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3.– O SUJEITO LACANIANO

3.2. A ciência antiga

89 É interessante ver como os psicanalistas americanos adaptaram a psicanálise à ideologia de

sua sociedade do self made man. Estes enunciados da teoria de Hartman podem ser lidos diretamente como o programa ideológico que orienta a estratégia geo-politica americana. A tradução do Ich alemão por ego foi o primeiro passo da transformação da psicanálise americana que deu origem a Egophsicology. "Esta Psicologia do Ego" se adaptou muito bem ao pragmatismo norte-americano, tantas vezes lamentado por Freud, e a seu elevado acento no individualismo.

90 No inicio do século XX, Ferdinand de Saussure, consegue extrair da confusão reinante nos

estudos lingüísticos um objeto formal: a língua. É a promoção da língua a objeto de estudo que define a criação da lingüística como ciência. No seu “Curso de lingüística geral” extrai as leis da linguagem e as diferencia das disciplinas conexas. As leis da lingüística promovem o significante como seu suporte material e declaram que a língua não é uma função do sujeito falante, mas que este é passivo frente a ela. (Saussure, 1945, p. 49-70). Temos então que Saussure funda a língua e a introduz no campo do sujeito ao afirmar que a psicologia é a ciência que estuda “os signos no seio da vida social” sendo a lingüística só uma parte desta ciência geral (SAUSSURE, 1945, p. 60).

A operação que faz Lacan é a de substituir os “pensamentos inconscientes” freudianos pela noção de significante tomada de Saussure e com isto tem uma base para pensar “cientificamente” as leis do inconsciente. Todavia, é de importância capital assinalar que a psicanálise não se reduz a uma lingüística. A lingüística se constrói excluindo de seu campo a fala. É justamente este fato que obriga a Lacan a afirmar que ele não faz lingüística, somente se apóia nela.

O termo sujeito tem uma longa tradição filosófica que chega até nossos dias, mas que deve ser reconhecida para diferenciá-la do estatuto dado por Lacan a este termo. Isto é o que o próprio Lacan resume na "Subversão do sujeito" para situar este termo e afirmar que o sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência inaugurado por Descartes. Sujeito dividido entre verdade e saber (LACAN, 1979/j, p. 305-316).

Mas o surgimento da ciência e de seu sujeito tem uma história que começa com Aristóteles. A ciência para os antigos, e em especial para Aristóteles, é a ciência das causas últimas da realidade. Na "Metafísica", Aristóteles trata da ciência a adquirir e postula que a ciência se ocupa dos princípios e das causas primeiras, pois só conhecemos as coisas quando conhecemos sua causa (ARISTÓTELES, 1981, p. 99-102). Conta quatro causas:

a) A essência ou forma própria de cada coisa (causa formal) b) A matéria ou sujeito (como causa material) 91

c) O princípio do movimento (causa eficiente) d) A causa final das outras, o bem (causa final)

Portanto, enquanto a ciência para os antigos vai ser definida como a procura das causas finais, esta não será a preocupação da ciência moderna. É uma observação importante, já que o conceito de ciência moderna não é um conceito a-historico, ele tem sua história e seu surgimento com Descartes. Essa mesma distância conceitual encontramos na noção de sujeito – hypokeimenon para os gregos – que foi primeiramente traduzido para o latim como substrato e depois como sujeito.

Para os gregos, hypokeimenon referia-se a uma espécie de suporte, a uma outra existência considerada como modo ou acidente; ou seja, a noção de sujeito refere-se a essa noção de substrato ou de substância como o que há de permanente nas coisas que mudam. Um sujeito não precisa de outra coisa para existir. Além desta idéia de substrato, vai aparecer no pensamento grego a idéia de sujeito em um sentido gramatical na frase – como suporte ontológico

da mesma, na medida em que o sujeito é o suporte de todos os predicados – e também será considerado em um sentido lógico (ARISTOTELES, 1981, 167-176). Para os gregos, a noção de sujeito aproxima-se daquela que temos hoje de objeto, e se prolongou por grande parte da Idade Média.

O segundo ponto a ser levado em conta na ciência antiga é a idéia que faziam os gregos do Universo. Para eles, assim como para a ciência medieval, o mundo era geocêntrico e não heliocêntrico. Mas para os gregos o mundo era também hierarquizado numa esfera sublunar e outra supra-lunar, ambas submetidas a diferentes leis. Esta hierarquia é aquela com a qual vem romper Galileu. Galileu afirma ser o mundo Uno, homogêneo e portanto submetido a leis. Ele pode assim postular sua matematização da natureza. Procedimento esse fundamental não só para a ciência física, que vai se desenvolver nos séculos seguintes, mas também para o próprio surgimento do cogito cartesiano.

O terceiro aspecto a ressaltar é a quebra da autoridade.

A noção de autoridade que a Idade Média desenvolvera vai desempenhar um papel fundamental no ensino; primeiro nos bispados, logo nos monastérios e por último nas universidades, já no século XIII, com a criação da Universidade de Paris, e vai ser de uma importância decisiva para compreender a ruptura operada por Galileu.

O ensino universitário era baseado em duas características, chamadas lexius92 e disputatius93. As lexius eram leituras e esclarecimento de

textos escolhidos, ou seja, que remetiam aos filósofos considerados como autoridade. A segunda eram as chamadas disputas, uma espécie de torneios lógicos, teológicos dirigidos por um ou vários mestres onde se contrapunham determinadas teses filosóficas. Um defendia, outro se opunha, e tanto essa defesa como esta oposição nos remetia às autoridades. Isso fazia desse critério de autoridade algo que permeava o ensino e a ciência no mundo medieval. Neste período sobrevém um tempo de grande dogmatização, quando se procura garantir os espaços conquistados pelas duas Ordens religiosas que fizeram sua aparição no século XIII: a dos dominicanos que vão basear sua

92 Lexus. Leituras.

reflexão em Aristóteles, e a dos franciscanos, que vão privilegiar uma tradição que recua a Agostinho.

A questão central de todos estes quinze séculos de filosofia é o diálogo entre filosofia e teologia, entre fé e razão. Ao longo deste tempo foram dadas as mais diferentes respostas, entre elas a de Santo Agostinho, para quem a verdade reside em nosso interior e desde aí temos que procurar a luz que inscreveu as idéias em nossas almas (LAMANNA, 1960/b, p. 98-102). Outra resposta é a de Santo Anselmo, que parte de um dogma de fé e utiliza- se da razão para tentar dar um fundamento a este dogma de fé. Mas coube a Santo Tomás de Aquino promover uma grande síntese racional na qual incorporava a filosofia de Aristóteles à teologia, mostrando de que antes é necessário um esforço racional para fundamentarmos nossa fé (LAMANNA, 1960/b, p. 112-115).

Destarte, o importante é ressaltar que a autoridade para a escolástica estava dada em última instância pela palavra divina. A Bíblia era a verdade revelada e fonte última de autoridade, e qualquer saber só poderia responder a ela. A concordância do saber com a verdade era um princípio inconteste na medida em que não poderia existir um saber que não responda à palavra revelada. Contudo, a própria escolástica viu-se obrigada a admitir a existência de um saber que escapava a sua retórica tal como a dúvida Agostiniana o anunciava; e como é um fato que o saber pode ser ilusório ou ainda afastar-se da fé, restou à Igreja a teoria dos dois saberes, o divino, inatingível na sua perfeição, e o humano, restrito às imperfeições da queda na matéria.

O julgamento último de saber se debruça sobre quais são as interpretações lícitas e quais as não lícitas, se um saber é herético ou não. Correspondem à autoridade dos doutores da Igreja, assentada nas universidades, e em segundo lugar as catedrais, que como se sabe, eram a extensão universitária do colégio inquisitorial da universidade de Paris: o Santo Oficio. É essa autoridade contra a qual a ciência se ergueu que cobrou a vida de Giordano Bruno e de Galileu.

No século XV ainda se produzem dois acontecimentos importantes que preparam a revolução científica. O Concílio, que era para acontecer em Bizâncio e se traslada para a Itália, e a conquista de Bizâncio pelos turcos

otomanos. Os doutores da Igreja de Bizâncio, versados em grego, mudam-se para a Europa levando grande quantidade de livros, principalmente, de Platão. Segundo Russell, para a Igreja era Deus que governava a razão, sendo que Platão sustenta o ponto de vista oposto, e coloca a razão como base para conhecer a verdade (RUSSELL, 2001, p. 77- 83).