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A causalidade e a determinação

1.2. A produção do conhecimento sociológico

1.2.2. A causalidade e a determinação

Diante do que foi já colocado, podemos perceber que a praxeologia nos coloca uma tarefa difícil no momento da análise sociológica, mostrando como diversas esferas da vida social objetiva e subjetiva influenciam na produção de um conhecimento, assim como todas as tomadas de posição (todas as práticas). Isso porque a noção de causalidade empregada por Bourdieu, a fim de dar conta das determinações sociais, não obedece a uma lógica mecânica diretamente determinada das estruturas para as práticas (como é colocado pelo objetivismo que estabelece as normas e as regras como precondição da prática) e, menos ainda, uma lógica direta da experiência para o conhecimento (como é o caso do subjetivismo que dá ao agente o poder de construir livremente, e a todo momento, o sentido do mundo). A ciência materialista que Bourdieu propõe, impõe a necessidade do pesquisador levar em conta na sua análise as propriedades materiais (a começar pelo corpo, isto é, pelo habitus) e simbólicas (que são, segundo ele, as propriedades materiais em suas relações mútuas, como propriedades distintivas) que constituem as relações sociais e o estado atual da ordem estabelecida. Essas duas propriedades encontram-se imiscuídas no espaço social e realizam operações complexas de distinção. Os conceitos de habitus e campo servem à praxeologia como ferramentas de análise de tais operações que, através de um procedimento que se dá nos moldes do nominalismo – per genus et differentiam specificam –, torna possível

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apreender a infinidade de práticas e estratégias em suas relações e em sua regularidade. Assim, a sociologia de Bourdieu, como uma sociologia disposicional e relacional (BOURDIEU, 1996 [1994]: 9-10), não precisa de um modelo para dar conta da coordenação das práticas dos agentes, mas coloca o problema de considerar as múltiplas determinações que agem (e coagem) sobre essas práticas (consciente ou inconscientemente). Bourdieu considera que as práticas são produzidas pela dialética entre a estrutura do campo no qual ela é posta em ação e a disposição feita corpo – que é, por sua vez, resultado da história singular do agente, história particular e coletiva – e ainda, pelo estado atual das relações de força (a estrutura das relações de classe) que atravessa de forma imanente estas duas primeiras. A produção da prática (a emissão e a recepção desta) irá depender da relação entre as posições objetivas dos agentes na estrutura social (relações de poder, de dominação, de antagonismo, etc.) e da estrutura que comanda esta interação dada por uma conjuntura singular. Considerando isso, Bourdieu deposita nas práticas e na interação entre os agentes um número grande de variáveis: além do estado atual da disputa de forças econômicas e simbólicas entre dominantes e dominados que estruturam princípios cognitivos fundamentais – dos quais as relações de gênero22

e linguagem são uma das quais podemos citar –, a estrutura atual do campo no qual a prática é produzida, a história desse campo, a trajetória social do agente, a posição que ele ocupa e também a posição que ele já ocupou nos diversos campos pelos quais passou e no qual ele se encontra, etc.

Diferentemente da avaliação de probabilidades que a ciência constrói metodicamente sobre as bases de experiências controladas a partir de dados estabelecidos segundo regras precisas, a avaliação subjetiva das chances de sucesso de uma ação determinada em uma situação determinada faz intervir todo um conjunto de conhecimento semi-formalizado, diríamos, lugares comuns, preceitos éticos (“isso não é para nós”) e, mais profundamente, os princípios inconscientes do habitus,

22 Em A Dominação Masculina (1998) Bourdieu coloca que a diferença entre os gêneros encontra-se não apenas nas estruturas objetivas, mas também nas estruturas mentais, reproduzidas há milhares de anos. Tais estruturas mentais – as quais poderíamos identificar como as estruturas cognitivas mais fundamentais do habitus, porque mais fundantes – fazem com que todas as práticas e todas as produções teóricas produzidas (inclusive as análises feministas) empreguem como instrumentos de conhecimento de pensamento e de percepção (por exemplo, a linguagem e princípios de visão e divisão de mundo, incluindo o de gênero), o que na realidade deveriam tomar como objeto de conhecimento. Bourdieu não poupa nem mesmo Lacan dizendo que “podemos perguntar se o discurso do psicanalista não é atravessado, em seus conceitos e em sua problemática, por um inconsciente não analisado que, assim como em seus analisandos, joga com ele, a favor de seus jogos de palavra teóricos; e se por conseqüência, ele não coloca, sem o saber, nas regiões impensadas de seu inconsciente os instrumentos de pensamento que ele emprega para pensar o inconsciente” (BOURDIEU, 1990:4).

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disposição geral e transponível que, sendo o produto de toda um aprendizado dominado por um tipo determinado de regularidade objetiva, determina as condutas “razoáveis” e “não razoáveis” (as “loucuras”) para todo agente submetido a essas regularidades. (BOURDIEU, 2000 [1972]: 259)

Podemos assim dizer que a concepção freudiana de inconsciente exerce, no que diz respeito às determinações, um papel essencial23. A partir dela Bourdieu afasta da sua teoria a noção de cálculo estratégico conscientemente orientado, pois uma ação estratégica suporia que a estratégia escolhida fosse uma dentre tantas outras conhecidas e possíveis, contudo, o que se nota é que os agentes são determinados pela sua trajetória social e pelos limites estruturais dos campos nos quais eles agem, de modo que as práticas são fruto de um conjunto organizado e estruturado, fundado nas condições de produção dos habitus e na estrutura atual dos campos que funcionam como determinações na maior parte das vezes inconscientes, ou seja, como um peso tendencial de possibilidades no qual as ações têm maior probabilidade de se orientar. Com isso, a prática não pode, como diz Bourdieu, conceder ao agente mais que uma liberdade condicional.

Diante disso, saímos do paradigma da causalidade linear (A → B) para o que na França dos anos sessenta ficou conhecido por causalidade metonímica ou causalidade estrutural e que Bourdieu em algumas passagens também denomina de causalidade reflexiva. Trata-se de conceber uma relação causal nas suas múltiplas determinações, ou seja, “A” num complexo de relações causa “B” num outro complexo de relações. Em Os Usos Sociais da Ciência (1997) Bourdieu exemplifica essa estrutura causal de determinações na produção do conhecimento científico.

Essa estrutura é, a grosso modo, determinada pela estrutura da distribuição do capital científico num dado momento. Em outras palavras, os agentes (indivíduos e instituições) caracterizadas pelo volume do seu capital, determinam a estrutura do

23 A noção de inconsciente em Freud responde a máxima de que não existe efeito sem causa. Assim, na psicanálise, um ato que aparece como involuntário ou indeterminado, encontra suas causas no inconsciente: “denominamos um processo psíquico inconsciente, cuja existência somos obrigados a supor – devido a um motivo tal que inferimos a partir de seus efeitos – mas do qual nada sabemos” (FREUD, 1933, 90). O fato das práticas inconscientemente orientadas possuírem uma causa não significa que a causa seja obscurecida deliberadamente pela escolha de um indivíduo, mas que se encontra, como tantas outras informações que um ser humano recebe ao longo de sua vida, alocadas numa região psíquica de difícil acesso imediato. Essa noção de inconsciente freudiana responde às estratégias do habitus bourdieusiano, na medida em que dá condição de inteligibilidade às práticas que, mesmo sem serem previamente calculadas, encontram suas causas nas inculcações de séries de significantes ao longo da vida social de um agente e que por isso imprimem um savoir-faire que aparece na forma de gosto ou de disposição.

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campo em proporção ao seu peso, que depende do peso de todos os outros agentes, isto é, de todo o espaço. Mas, contrariamente, cada agente age sob pressão da estrutura do espaço que se impõe a ele, tanto mais brutalmente quanto seu peso relativo seja frágil. Essa pressão estrutural não assume, necessariamente, a forma de uma imposição direta que se exerceria na interação (ordem, influência, etc.). (BOURDIEU, 2004 [1997], p. 24)

A relação entre o econômico e o simbólico deve ser entendida nesta perspectiva. Para tanto, o conceito de campo é fundamental, pois organiza as esferas da vida social em espaços relativamente autônomos de tal modo que estes mantenham a unidade, mas sejam também afetados uns pelos outros e pelo estado das relações políticas e econômicas, que nunca penetram no campo de forma direta, mas refratada pelo seu grau de autonomia. Assim, “quanto mais os campos científicos são autônomos, mais eles escapam às leis sociais externas” (BOURDIEU, 2004 [1997], p. 23)24

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