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4. A HEGEMONIA DISCURSIVA DA CIÊNCIA

4.1 A CENTRALIDADE BIOTECNOLÓGICA

Jornalistas assessores de imprensa tornaram-se operadores por excelência de um discurso ideológico, construtor da realidade. Sob o manto da ideologia, o discurso sobre a biotecnologia ofertado pelos assessores de imprensa da Embrapa se vê impregnado pelo fascínio com as recentes experiências decorrentes da nova metodologia. Esse fascínio acaba comprometendo, por tabela, também o noticiário científico que se alimenta da divulgação institucional de institutos de pesquisa que usam a biotecnologia.

O discurso sobre biotecnologia reflete, assim, o processo de ideologização porque passa o fazer científico contemporâneo. O discurso biotecnológico, com gênese no campo científico (discurso-fonte)23, marcaria os enunciados jornalísticos (discurso-usuário)24 sobre ciência, num processo de monopólio semântico determinado pela ideologização da ciência e da técnica.

A exemplo do entendimento de Zamboni (2001), compreenderemos aqui o discurso jornalístico sobre C&T como um universo enunciativo composto por “discursos de transmissão de informação”. Para Mannheim (1972, p.111) “[...] torna- se imperativo, no atual período de transição, fazer uso do crepúsculo intelectual que domina nossa época e no qual todos os valores e pontos de vista aparecem em sua relatividade original”. Noutras palavras, para cada período histórico, sua respectiva racionalização científica. O discurso biotecnológico monopoliza a racionalização científica, principalmente no campo das ciências da natureza (biologia, agronomia, e todo o campo biomédico).

Na imprensa nacional, o discurso sobre a biotecnologia se vê impregnado pelo fascínio com as recentes experiências decorrentes da nova metodologia científica. Como se apenas por se tratar de um assunto biotecnológico a pauta já estivesse garantida. Parte desse discurso começaria a ser formulado bem antes do

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Utilizamos o termo “discurso-fonte” para nos referirmos ao que GOMES (2000) nomeia como “texto- fonte”.

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O termo “discurso-usuário” é usado para referir à retextualização de um discurso que faz uso de determinado texto-fonte.

relise, numa fase que poderíamos nomear de pré-notícia. Jean Perrin (apud BACHELARD, 2000; p.121) lembra que “[...] todo conceito acaba por perder sua utilidade, sua própria significação, quando nos afastamos pouco a pouco das condições experimentais em que ele foi formulado”. Certamente o conceito de biotecnologia passa também por esse esvaziamento de sentido. Grosso modo, “biotecnologia” significaria estudos de técnicas para reprodução de vida. Hoje o termo parece estar mais vinculado a um emaranhado de técnicas para a reprodutibilidade industrial (e, portanto, capitalista) de organismos vivos.

O saber científico acaba sendo difundido através de um determinado discurso agendado no noticiário. Um agendamento discursivo e também ideológico. Gregolin (2004, p.19) defende que “[...] o discurso científico é, inexoravelmente, um lugar onde se entrecruzam filiações a memórias e retomadas que sempre deslocam sentidos”.

Tais deslocamentos poderiam se concentrar na origem dos discursos científicos. É nesse momento em que surgem as interdiscursividades, misturando o científico ao econômico e ao político. Embaralhando o jogo discursivo da ciência. Daí pode-se idealizar as funções que desempenhariam esses deslocamentos na produção de sentido do discurso científico, numa superfície textualizada pelas matérias jornalísticas da cobertura de ciência da mídia contemporânea. Mídia, por sua vez, alimentada pela oferta agressiva do relise institucional.

Deslocamentos de sentido que apontam para rupturas de uma discursividade linear e homogênea do discurso cientifico. A inata interdiscursividade jornalística expõe uma característica epistemológica de aproximação e distanciamento de sentidos, produzindo efeitos de sentidos sustentados pelas condições de produção, circulação e leitura das formações discursivas peculiares ao discurso científico.

Segundo Gomes (1995, p. 42),

[...] pelo menos teoricamente, o jornalista especializado em ciência é capaz de ‘traduzir’ o discurso do cientista para os cidadãos comuns. Obtém-se essa ‘tradução’ a partir de transformações lingüísticas nos níveis local e global. Na realidade, trata-se de uma tradução intralingüística ou retextualização.

A autora emprega os termos “transformação”, “transposição” e “retextualização” quando se refere à passagem do texto da entrevista realizada com

cientistas para matéria jornalística. Outros teóricos de AD utilizam simplesmente a idéia de atualização discursiva. De qualquer forma o sentido é o mesmo: o processo pelo qual determinado discurso passa de uma matriz de sentido para o que passamos a classificar como re-apresentação em um novo discurso-usuário.

A partir das conceituações de Althusser25 (1970) vamos entender o processo jornalístico industrial como parte dos contemporâneos “aparelhos ideológicos do Estado”, E nessa concepção perceber parte do processamento simbólico da construção de realidade a partir da formação discursiva da ciência.

Consideremos ainda a centralidade midiática e sua determinação dos formatos discursivos no jornalismo. O sujeito do discurso de divulgação científica adotou uma estratégia discursiva difusionista, com uma intencionalidade claramente vinculada à busca de uma hegemonia na fala social. Fiorin (1990; p. 176) nos lembra que “[...] O discurso liberal erige-se como único e, por isso, é um discurso narcísico na medida em que afirma a identidade e nega a alteridade [...]”. No modelo difusionista de jornalismo científico a unicidade de sentido na formação discursiva ignora a possibilidade dialógica na comunicação sobre ciência, como se o público receptor não pudesse ser encarado como o Outro no processo comunicativo, denotando o modelo unidirecional da discursividade científica na mídia.

Antes de vislumbrarmos uma apropriação funcionalista da discursividade científica, optemos pelos pressupostos de um assujeitamento dos enunciadores do discurso científico, recorrendo a Foucault (2001, p.27), que lembra que,

Desde o século XVII, essa função não cessou de se enfraquecer, no discurso científico: o autor só funciona para dar um nome a um teorema, um efeito, um exemplo, uma síndrome.

Na relação sujeito-objeto comunicacionais, há que se considerar a pertinência de uma ligação fetichizada, muitas das vezes quando os discursos da manifestação simbólica dos objetos comunicacionais se sobrepõem ao discurso próprio do sujeito. É com um ideal positivista de ciência com que estamos lidando. Esse objeto se impõe relacionalmente nos momentos de visibilidade comunicacional. O saber e o sujeito do saber, eis o confronto epistemológico que se configura.

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O conceito althusseriano cabe bem para o aparato midático de um modo geral. A mídia nada mais é do que o moderno aparelho ideológico, não só do Estado, mas do conjunto das corporações, das sociedades anônimas e dos grupos políticos.

Nesse sentido, o papel dos sujeitos deste problema (divulgação científica) acaba sendo menosprezado em relação ao papel do condicionamento histórico, econômico e social que envolve o fazer científico e sua midiatização. A disputa pela hegemonia discursiva não estaria sendo conduzida pelo sujeito centrado dessa discursividade, mas pela memória discursiva construída ao longo da história das ciências, do jornalismo e do capitalismo.

Os enunciados produzidos pelos agentes da chamada indústria cultural (e aqui incluímos os serviços de assessoria de imprensa) são o objeto da presente pesquisa, para onde concentramos nosso esforço epistemológico, buscando enxergar o desenvolvimento das discursividades, numa espécie de melhoramento sistêmico/genético discursivo. Nesse meio de cultura26 podem-se verificar os percursos das construções discursivas e os efeitos da memória discursiva no corpus comunicacional em análise27. O gene discursivo inaugural é carregado de códigos simbólicos pré-determinados, da mesma forma que herda um desenho ideológico a partir das filiações discursivas de que foi gerado. Essa herança discursiva é o que move de modo subjetivo as discursividades institucionalizadas (como o discurso de divulgação científica da Embrapa) para a disputa hegemônica no campo da construção do real.

Gaia (2006, p.03) corrobora com a idéia da intencionalidade de hegemonia discursiva ao dizer que:

Polifônico por excelência — já que costuma apresentar múltiplas vozes sociais —, o discurso jornalístico tende a se filiar a formações discursivas hegemônicas, questão que o analista não pode ignorar. O termo hegemonia, desenvolvido por Gramsci, traduz a idéia de que uma classe mantém seu domínio não só pela coersão, mas por saber tornar gerais seus interesses particulares [...]

O discurso biotecnológico pretende-se hegemônico no espaço midiático a partir de uma imposição oriunda de um campo não ontologicamente científico. Heterogeneidade, interdiscursividade e representação heterônoma são as características de tal discursividade. Por isso, a impregnação do discurso científico e tecnológico com elementos discursivos da economia, da política e da ideologia capitalista. Bourdieu (1997, p.76-85) fala dessa intersecção de um campo noutro

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Aqui nos apropriamos de um jargão biotecnológico dos laboratórios que lidam com experiências em melhoramento genético e cultivo in vitro.

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Entenda-se “genético” na concepção de gênese discursiva, que surge no decorrer dos percursos determinados pelas condições históricas e materiais de sua produção.

campo, classificando esse movimento como “a lógica do Cavalo de Tróia”: Consiste, mais ou menos, em enxertar inimigos na linha de lá da fortaleza. O sociólogo francês pode explicar melhor:

[...] introduzindo nos universos autônomos produtores heterônomos que, com o apoio das forças externas, receberão uma consagração que não podem receber de seus pares [...] O campo do jornalismo tem uma particularidade: é muito mais dependente das forças externas que todos os outros campos de produção cultural, campo da matemática, campo da literatura, campo jurídico, campo científico etc.

O papel da ideologia nas formações discursivas da divulgação científica é inegável. Não há discurso sem ideologia. Verón (1970, p. 184-185) vai dizer que:

A presença de uma dimensão ideológica no discurso científico é independente desta distinção: deriva dos sistemas de decisões implícito na construção das mensagens científicas [...] Tôdas as dificuldades acerca do papel da ideologia começam, contudo, no plano da prática científica, e portanto aí começa também a questão da responsabilidade dos cientistas sociais e do seu compromisso com a verdade.

O que queremos destacar é o processo de assujeitamento por que passam os jornalistas responsáveis pelas assessorias de imprensa que fazem a cobertura de ciências em centros de pesquisa como os da Embrapa. Um assujeitamento à ideologia capitalista que determina o modelo de pesquisa reportado nas matérias, reforçando uma racionalidade técnica e científica desenhada para favorecer os empreendimentos econômicos que estão na base dessa estrutura. Dessa forma, entendemos que a prática e o discurso jornalístico refletem o fazer científico e tecnológico, alvos das matérias redigidas para a mídia.

5 JORNALISMO CIENTÍFICO VERSUS DIFUSIONISMO NA