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A Catástrofe, de Eça de Queirós: mote e fragmento de um jogo

E todavia parecia ter chegado o dia terrível em que podiam desaparecer da Europa as pequenas nacionalidades!...

(QUEIRÓS, 1966, p. 228)

Para melhor explicitar o jogo narrativo construído por Mário Cláudio em As Batalhas

do Caia, primeiramente, mencionaremos as cartas que Eça trocou com seu grande amigo,

Ramalho Ortigão, sobre a ideia de um livro que pretendia chocar o país, pois que mexia com os brios históricos dos portugueses e trazia à tona a ameaça de uma Espanha invasora, o que fazia parte de uma memória histórica secular. Na carta datada de Newcastle, 10 de novembro de 1878, impregnada de certa ironia mordaz, percebemos que, ao imaginar tal invasão, Eça pretendia, mais uma vez, “exercitar sua crítica em relação à sociedade portuguesa da época” (CALVÃO, 1998, p. 7):

Concebi o livro, uma tarde, em casa de uma senhora, estando só com ela; ela tocava ao piano a gavotte favorita de Marie Antoinette - e eu, ao pé do lume acariciava um cão. De repente, sem motivo, sem provocação - lembrou-me, ou antes flamejou-me, através da ideia todo esse livro tal qual o descrevo: singular, não? Fiquei aterrado: supus ser um bom pressentimento, ou uma visão. Depois a minha segunda exclamação mental foi esta: - Que escândalo

no País! Você conhece-me e está daí a ver que me despedi da senhora, e vim para casa lançar o esboço do escândalo para o País. E simplesmente o que eu quero fazer é dar um grande choque eléctrico ao enorme porco adormecido (refiro-me à Pátria). Você dirá: - Qual choque! Oh, ingénuo! O porco dorme: podes-lhe dar quantos choques quiseres, com livros, que o porco há-de dormir. O destino mantém-no na sonolência, e murmura-lhe: Dorme, dorme, meu porco! Perfeitamente: mas eu estou-lhe a dizer o que pretendo fazer - e não o que o País fará: naturalmente, continuará a dormir: veremos. (QUEIRÓS, 2000, p. 128)

Na mesma carta, ele menciona ainda sua intenção de que Ramalho intermediasse junto a Andrade Corvo, então Ministro dos Negócios Estrangeiros, a publicação do romance, esclarecendo: “e aí vai ma pensée intime – é que a ideia publicada ou inédita é um capital; esse capital tenho direito a ele: que me venha do Chardron13 (ou do público, melhor) pela publicação, ou que me venha do Governo pela proibição.” (QUEIRÓS, 2000, p. 130). Em outra carta ao amigo, datada de 28 de novembro de 1878, percebemos que Eça se defende com certa mágoa da reposta de Ramalho, que teria recusado seu pedido com veemência, acusando-o, inclusive, de uma chantage:

Ora a Batalha do Caia, sendo a narração de um suposto fato histórico, não pode ser considerada uma difamação, nem ser brandida em ameaça como tal à face de um ministro: V. mesmo não pode dizer-me em consciência que um tal livro constitua uma difamação: logo para ser chantage falta-lhe o primeiro elemento. (QUEIRÓS, 2000, p. 131)

O escritor, entretanto, não concretizaria seu projeto, nem tampouco, obteria qualquer vantagem financeira. Mas, por que, afinal, um romance baseado num suposto fato histórico poderia trazer tão catastróficas consequências? Eça esclarece em sua carta que “o livro (sendo útil como um meio de mostrar ao país as consequências de prolongar uma tão horrorosa condição de abaixamento) – é, por um lado inoportuno, por outro um ataque de folha em folha à vizinha Espanha: e serve portanto apenas para criar irritação.” (ibid., p. 130). Trazendo a reflexão sobre a situação de inércia da Pátria, o que sempre o incomodou, o escritor retoma ainda o tema da unificação ibérica, assunto em voga antes mesmo da Geração de 70 (FIGUEIREDO, 2007, p. 261). Não acreditamos, porém, que fosse este o foco de Eça, mesmo que a questão também seja tratada em outros textos queirosianos, tais como, A Capital (1925),

Os Maias (1888) e as crônicas conhecidas como Distrito de Évora (1867), mas, sim, uma

necessidade crítica em relação à política portuguesa, como também, “porque a própria colectividade se deixou amodorrar e cair no cepticismo, no desdém pelas ideias, na

indiferença ante a novidade, em vez de se exercitar, pelo trabalho, pela crença e pela força da alma, em criar um país forte, digno, respeitado, industrioso, inteligente e culto.” (MEDINA, 1980, p. 32).

Em 1925, dois manuscritos - escritos a lápis e sem correção – “numa inspiração vertiginosa” (QUEIRÓS, 1966, p. 5), O Conde D’Abranhos e A Catástrofe, foram reunidos e publicados pelo filho mais velho de Eça de Queirós - primeiro editor dos inéditos do pai. Na introdução deste livro, ele fala sobre a importância dos manuscritos pelo que eles apresentam de espontâneo e inesperado, mesmo que tendo sido apenas esboçados pelo autor, sem as já conhecidas revisões que Eça fazia com rigor em suas obras: “e o papel, todo aproveitado, sem aquela larga margem branca que meu pai costumava deixar nos seus manuscritos, para as emendas futuras, dá bem a impressão de apontamento rápido, de coisa provisória, incompleta, de rascunho.” (ibid., p. 6). À novela bem-humorada de O Conde D’Abranhos, encontrada junto aos papéis de Ramalho Ortigão, uniu-se um pequeno conto de tom profético, supostamente esquecido no fundo de uma gaveta, e que seria “o primeiro pensamento de um romance estranho que devia ter por título A Batalha do Caia” (ibid., p. 18) – livro cuja ideia é relatada nas cartas já mencionadas que Eça trocou com Ramalho -, e que tomou forma quando o escritor se encontrava no exercício de sua função de cônsul na Inglaterra, em 1878. Seu filho acrescenta que o conto seria pouco mais do que um plano inicial do livro, amplificado. As folhas manuscritas14 continham a súmula de um romance que narrava a devastadora e humilhante ocupação de Portugal por uma potência estrangeira, que não é nomeada, a não ser como “o inimigo”, e que logo deduziremos, pelas veladas referências, se tratar da Espanha. O conto terá um narrador também não nomeado, que mora defronte do Arsenal, na esquina do largo do Pelourinho. De lá, era possível avistar, a cada entreabrir da janela, a sentinela estrangeira: “Cada passada que ela dá com a sua dura sola, cai-me com um eco lúgubre na alma e no seu monótono passeio, de guarita a guarita, dá-me a sensação de que nunca deixará de haver, sobre a terra portuguesa, uma sentinela estrangeira.” (ibid., p. 226).

A primeira parte do texto é dominada pelo pessimismo. Fala de uma atmosfera intolerável que circula nas praças e casas e “deposita na alma uma tristeza contínua, obsecante.” (ibid., p. 224). Fala também da sentinela inimiga que exprime a superioridade de tipo e raça em contraponto à sonolência lúgubre, à falta de decisão, à indiferença cínica, ao relaxamento da vontade do soldado português, numa metáfora que se estenderia a todo o País,

14 Os manuscritos foram recolhidos por Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro (1989, p. 207-208), sob a indicação “Manuscrito número 232”.

como causa manifesta da catastrófica invasão: “E nas mulheres, nos homens, havia como que um abatimento invencível, na aceitação muda da derrota futura, na passividade inerte das almas fracas...” (QUEIRÓS, 1966, p. 229). Haverá um salto no tempo - não explicado pelo narrador - e, um dia, apesar da permanência da invasão estrangeira e de todo o derrotismo, Lisboa ressuscitará: “Esta cidade, hoje, parece outra. Já não é aquela multidão abatida e fúnebre, apinhada no Rossio, nas vésperas da catástrofe. Hoje, vê-se nas atitudes, nos modos, uma decisão.” (ibid., p. 239). Segundo Maria Filomena Mónica, “era assim que Eça gostaria de ter visto a capital reagir.” (2001, p. 360)

Entretanto, o conto mais emociona do que provoca o desejado escândalo, provavelmente guardado para o romance que não vingou. Em A Catástrofe, embora se evidencie a condição de subalternidade portuguesa no contexto de uma Europa pós-industrial e francamente capitalista, o final “clama por um tom esperançoso, ao apontar o patriotismo como a salvação nacional, valorizando tudo aquilo que tradicionalmente representaria a pátria.” (FIGUEIREDO, 2007, p. 262). Essa esperança será representada pela nova geração, através da qual, o escritor parece expurgar os pecados dos seus contemporâneos:

E acostumo-os [aos filhos] a amar a Pátria, em vez de a desprezarem, como nós fizemos outrora. Como me lembro! Íamos para os cafés, para o Grémio, traçar a perna e, entre duas fumaças, dizer indolentemente: - Isto é uma choldra! Isto está perdido! Isto está aqui, está nas mãos dos outros!...Em lugar de nos esforçarmos por salvar “isto”, pedíamos mais conhaque e partíamos para o lupanar. Ah! Geração cobarde, foste bem castigada!...Mas agora esta geração nova é doutra gente. Esta já não diz que “isto” está perdido: cala-se e espera, se não está animada, está concentrada...(QUEIRÓS, 1966, p. 240)

Cabe ressaltar que existem muitas discussões sobre a escrita de A Catástrofe. Mesmo que Guerra da Cal entenda que o manuscrito foi totalmente escrito por Eça (MÓNICA, 2001, p. 361), acreditamos que a publicação póstuma possa conter certa modalização do discurso original pelo seu editor15. Tais suspeitas derivam das diferenças entre a escrita do conto e as

15 Referência aos manuscritos de Eça publicados postumamente, tais como, A Capital, O Conde de Abranhos,

Alves & Cia, como também, A Catástrofe: “Os equívocos que afectaram a publicação dos manuscritos inéditos

deveram-se, forçoso é dizê-lo, em parte considerável aos próprios herdeiros do romancista, cuja responsabilidade não é menor pelo facto de tais equívocos terem sido adornados por uma atitude de prudência preambular. Evoque-se a este propósito a carta de José Maria [...]: nela, o filho do escritor, anunciando a decisão de publicar inéditos, chama a atenção, em termos que nos parecem deliberadamente ambíguos, para a precaridade dos manuscritos a editar. [...] José Maria acentua com especial ênfase, no caso d’O Conde d’Abranhos e do conto A

Catástrofe que o acompanha, a sua condição primordial e textualmente muito precária. [...].” Para Carlos Reis,

intrigantemente, “as dificuldades de leitura que o manuscrito apresentava, as lacunas que nele se verificavam, nada fez recuar o editor.”(REIS, Carlos; MILHEIRO, Maria do Rosário, 1989, pp. 33-37)

marcas estilísticas já conhecidas do autor: “Acostumados à ironia, à virulência, ao pessimismo do escritor, estranhamos a forma, poderíamos dizer, algo simplória, com que se propõe a resolução dos conflitos em A Catástrofe.” (CALVÃO, 1998, p. 1).

Mesmo em sua simplicidade dentro do contexto da reconhecida escrita de Eça de Queirós, serviu o pequeno texto de mote para um romance maior, não por acaso intitulado As

Batalhas do Caia. Em sua narrativa, Mário Cláudio retoma as cartas de Eça e fatos de sua

vida, mas, fundamentalmente, recupera palavras, personagens, cenários e situações criadas pelo escritor naquele conto publicado postumamente. Antes de nos perguntarmos sobre o que teria levado o escritor contemporâneo a retomar o malogrado projeto do escritor oitocentista, destacamos sua declaração:

Um dia, tendo regressado das bolanhas da Guiné, deitado num divã de Londres, coberto por um daqueles panos do Paquistão que se compravam nas lojas de King's Road, folheava o rascunho, chamado A Catástrofe, do projectado romance, jamais concluído, mas que acompanhara o escritor ao longo da sua existência, e ao qual conferira ele o título provisório de A

Batalha do Caia. Fosse por efeito do denominado stress de guerra, fosse por

outros e mais especiosos motivos, chorei como nunca chorara diante de um papel impresso, e jurei tomar, se a fortuna a tanto me ajudasse, o relato do dito plano de ficção, coisa que acabaria por vir a concretizar tant bien que mal, e engendrei uma história verossímil, é claro que baptizada de As

Batalhas do Caia. (CLÁUDIO, 2000, pp. 9-10)

Já em uma entrevista anterior, logo após a publicação de seu livro, Mário Cláudio revelara que as lágrimas que havia derramado diante do texto de A Catástrofe não eram, de forma alguma, lágrimas patrióticas, mas sim: “era o sentir que o País estava ainda em estado de invasão. Invasão da hipocrisia, da maldade, da mesquinhez dos políticos” (CLÁUDIO, 1996, p. 15), numa referência ao estado de agonia em que Portugal ainda permanecia, o que, em sua opinião, já se desenhava desde Alcácer-Quibir, segundo declarou ao Jornal de Letras,

Artes e Ideias. Com esse sentimento, a esperança que permeia as últimas linhas do conto de

Eça se ausentará da narrativa pretensamente concretizada no romance de Mário Cláudio, apontando para uma atualização do pensamento do escritor oitocentista.