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1.2 Epistemologia como práxis: a normatividade como conjunção de texto e realidade

1.2.3 A ciência jurídica como ciência decisória referida a normas

Tradicionalmente tem-se classificado as ciências em duas grandes categorias: humanas (sociais) e naturais (exatas). Nesse debate, a ciência jurídica tem aparecido como uma ciência normativa ou então, situada conjuntamente com as ciências sociais (humanas) como a história, a sociologia, a antropologia, etc. Contudo, ela goza de particularidades que, numa análise minuciosa, afasta-a de tais ciências, não permitindo equiparações generalizantes. É certo que o conteúdo (matéria) histórico da ciência jurídica distancia-a das ciências ditas exatas. No entanto, também é de se reconhecer que sua íntima relação com textos de normas vigentes distancia-a das demais ciências humanas, que não possuem tal tipo de vinculação. Essa relação necessária entre a ciência jurídica e os textos de normas exige uma caracterização epistemologicamente adequada desse setor do pensamento. Esse, pois, um dos primeiros objetivos da arquitetônica de Friedrich Müller, o ponto fundamental a partir do qual sua teoria estruturante ganha inteligibilidade.

O pilar fundamental da teoria estruturante do direito é uma concepção, ela também estruturante, da norma jurídica. Tal entendimento pauta-se em uma proposta que reconfigura o debate entre norma e realidade por meio de uma redefinição da pergunta fundamental do direito: em vez de perguntar-se abstratamente sobre como se relacionam direito e realidade, ou norma e realidade, Friedrich Müller passa a perguntar-se sobre a normatividade e sobre a estrutura da norma jurídica. Deixam-se, portanto, análises de cunho puramente ontológico ligadas à filosofia do Direito (e do Estado) e eleva-se a questão a um problema de teoria da norma jurídica e, conseqüentemente, a um problema de método. Daí que: “a tarefa da ciência jurídica é circunscrita pela norma jurídica (que deve ser elaborada no caso concreto)”47 (MÜLLER, 1996, p. 216).

A questão fundamental da ciência jurídica no período que vai do final do século XIX ao fim da República de Weimar, em 1933 – mas não somente até aqui –, consiste em delimitar e situar epistemologicamente o Direito a partir do debate entre ciências humanas e ciências naturais. Ocorre que o período posterior à Segunda Guerra traz consigo uma profunda relativização dessa dicotomia (ciências naturais vs. ciências humanas), bem como uma relativização da própria caracterização epistemológica da noção de ciência (seja “natural”, seja “humana”).

Para Friedrich Müller, no atual estágio da discussão, a busca por critérios absolutos no âmbito científico tornou-se uma questão sem sentido, assumindo o status de ponto-chave a formulação precisa das diferenças e distinções graduais que cada “ciência” possui como característica distintiva (cf. MÜLLER, 1995, p. 13-14; 1989, p. 113). Por isso, para a teoria

estruturante do direito, a ciência jurídica deve preocupar-se menos (na verdade, não se preocupar) com uma eventual delimitação conceitual com referência às ciências naturais do que com a análise da estrutura da norma e de sua normatividade.

Não se trata, portanto, de buscar elementos que tendam a afastar (ou a aproximar) a ciência jurídica das ciências naturais ou das ciências humanas. Esse debate, na acepção de Müller, é de somenos importância, posto que para o autor a ciência jurídica tem uma tarefa muito particular que lhe permite caracterizar epistemologicamente sem necessidade de um encaixe dentro de uma das duas grandes espécies de ciência. Nas palavras do autor:

À ciência do Direito apresenta-se, assim, a tarefa [...] de analisar por sua conta a particularidade das normas jurídicas e de perguntar-se de que

47 Tradução livre.

maneira atuam os elementos da realidade social dentro dos distintos passos da concretização do Direito (MÜLLER, 1989, p. 113)48.

A crítica que Friedrich Müller tece à separação entre ser e dever ser (entre norma e realidade) levará à crítica da concepção da ciência jurídica como ciência humana normativa referida à realidade (cf. MÜLLER, 1995, p. 12-13). E essa crítica nasce, em especial, de uma reformulação da questão epistemológica fundamental no plano da metódica jurídica. Ao invés de se perguntar “Que espécie de ciência entre as ciências é a Dogmática Jurídica?” (1995, p. 14), o autor passa à seguinte indagação: “O que ocorre efetivamente, quando se pode afirmar de um determinado ordenamento jurídico que ele funciona, que ele tem ‘vigência’?” (1995, p. 14). Não se trata mais de – num plano abstrato – definir que tipo de ciência é o Direito, mas de se perguntar – numa perspectiva dinâmica e intimamente ligada à práxis jurídica – como age, funciona o Direito de um determinado (historicamente situado) tipo de Estado: o Estado

democrático de direito.

Para responder a essa questão Müller parte da diferenciação entre validade e vigência. A validade decorre aqui do estabelecimento da norma pela entidade competente e legitimada para a função. O teor de obrigatoriedade da norma jurídica advém do fato de haver sido (o texto da norma) “fixado com força de autoridade numa única redação determinada” (1995, p. 22). Nessa perspectiva, desde a Constituição legitimamente estabelecida até o mais simples ato legislativo somente existem textos de normas válidos, pois instituídos por aqueles que possuem competência (constitucionalmente fixada) para tanto.

Por outro lado, a vigência do texto da norma não deflui pura e simplesmente do fato de seu estabelecimento. A vigência de uma norma decorre de sua concretização na práxis cotidiana pelos trabalhadores (operadores) jurídicos. Assim, a validade apresenta-se como uma característica estática dos textos de normas, ao passo que a vigência afigura-se com uma característica dinâmica das normas jurídicas (textos válidos concretizados). Nas palavras do próprio Müller (2004: p. 35):

Uma norma jurídica é materialmente determinada. Por isso, como também em virtude dessa determinidade material, ela determina, por sua vez, as coisas, consegue responder a perguntas, “vige” como um complexo sui

generis de regulamentações, capaz de solucionar por via da concretização o caso e o conflito em questão. O mero ato de instituir não é suficiente; a vigência no sentido mencionado confere concreção, eficácia social ao fato de estar instituído.

48 Tradução livre.

Müller entende que nas atuais sociedades, dentre as diversas normas sociais existentes, assumem destaque aquelas que, por serem estabelecidas pelo legislador democrático, gozam de validade e, portanto, apresentam-se como obrigatórias. Por outro lado, há “funções” (competências constitucionalmente definidas) que atualizam esse conjunto válido-obrigatório de normas, conferindo-lhes aplicabilidade concreta, vale dizer, vigência. Essa tarefa de conferir vigência aos textos das normas está, primordialmente, a cargo dos juristas, chamados por Müller de “trabalhadores jurídicos”, ou, ainda, “operadores do direito” (cf. 1995, p. 22- 23)49.

Para o autor alemão:

O seu trabalho [o dos “operadores jurídicos”] com referência ao ordenamento jurídico, i. é, à totalidade “em funcionamento” das normas [...] é sempre um trabalho com referência à sociedade, dotado de caráter

decisório (MÜLLER, 1995, p. 22).

Desse esquema de funcionamento do ordenamento jurídico decorre o fato de que aquela ciência “[...] que trabalha as normas e as seqüências de ‘normatividade’ [...], i. é, a ciência jurídica, é por conseguinte uma ciência social muito peculiar e ao mesmo tempo uma

ciência decisória (1995, p. 23). Daí defender Müller a primazia do nome “ciência decisória”, segundo ele, mais preciso do que a tradicional designação “ciência normativa”.

A questão acerca da cientificidade da “ciência” jurídica, segundo Müller, resolve-se a partir de seu método. Assim, só é possível falar de “ciência jurídica” a partir da compreensão da Dogmática Jurídica (a Jurisprudência, na terminologia alemã) por meio de uma metódica

científica. Ou seja, é o estabelecimento de uma metódica jurídica que eleva a ciência jurídica à categoria científica, à qualificação de ciência decisória. E esse proceder metódico tem por função primordial analisar – cientificamente – como, de fato, operam os “trabalhadores jurídicos” (juristas) e mais: como são realmente tomadas as decisões judiciais.

Essa metódica jurídica, ao mesmo tempo em que analisa como atuam em seu labor cotidiano os “operadores do direito”, assume a tarefa de, no plano específico da concretização constitucional, conciliar “norma” e “realidade”, vale dizer, compete-lhe a verificação das condicionantes factuais que atuam sobre o processo de realização do direito. Eis o lugar da

metódica jurídica dentro da epistemologia de Müller: ela é o instrumento de operacionalização da práxis. Em verdade, é na soma da teoria estruturada da norma com a metódica que a trabalha, que a ciência jurídica, como ciência decisória, ganha concretude.