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CAPÍTULO I CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

1.4 A Cena da Leitura no Jogo da Desconstrução

A leitura sempre esteve presente na vida de todos, e é por meio dela que se inicia a formação do cidadão. Pode-se, por meio dela, constituir sujeitos leitores capazes ou não de tecer sentidos outros além daqueles explicitados na superfície do texto; de identificar opacidades, apagamentos e silenciamentos em cada gesto de ler.

Quando se fala de leitura, o senso comum geralmente a pensa como processo de decodificação de signos que se encontram materializados na superfície de um texto. No entanto, neste trabalho, não estamos considerando leitura uma atividade literal, apenas embasada no senso comum, mas, sim, como resultado da tensão entre o momento histórico-social vivenciado por um sujeito autor e por um sujeito leitor, ambos cindidos e heterogêneos. Dessa forma, a leitura, assim entendida, pressupõe que os sentidos sejam produzidos a partir de posições (circunscrições) sócio-históricas e ideológicas.

Dentro dessa perspectiva, esse trabalho propõe-se a realizar uma leitura desconstrutora do texto chalitiano “Educação: a solução está no afeto”. Assim, será assumida uma atitude diferente das leituras hermenêuticas. Segundo Estrada (2002), na hermenêutica, a leitura permanece fixa no interior do sistema, ou seja, do próprio texto. O sentido permanece inscrito e eternalizado na superfície do próprio texto. Nesse tipo de leitura, jamais se transgridem os limites do sistema/texto, mas orienta-se em obediência a um ideal de aprofundamento, ou seja, busca-se uma origem ou uma essência que foi deixada pelo autor. Já na leitura desconstrutora, não se busca aprofundamento ou a descoberta de uma verdade ali materializada, mas toma- se o texto a fim de revelar seus paradoxos e suas aporias, seus pontos frágeis sob os quais a verdade foi construída.

Ao se realizar essa modalidade de leitura, tem-se, pois, a possibilidade de desmascarar, entre outras coisas, os silenciamentos21 e apagamentos22

21 Os silêncios, para Santos (2000, p.233) representam “os significados velados que se ocultam

na dispersão dos sentidos; é o não dito implícito dos e nos sentidos que, embora não sejam depreensíveis na superfície do discurso, estão embutidos na perspectiva do dizer”.

22 Segundo Elias (2002, p.26) os apagamentos podem ser produzidos por denegações ou por

um processo de opacidade de sentidos, que faz desaparecer do amálgama de significação os sentidos não convenientes à exigências da situação enunciativa.

presentes na enunciatividade. Para que se possa entender melhor essa modalidade de leitura, é necessário esclarecer a noção de disseminação que se encontra atrelada a essa estratégia de construção de significação que se processa no ato de ler. Assim postula Derrida :

[...] a polissemia enquanto tal organiza-se no horizonte implícito de uma retomada unitária do sentido, até mesmo de uma dialética ...A disseminação, ao contrário, por produzir um número não-finito de efeitos semânticos, não se deixa reconduzir a um presente de origem simples (...) nem a uma presença escatológica. Ela marca uma multiplicidade irredutível e gerativa. (DERRIDA, 2001, p. 52).

Dessa forma, consideraramos que o sentido não preexiste à leitura porque esse, na verdade, é construído à medida que se percorre o texto, e, ao longo desse percurso, pode-se construir tessituras múltiplas, pois múltiplos poderão ser os olhares. Segundo Coracini (2005, p. 25), “ler, compreender, interpretar ou produzir sentido é uma questão de ângulo, de percepção, ou de posição enunciativa”. Para exemplificar o proposto acima, a autora lembra a pintura de Velásquez, Las Meninas, tão bem comentada por Foucault (1990). Nessa obra, como postula a autora, fica claro que os limites entre o visível e o invisível são fluídos, opacos, à medida que um se mistura ao outro, de forma que “o que se apresenta como real não passa de interpretação ou representação que torna visível o que é invisível e invisibiliza o que parece visível.” (CORACINI, 2005, p. 27)

Sendo assim, percebe-se que a cada leitura que se realiza, faz-se um corte, abre-se uma fissura na superfície aparentemente una e homogênea do texto, na tentativa de trazer à tona não só o visível materializado no lingüístico,

vários dizeres. Esse corte realizado pelo ato da leitura é, segundo Coracini (2005, p. 33), “suturado a cada nova leitura, a cada momento em que o leitor produz sentido, interpreta, ou seja, traduz....”.

No ato de ler, pode-se identificar de maneira mais ou menos precisa lugares e posições que foram ocupadas pelo autor no momento da produção; com isso, percebem-se suas relações políticas e sociais e, portanto ideológicas, que foram construídas naquele momento histórico-social. Evidentemente, essas posições não são eternizadas; elas podem sofrer modificações.

Dessa forma, entende-se o texto como algo que ultrapassa a materialidade e vê o sentido não como algo tutelado apenas pelo autor, pois, na perspectiva da desconstrução, Derrida (1973), a leitura é um processo que se dá na convergência do lingüístico com o social e com todos os outros atravessamentos como a História, o inconsciente e a ideologia, ou seja, a leitura acontece, de fato, no jogo que se instaura entre esses dois lugares discursivos.

É válido ressaltar, mais uma vez, que não é objetivo da desconstrução a simples interpretação de um texto; pode-se utilizá-la a fim de revelar aquilo que o texto tenta ocultar: os paradoxos23, as contradições24 e as incoerências.

Como afirma Mascia,

[...] trata-se de uma recusa em ler o texto como ele deseja ser lido, ou seja, a busca dos ditos através dos não-ditos, pois segundo esta perspectiva, a possibilidade de significado de um texto, a sua coerência (presença) só é garantida pelas negações (ausências),

23 Parodoxo: o que é contraditório ao sistema comum de crenças.

24 Contradição: oposição, relação entre uma proposição universal afirmativa e uma proposição

que se inscrevem dentro dele como um jogo de oposições, cujas regras se instauram no jogo (a cada nova leitura) (MÁSCIA, 2005, p. 50).

Sendo assim, fazer uma leitura desconstrutora do corpus segundo Coracini (2005) é tentar levantar as “máscaras” que ocultam dependências, subordinações e aporias25.

Mascia (2005, p. 48) denomina essa proposta de leitura como “discursivo-desconstrutivista”. A autora considera a noção de discurso, segundo Foucault (1971, p. 136), como “um conjunto de regras anônimas históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições da função enunciativa.” Assim, ainda segundo a mesma autora, “o discurso transcende o lingüístico, ele é sócio-historicamente construído, assim como o sentido também o é, logo não podendo ser controlado como se fosse um objeto contido no texto” (MASCIA, 2005, p. 48).

Julga-se pertinente esclarecer que o texto, aqui neste trabalho, não é um receptáculo de sentidos. Na verdade, o texto só adquire sentido dentro do jogo discursivo (WITTGENSTEIN, 1969, apud CORACINI, 1995); de outro lado, o texto fora desse jogo, torna-se apenas um amontoado de sinais gráficos que, como afirma (FOCAULT,1971, apud MASCIA, 2005, p.52) são “...grafismos empilhados sob a poeira das bibliotecas, dormindo um sono profundo em direção ao qual não param de deslizar desde que foram pronunciados, desde que foram esquecidos e que seu efeito visível se perdeu no tempo.”

Assim, podemos dizer que não é o texto que determina a leitura, mas os sujeitos, pois, segundo Coracini (1995, p. 17), “apenas uma nova situação de enunciação será capaz de conferir sentido a esses sinais gráficos, transformando-os em sinais lingüísticos-textuais.” Salientamos que, com esta proposta de leitura, está sendo experimentada uma nova maneira de ler, a partir de outros gestos de leitura que permitem não apenas reconhecer a transparência do que se lê, mas que permitem também conhecer o modo como os sentidos estão sendo produzidos e as posições sujeito que se constituem na relação do simbólico com o político, pois o próprio processo de significação é dependente de relações que derivam do contexto sócio-histórico e, por isso, certamente, serão políticas.

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