, p. 147).

Relembrando a velha máxima de Bourdieu (2012) em O poder simbólico, “ c qu bj c m qu ã ã um c ju ções de qu c u p p ” (BO R IE , p c , p 27), cabe pensar aqui que o gesto reproduzido por pelo menos dois documentaristas de si pode contar para que se estabeleçam relações entre muitos mais, no interior do campo ao qual pertencem esses realizadores. Não queremos aqui escorregar em situações indesejáveis como as de universalizar um ou outro caso particular, por isso, procuramos proceder, por analogia, pensar relacionalmente estes temas aqui levantados. Aqui torna-se importante lembrar que a feitura dessas obras documentais deixou de ter motivação meramente individual, passando a categorizar- se como uma prática de um campo.

A recorrência ao rito do retorno no campo documental nos trouxe aos teóricos do mito, especialmente a Campbell (op. cit.). Algumas frases desse autor se adequam ao que aqui desenvolvemos. Uma em especial poderia refletir com justeza o filme analisado:

“ m c qu m é qu , u b m , p voz da salvação. O momento crucial é aquele em que a verdadeira mensagem de transformação está prestes a surgir. No momento mais

mb u uz” ( A BELL, 1990, p 41)

Segundo argumenta o autor, na história dos mitos, sempre ocorre essa força irrefreável que leva alguém a um objetivo, cuja direção era desconhecida. Esse lugar a ser alcançado tanto pode ser o útero ou o Paraíso. O útero tem a imagem a ser reconhecida do passado inconsciente e o Paraíso, um desconhecido futuro almejado. Penso que em Elena, sua estrutura nos favorece pensar que ambos podem ter sido buscados, visto que ao visitar o passado para onde retorna, ela busca ganhar liberdade para viver o que vem adiante, abrindo novas matizes para a m m A p m “é j c h c , mp ã de que m u” A , c p m cump -se o rito de p m “p um c m mb z m m mu ú , u b ”, z mpb ( p c , p 91)

5 OS DIAS COM ELE

Como já percebemos antes, a cisão entre o público e o privado permite um conhecimento positivo sobre a realidade social, vidas que cabem na bagagem dos documentários de si. E os ventos que sopram na direção do percurso documental se mostram integrados à paisagem dos filmes pessoais. Ventos renovados nos trazem mais e mais experiências para as águas dessa arte, estas que adentram a segunda década do novo século em assobio.

Se reconhecemos que entre os filmes Santiago (1992) e Elena (2012) há semelhanças profundas no que diz respeito ao modo como como ambos concebem a entrada do indivíduo documentarista no interior de suas próprias histórias, certamente poderemos ajustar nesse espaço de semelhança um lugar para Os dias

com ele, da cineasta Maria Clara Escobar (2014). Este documentário revela-se

literalmente como uma viagem ao interior de uma história da relação entre pai personagem e filha cineasta. Distanciando-se da poesia buscada em Elena, Os dias

com ele é um filme baseado na diegese da imagem falada, ou seja, no discurso de

um personagem em contato constante com a câmera no tripé da realizadora, de quem é pai, por alguns dias, como bem diz o título. Apartados, um do outro, desde a infância dela, o filme os faz reencontrar a fim de resgatar a memória parental. Mas, é mais, muito mais que isso.

Existem sujeitos que explicam suas obras, como há obras que revelam seus autores. No caso de Os dias com ele, o sujeito que filma se exterioriza, se revela também na sua representação. Nos dois sentidos, a tela nos retroalimenta de signos e nos bombardeia de questionamentos sobre a relação pai e filha. De um lado está a filha, agente do encontro tardio com o passado e o presente do pai. E do outro, está o pai filmado a se questionar sobre o filme que está sendo feito, desconfiado sobre os métodos do documentário. Uma dualidade nos é dada, nos faz trocar de lugar, aqui e ali.

Começa uma fala com microfonia73, literal e significante. As vozes em cena são destoantes, do começo ao fim. Desde o começo a câmera é estanque,

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Microfonia ocorre quando um som captado pelo microfone retorna para o mesmo, causando um desconforto para o ouvido. Se não houver o distanciamento das fontes sonoras, a microfonia perdurará indefinidamente.