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O modo de conhecimento praxeológico

1.1. Os três modos de conhecimento: Subjetivista, Objetivista e Praxeológico

1.1.3. O modo de conhecimento praxeológico

Diante de tal impasse teórico, que não deixa de ser uma estagnação para o sociólogo que vislumbra suas possibilidades de atuação – afinal ou caímos no abismo da experiência livre e consciente ou no determinismo mecânico e rígido das estruturas –, Bourdieu propõe uma terceira via que, sem ser uma síntese ou uma tentativa conciliatória das primeiras, é mais uma operação de superação da dicotomia anterior, muito próxima do sentido que Althusser (1965) atribui à inversão da dialética hegeliana realizada por Marx, ou seja, uma superação que envolve a reestruturação de todo o sistema. Para tanto é preciso, como diz

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Bourdieu em Meditações Pascalianas (1997), que o pesquisador retorne ao mundo da existência cotidiana, porém carregando consigo as conquistas do pensamento objetivista, mas tendo em vista seus limites.

Trata-se, de início, de compreender a compreensão primeira do mundo que está ligada a experiência de inclusão no mundo; em seguida a compreensão, quase sempre errônea e deformada, que o pensamento escolástico tem da compreensão prática e, enfim, a diferença essencial entre o conhecimento prático, a raison

raisonnable, e o conhecimento científico, a raison raisonnante, escolástica, teórica,

que se engendra nos campos autônomos. (BOURDIEU, 1997: 76-77. Trad. nossa)18

O objetivismo, que em Meditações Pascalianas é apreendido como a posição escolástica do conhecimento, toma as práticas tal qual o pesquisador as pensa e não tal qual elas são. Diante disso, a construção de um conhecimento científico do mundo social deve carregar consigo o primeiro e o segundo modo de conhecimento, de forma que a ciência não deve retomar a lógica da prática do primeiro modo de conhecer, mas reconstruir teoricamente essa lógica “incluindo na teoria a distância entre a lógica prática e a lógica teórica” (BOURDIEU, 1997: 79); este movimento que tem a reflexividade como princípio é, de acordo com Bourdieu, a única condição de lutar contra a “raison raisonnante” da escolástica, sendo, portanto, a base da ciência proposta por Bourdieu.

Deste modo, a praxeologia é um retorno às práticas, mas um retorno que carrega consigo as contribuições do subjetivismo e do objetivismo, porém sem primar nem as experiências nem as estruturas, pois nela as práticas são entendidas como teórica e praticamente atravessadas pela prática num duplo movimento que relaciona

(...) não só o sistema das relações objetivas que o mundo de conhecimento objetivista constrói, mas também as relações dialéticas entre essas estruturas objetivistas e as disposições estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las, ou seja, o duplo processo de interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade; esse conhecimento supõe uma ruptura com o modo de conhecimento objetivista, ou seja, uma interrogação sobre as condições de possibilidade e sobre os limites do ponto de vista objetivo e objetivante que apreende as práticas do exterior, como um fato consumado, em vez de construir o seu princípio gerador, situando-se no

18 Cabe-nos uma pequena observação a respeito dos termos “raison raisonnable” e “raison raisonnante” que não encontram equivalente na nossa língua: o primeiro conserva um aspecto passivo da ação, ao passo que o segundo nos traz uma perspectiva ativa. Essa perspectiva relacional que envolve um polo passivo (de construção) e outro ativo (de produção), também pode ser notada em Bourdieu quando ele trata da formação dos habitus, definindo-os como estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes.

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próprio movimento de sua efetuação. (Bourdieu, 2000 [1972] p. 235. Trad. nossa)

O princípio de análise da dinâmica social estaria, assim, na teoria da prática que entende a geração das práticas como uma dialética da interioridade e da exterioridade que ocorre nos habitus, isto é no “duplo processo de interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade”. Este movimento permite que a praxeologia constitua-se como uma teoria relacional que coloca em questão o espaço nos quais as práticas foram produzidas, isto é, as condições materiais e sociais de existência, que estão sempre vinculadas a uma classe ou a um grupo, como condição de probabilidade, o que dá conta da regularidade e da continuidade da ordem social – este primeiro movimento seria, precisamente, a interiorização da exterioridade. Ao mesmo tempo são também postas em questão as disposições singulares, os habitus, que são os princípios geradores de estratégias que fazem com que as práticas estejam sempre acordadas com a situação na qual elas se encontram e permitem aos agentes enfrentarem situações imprevistas por uma antecipação (e não por um cálculo racional e consciente) das consequências que podem resultar de determinada ação – já este segundo movimento é o de exteriorização da interioridade.

A prática é, por sua vez, necessária e relativamente autônoma em relação à situação considerada na sua imediatidade pontual, pois ela é o produto da relação dialética entre uma situação e um habitus, entendido como um sistema de disposições duráveis e transpassáveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepção, de apreciação e de ação e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças a transferência analógica de esquemas, permitindo resolver os problemas de mesma forma e graças às correções incessantes dos resultados obtidos e dialeticamente produzidos por esses resultados. (BOURDIEU, 2000 [1972]: 262. Trad. nossa)

As práticas, objeto de conhecimento da praxeologia, são, portanto analisadas segundo as condições objetivas de sua produção, mas também de acordo com a matriz de percepção – o que ultrapassa a determinação do modelo ou da regra proposto pelo objetivismo – permitindo que o pesquisador apreenda as transformações e as diferenciações do espaço social, produzidas pelas exigências inscritas nas situações particulares que os agentes enfrentam. O objetivismo contribui para o conhecimento praxeológico na medida em que ele apresenta a construção das estruturas como uma ruptura com as noções do senso comum

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pré-construídas. Porém, para além dele, Bourdieu coloca em questão as condições nas quais os mecanismos estruturais estabelecem uma relação com a prática. Nesse sentido, o trabalho da praxeologia é o de romper com a doxa – mostrando as determinações estruturais – e, ao mesmo tempo, colocar as condições nas quais tais determinações são efetivadas – o que envolve uma grande quantidade de variáveis, dentre as quais podemos citar: as relações de poder, a posição do agente nessas relações, os habitus específicos e as possibilidades inscritas nos espaços sociais como mais ou menos favoráveis.

A diferença entre o objetivismo e a praxeologia passa por uma reflexão crítica acerca da temporalidade da prática e da ciência, estabelecendo suas diferenças para que não se postule, a priori, o modelo/regra no lugar da prática que lhe dá origem, ou, o que seria o mesmo, o opus operantum no lugar do modus operandi. O tempo da ciência é atemporal de modo que é possível justapor simultaneamente, para efeito de análise, práticas que são postas em ação em situações distintas sucessivamente e são, muitas vezes, na realidade, incompatíveis. Esse é o trabalho de abstração (comparativo) por excelência da ciência que a praxeologia conserva, porém ela não exige, ao contrário do objetivismo, mais lógica da prática do que ela pode ter – por exemplo, atribuindo-lhe as regras e modelos nos quais as práticas se orientam –, pois os conceitos não podem enclausurar uma lógica que é feita para prescindir o conceito ou, como diz Bourdieu citando Marx, não se pode tomar “as coisas da lógica pela lógica das coisas”.

Diante disso, a praxeologia estabelece-se como um processo de conhecimento, pela dialética estabelecida entre o conhecimento científico e a lógica da prática, tendo sempre a prática como baliza para qualquer produção teórica, o que faz da teoria uma tentativa de compreender a prática questionando, inclusive, as condições sociais de sua transformação. A praxeologia, como método de produção de conhecimento científico proposto por Bourdieu, significa, então, “reconstruir o sistema socialmente constituído de estruturas inseparavelmente cognitivas e avaliativas que organizam a percepção do mundo em conformidade com as estruturas objetivas de um estado determinado do mundo social” (BOURDIEU, 2011 [1980]: 156). A relação entre as disposições incorporadas, feitas corpo, e a estrutura estruturante – que para Bourdieu não é um monólito, mas se organiza em campos relativamente autônomos que se causam transitivamente e imanentemente – é a chave para compreender a sutileza da concepção de terceiro modo de conhecimento em

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Bourdieu e não reduzi-lo a uma tentativa falhada de síntese entre a teoria da ação e a teoria mecanicista da estrutura.

Por isso, o terceiro modo decorre de uma torção dos dois modos anteriores. Assim, o conhecimento praxeológico não é um retorno ao conhecimento fenomenológico, mas processo que implica uma dupla translação teórica que:

(...) opera, com efeito, uma nova inversão da problemática que a ciência objetiva do mundo social, como sistema de relações objetivas e independentes das consciências e das vontades individuais, a qual se constituiu pondo ela própria as questões que a experiência primeira e a análise fenomenológica dessa análise tendiam a excluir. (Bourdieu, 2000 [1972], p. 235. Trad. nossa)

O conhecimento objetivista pergunta pelas condições de possibilidade do conhecimento fenomenológico, assim como o conhecimento praxeológico coloca em questão as condições de possibilidade (teóricas e sociais) do conhecimento objetivista. Em suma, “o conhecimento praxeológico não anula as aquisições do conhecimento objetivista, mas conserva-as superando-as, integrando aquilo que esse conhecimento tivera de excluir para obtê-las” (Bourdieu, 2000 [1972]: 236). Só escaparemos das alternativas objetivismo/subjetivismo,

(...) na condição de nos interrogarmos sobre o modo de produção e funcionamento da matriz prática que torna possível uma ação objetivamente inteligível e de subordinarmos todas as operações da prática científica a uma teoria da prática e da experiência primeira da prática que nada tem a ver com uma restituição fenomenológica da experiência vivida e, inseparavelmente, com uma teoria das condições de possibilidade teóricas e sociais da apreensão objetiva ou, no mesmo ato, com os limites desse modo de conhecimento. (Bourdieu, 2000 [1972], p. 236-7. Trad. nossa)

Interrogar a própria prática científica, investigando as condições de possibilidade do conhecimento que ela produz e, concomitante a isso, do produtor deste conhecimento é condição sine qua non para uma ciência sociológica materialista, que não se constrói sem colocar em xeque a sua própria condição de produtora. Neste sentido, a realidade empírica, situada e datada, que é analisada pela praxeologia deve ser entendida, como dizia Bachelard, como um caso particular dos possíveis, numa dinâmica relacional que, como veremos adiante, foge a causalidade linear, mecânica, na qual cada prática é tomada em si mesma (BOURDIEU, 2011 [1980]: 15). Além de uma relação específica de causalidade, a

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sociologia reflexiva de Bourdieu, a praxeologia, implica tanto uma concepção de verdade científica que se difere da postulada pelo subjetivismo e pelo objetivismo, quanto uma posição singular do observador enquanto produtor situado num campo específico.