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O pintarem bem os dados, ou as cartas, não está na mão do jogador, mas se ele é sábio na arte, está na sua mão o usar bem do jogo.

(António Vieira) 23

Como já evidenciamos, a obra de arte barroca trouxe um novo exercício de contemplação aos olhos acostumados a uma beleza clássica de formas definidas e inalteráveis. Seu volume ganhou contornos de profundidade cambiantes entre luz e sombra, desvelando a cada direção do olhar uma nova face. Da mesma forma que nas artes plásticas, na música e na arquitetura, também na criação literária encontramos uma mesma expressão de multivocidade e de diferentes direções de leitura. Segundo Ávila:

A linguagem barroca, quer a plástica ou a literária, na sua urgência comunicativa ou no estímulo puro à flexibilidade das estruturas, viria colocar-se sob o primado de três elementos fundamentais: o lúdico, a ênfase visual e o persuasório. E esses três elementos, convergindo na feição característica do estilo artístico, [...] acabariam mudando não só as regras do modo de formar do artista, porém mais significativamente as regras do ver e do sentir do próprio homem do período. O barroco já não representará então apenas um estilo artístico, mas uma sistematização de gosto que se reflete

em todo um estilo de vida, um estilo portanto global de cultura e de época, para cuja síntese o lúdico poderá, sem o risco da especiosidade, ser tomado como categoria crítica. (ÁVILA, 1980, p. 22, grifos do autor)

Pensaremos então sobre o impulso para o jogo inerente à cultura humana, enquanto fato da fenomenologia do espírito humano, e que é peça-chave em nossa existência. Ávila relata que, para Schiller, “o incitamento ao jogo está na vida real, mas a razão, ao formar o seu ideal de beleza, dá forma também ao ideal do impulso lúdico”, ao que Benedito Nunes acrescenta que este deve ter sempre presente o homem, “pois para tudo sintetizarmos – assevera ele -, o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra e somente é homem pleno quando joga.” (NUNES, 1966, p. 79 apud ÁVILA, 1980, p. 24). Livre da suspeição que pairava sobre os jogos criativos, o artista moderno impõe a si próprio uma liberdade de criação permanente, submetendo as novas representações e transfigurações do real a um contínuo processo de questionamento.

Segundo relata Ávila, Johan Huizinga, em seu clássico ensaio de antropologia cultural24, aprofunda a análise do fenômeno do jogo, revelando que a imagem do homo ludens estaria sempre presente, na sua fatalidade metafísica e no seu reflexo, em toda a práxis, abrangendo, inclusive, o sistema de relações sancionado pelas sociedades humanas, em suas diferentes individualidades, mediante o que ele denominou “pacto lúdico”, ou seja, “a confluência natural e tácita, no ser social, dos impulsos individuais para o jogo.” (apud ÁVILA, 1980, p. 26). Ávila ressalta que não se trata aqui do jogo-entretenimento ou do jogo- comprazimento, mas de uma impulsão vital cada vez mais complexa que chega ao nível simbólico ou criativo. Tal impulsão vital ganha contornos especiais na época barroca:

O pacto lúdico, na sua natureza de epifenômeno de abrangência social, isto é, de cláusula estipulada e aceita das relações entre os homens, poderá explicar, assim, muito daquele mundo de invenção e fantasia criadora, daquele estilo peculiaríssimo de vida que foi o barroco. (ÁVILA, 1980, p. 27, grifos do autor)

Buscando concretizar o ideal de conivência lúdica com o receptor, seja ele um leitor, audiente ou contemplador da obra de arte, ou melhor, permitindo que a expectativa do fruidor se abra a novas possibilidades receptivas e que este alcance o estado de estesia, o artista mobilizará toda a inventividade e técnica, no sentido de intensificar a dimensão lúdica já inerente ao objeto artístico. De acordo ainda com a lição de Huizinga, as formas do Barroco,

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mesmo representando o sagrado, continuam sendo formas deliberadamente estéticas: “A arte é assimilada de tal maneira pelo sistema, na sua organização religiosista e absolutista, que termina por adquirir nele uma função de estrutura e não apenas decorativa, mágica ou de fantasia.” (ÁVILA, 1980, p. 37). A vida barroca se exprimirá como êxtase festivo e agonicidade existencial, a um só nível, sempre “através de formas eminentemente artísticas, em cuja tessitura o jogo será tanto o móvel das virtualidades criativas, quanto o veículo liberador de potencialidades sociais reprimidas.” (ibid.). Sempre que se sentir pressionado por forças de conjuntura ideológica e social, o artista estará fatalmente tentado a uma espécie de rebelião através do jogo. Foi o que aconteceu no Barroco que evidenciou essa vertigem do lúdico, que pode ser considerada hoje, como assinalou Umberto Eco, como uma antecipação da obra de arte aberta. No Barroco, “vontade de arte” e “impulso lúdico” confluem, num mesmo incitamento criador, em toda a riqueza e diversidade de suas manifestações, para a concretização do que Ávila denomina “uma grande e vital vontade estética de jogo” (1980, p. 51, grifos do autor). Ele esclarece que:

A subjetividade do homem barroco, rechaçada – como já vimos – em seu projeto de exteriorização pelas forças coercitivas da historicidade, refllui sobre si mesma e, na tentativa de encontrar qualquer modo de plenitude ainda que numa dimensão de interioridade, acelera a sua inteira disponibilidade de imaginação, liberando-se afinal em formas criativas impregnadas de jogo e fantasia. (ÁVILA, 1980, p. 51)

Na contemporaneidade percebemos uma mesma “vontade de jogo” expressa através da arte que, de maneira similar ao Barroco, alimenta e move o artista neobarroco, que impõe a si mesmo, como princípio, a necessidade de uma permanente liberdade no processo criativo. Através do jogo, como forma de viver essa liberdade, e cumprindo uma necessidade subjetiva de realização existencial, o artista submete à contínua indagação novas formas de representação ou transfiguração do real.