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Fräulein Elisabeth Von R.

Gostaria de ilustrar agora, com um caso clínico de Freud, como o sintoma realiza um desejo inconsciente, e nesta realização atende as exigências pulsionais assentadas num órgão que toma a função de zona erógena.

Tomarei para isto a primeira psicanálise realizada por Freud, já em 1892, e conhecida como o caso de Elisabeth von R.. Conduzido nos alvores da psicanálise, constata-se como a teoria segue a clínica e como Freud, desde cedo, reconhece a pulsão por detrás do inconsciente (FREUD, 1973/f, p. 41-50).

Freud recebe Elisabeth, por indicação de um colega, com o diagnóstico de histeria, embora não se encontre a princípio nenhum dos signos patonimicos da histeria. Ao contrário, ela parecia psiquicamente normal e levava sua vida com resignação e afastada da vida social. Elisabeth sofria de uma paralisia motora nas pernas com intensa dor conhecida como atasia abasia. Isto fazia com que seu andar fosse difícil e carregado. Um exame físico demonstrou que não havia lesões e que o quadro geral fazia suspeitar de uma infiltração dos nervos da perna o que hoje em dia se diagnostica como "tendinite reumática". O único signo de histeria é dado pela "belle indifférence"60

com a qual aceita sua condição. A dor nas pernas que motivavam sua queixa era indeterminada e com uma maior sensibilidade cutânea e muscular. Estas dores e o cansaço vinham se repetindo de forma insistente desde um par de anos.

Um dos índices diagnósticos, a belle indifférence indica que a paciente dá importância a suas dores, porém, é como se seu pensamento estivesse retido em outra coisa. Isto é, por pensamentos inconscientes enlaçados às dores, sendo estas um fenômeno concomitante. Porém, e mais importante, é a constatação de que quando se estimulava dolorosamente sua perna, ao invés de manifestar uma sensação de desagrado e defesa frente à dor, Elisabeth

60

6 Bela indiferença. Diz-se com a expressão, em francês, de uma relativa falta de preocupação

[...] mostrava uma singular expressão, que parecia de prazer e não de dor, gritava como quem experimenta uma sensação voluptuosa, ruboriza-se intensamente, fecha os olhos e dobra seu corpo para trás, tudo isso sem exagero, mas suficientemente marcado para fazer pensar que a enfermidade do sujeito era uma histeria e que o estímulo tinha tocado uma zona histérica (erógena). [...] esta expressão da paciente não podia corresponder de forma alguma à dor [...] mas ao conteúdo dos pensamentos que se ocultavam por trás de tais dores despertados [...] pelo estímulo das zonas associadas (FREUD, 1973/f, p. 109).

Freud localiza a pulsão no prazer da dor; a satisfação pulsional associada a uma zona do corpo que já não se comporta como manda a fisiologia e perdeu a função de caminhar. A perna não serve para realizar a função própria, senão para expressar uma satisfação desconhecida pelo sujeito, satisfação enlaçada a seus devaneios.

Freud não fala nada disso à paciente e não porque não se interesse pela pulsão que, em 1914, seria situada como axioma fundamental. Ele não ataca a pulsão de frente, não por ignorância, mas por precaução. Deduz que esta dor, vivida como estranha pela consciência, deve estar em harmonia com os pensamentos inconscientes. Cita Goethe: "Sua máscara revela um sentido oculto" (FREUD, 1973/f, p. 108). Elisabeth esconde um segredo que Freud supõe que ela sabe – mesmo sem saber.

Freud pede então que Elisabeth conte sua historia, uma e outra vez, extremamente atento a todos os detalhes, às modulações de sua voz, às incoerências de seu discurso, às lacunas entre pensamentos. Pouco a pouco vai ficando claro que nessa carne dolorida, órgão anatômico sem função, se assenta uma história vivida, feita de desejos inconfessados, mas que depois da análise são reconhecidos e assumidos como próprios, como representando o si mesmo. Pareceria que o ser do sujeito se assenta nesse órgão doloroso e até se reduz e se condensa nele. Freud também não desconhece este caminho estranho para a ciência de sua época, caminho que liga o corpo, feito sintoma, à historia de um sujeito: "[...] ainda me surpreende que os históricos de casos que escrevo pareçam contos e que, como se poderia dizer, eles se ressintam do ar de seriedade da ciência" (FREUD, 1973/f, p. 111).

Elisabeth era a mais nova de três irmãs. Como sua mãe padecia da vista e era enferma nervosa, aproximou-se mais do pai, que desviou para ela o carinho antes destinado ao filho que não teve. Isto fazia de Elisabeth uma pessoa alegre, confiante e independente. O próprio pai vaticinava que com sua atitude lhe resultaria difícil arranjar um marido. Em realidade, a moça tinha projetos de seguir uma carreira científica e se rebelava de ter que sacrificar seus desejos por causa de um matrimônio.

Durante muito tempo o pai ocultara que sofria de uma enfermidade cardíaca, mas um dia trouxeram-no inconsciente para casa. A partir desse dia Elisabeth instituiu a si própria como uma abnegada enfermeira, ficando a seu lado dia e noite e renunciando aos encontros sociais até o dia que o pai faleceu. Nessa época de convalescença, iniciou-se a enfermidade de Elisabeth, com dores na perna direita, a mesma perna na qual apoiava a perna intumescida de seu pai para lhe trocar as ataduras.

Seu pai faleceu um ano depois do ataque do coração. Ao terminar o ano de luto, sua irmã casou-se com um homem inteligente e de boa posição, mas birrento e egoísta, sendo Elisabeth a única a fazer-lhe frente e acusá-lo de contribuir para a infelicidade do lar e solidão da mãe.

O casamento da segunda irmã com um homem mais delicado e atencioso reconcilia Elisabeth com a instituição do casamento e com a idéia de sacrifício a ela enlaçada. Por fim, a mudança de cidade do primeiro cunhado coincide com uma delicada intervenção cirúrgica da mãe. Realizada a cirurgia com sucesso, as três famílias se reúnem numa estação de veraneio para descansar depois de todo esse período extenuante. Foi ali que Elisabeth sentiu, pela primeira vez, as dores nas pernas e a dificuldade em andar.

Nesses dias recebem a notícia que sua segunda irmã, grávida, não esta bem da saúde. Receando o pior, empreendem a viagem para vê-la. As dores de Elisabeth se misturam com os mais tristes temores, infelizmente confirmados.

A partir desse momento, as dores se instalam permanentemente junto com a idéia de que a morte da irmã deve-se à doença cardíaca de seu pai, para ela hereditária, bem como ao infortunado cunhado que colocou a sua irmã em perigo com sucessivas gravidezes.

[...] a partir dessa época Elisabeth não conseguiu afastar de seu pensamento a triste impressão de que, quando por acaso um matrimônio reunia as condições necessárias para ser feliz, tivesse que ter a felicidade tal desfecho (FREUD, 1973/f, p. 112).

A partir dessa época, o cunhado, viúvo e inconsolável, distancia-se da família, na verdade, algo incontornável, uma vez que ele não podia continuar vivendo sob o mesmo teto estando Elisabeth ainda solteira.

O que resta a Elisabeth desta época é um sentimento de desamparo por não poder constituir sua família, "sentimento de que não podia dar um único passo à frente" (FREUD, 1973/f, p. 110). Contudo, Freud entende que as dores de tristeza, frustração e desamparo são humanos, e que só levam a compadecer o sujeito, mas ainda não são causais da neurose, nem ajudam a entender por que o desfecho teria que ser uma abasia dolorosa. Apenas seria possível inferir que a partir desse momento a enferma empregava na sua vida anímica, a dor somática como símbolo da dor psíquica.

A confissão de sua história não produziu modificação alguma no quadro clínico, mas Freud insiste "animado pela firme convicção" de encontrar no inconsciente as determinações e motivos do sintoma histérico. As associações que vão se produzindo a partir daí permitem compor a história secreta de seu sintoma. Em primeiro lugar, é de relevante importância o relacionamento que Elisabeth tinha com seu pai, é aí que encontramos sua satisfação, isto é, na rede de relações e prestígio que o pai lhe proporcionava, o que ela perde com a morte dele. Ela mesma interpreta ser do pai a marca da dor. A perna intumescida do pai marca um lugar em seu corpo, aí onde ele apoiava sua perna quando lhe trocava as ataduras.

Tudo o que na sua vida o pai sustentava caiu por terra com sua morte; sobrou a perna dura, marca da ferida do pai. Marca da queda do pai, recobrindo a falta. Em seu corpo a prova, a assinatura de que por ali passou uma satisfação. O sintoma ali se instala para atestar um desejo inconsciente. Ali, no mesmo ponto onde um furo inscreve a satisfação, instala-se o simbólico. Vertente real e histórica do sintoma (COSTA, 2006).

A série de associações se inicia, na análise, com o pai, passa pelo amor de um rapaz – que por ser do gosto de seu pai lhe fazia pensar que no matrimônio não precisaria renunciar a nada – para culminar na revelação de que o segredo guardado era um segredo para ela própria: seu amor incestuoso por seu cunhado.

Elisabeth rememora, em análise, a tristeza de sua viagem à cidade onde estava sua irmã, as dores que se intensificam, a angustiante marcha através do jardim até a tétrica casa, o leito de sua irmã morta e a dor de ter faltado para lhe dar o consolo de sua companhia, quando, nesse mesmo momento, "cruza por sua imaginação, como um raio atravessando a tempestuosa escuridão, um pensamento diferente: 'Agora ele já está livre e pode me fazer sua mulher'" (FREUD, 1973/f, p. 121). Pensamento inconsciente, que nem sequer chegou à consciência no seu momento, mas que foi recalcado in loco61, portador de uma verdade intolerável da qual o sintoma

se erige em monumento.

Temos aqui a pulsão em luta. Pulsão que exige satisfação mesmo na dor, em luta contra os ideais do Eu, que tem de ceder e admitir que, mesmo julgando-se suficientemente forte para prescindir da ajuda de um homem, sua fria natureza começava a se derreter ansiando pelo amor de um homem.

Temos aqui o sintoma realizando um desejo, desejo que é tanto de não ceder do prestígio advindo do pai, como de situar que este desejo não anda, não caminha e que no seu desejo de reconstruir seu lar não poderia prescindir do amor de um homem. Não anda porque o desejo de Elisabeth é conquistar o amor como sua irmã, porém sem ter que pagar o preço da renúncia de sua posição fálica que a identificação com o pai, através da perna intumescida, lhe assegurava. A realização de desejos toma a forma de castigo em que o órgão se desgarra – não poder andar e sofrer intensas dores – não deixa de ser a forma sintomática em que se realiza o desejo inconsciente. Desejo inconsciente que sua perna endurecida coloca como pergunta, claramente na sua enunciação, como a questão do próprio sujeito: Que sou como mulher?

O final já é conhecido, Freud não deixa passar a oportunidade de ver a sua paciente entregue aos prazeres da dança na casa de uns amigos em

comum62. Posteriormente soube que Elisabeth contraiu matrimônio por livre

inclinação com um estrangeiro 63.

Não quero me privar de terminar o comentário do caso Elisabeth sem citar uma passagem de "Dafnis e Cloe", pastoral de autoria de Longo, poeta grego que viveu na ilha de Lesbos por volta do século segundo depois de Cristo. "Sim, estou doente, mas qual é o meu mal? Não sei; sofro, e não estou ferida; queimo, e estou sentada sob uma sombra densa [...] Era o que ela sentia, era o que ela dizia, enquanto buscava o nome do [...] amor" (LONGO, 1991, p.33-34)64.