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1.4 Uma teoria indutiva: a prática jurisprudencial do Tribunal Federal Constitucional

1.4.1 A metódica do Tribunal Federal Constitucional

Constitucionalmente previsto nos artigos 92 a 94 da Lei Fundamental alemã (1949), o Tribunal somente foi instituído por lei em 1951. Nasce, portanto, em um momento histórico singular da vida constitucional alemã que, após toda a riqueza do debate dos tempos de Weimar, viveu durante as décadas de 30 e de 40, ou o vácuo institucional do regime nazista, ou seus efeitos mais próximos. Conseqüência direta da lembrança nazista na teoria jurídica alemã (principalmente no âmbito da filosofia do direito) do início da segunda metade do século passado foi o renascer jusnaturalista, que na leitura de Paulo Bonavides (2005, p. [II]), “foi um relâmpago, não uma lâmpada”71.

De fato, um retorno ao jusnaturalismo apresentava-se como a primeira e mais acertada medida de reação contra a experiência jurídica (ou sua ausência) nazista. Contudo, em que pese o esforço de Gustav Radbruch, que do positivismo converteu-se ao jusnaturalismo e foi o expoente do “renascer” jusnaturalista dos anos 50, a proposta não obteve maiores êxitos. E isso em razão de um dado fundamental: o ano de 1953 conhece a publicação de Topik und

Jurisprudenz (Tópica e Jurisprudência), de Theodor Viehweg, obra que faz ressurgir a tópica. E com a tópica – afirma Paulo Bonavides (2000, p. 446) – “inaugurou-se para a hermenêutica contemporânea [especialmente para a alemã] uma direção indubitavelmente renovadora”72.

Assim, a derrocada do positivismo e os renasceres jusnaturalista e tópico compuseram o quadro teórico-hermenêutico alemão do pós-Segunda Guerra Mundial, pelo menos nos anos imediatamente posteriores ao fim do conflito. O Tribunal Federal Constitucional, que nasce nesse contexto histórico, estava órfão de um posicionamento hermenêutico que fosse predominante e que, além disso, gozasse de amadurecimento e consolidação teóricos. Não lhe restou outra opção a não ser – pelo menos no plano retórico – manter-se ligado à tradição.

Com efeito, já em suas primeiras decisões, em seus primeiros acórdãos, o Tribunal Federal Constitucional se autodenominava um seguidor da tradicional teoria da interpretação,

71 No mesmo sentido, cf. Kaufmann, 2004, p. 46-48.

72 Para o Prof. Paulo Bonavides a ressonância do método tópico na hermenêutica alemã adquire status de um verdadeiro marco, um divisor de águas: “O prestígio da tópica em toda a Alemanha logo se fez sentir com a adesão de três civilistas eminentes – Wieacker, Esser e Coing – seguida de apoio de constitucionalistas de peso, como Schneider e Ehmke, relatores do tema ‘Princípios de Interpretação Constitucional’, exposto na assembléia de 1961 dos professores de direito público daquele país” (2000, p. 448). Continua, ainda, o Prof. Paulo Bonavides, agora numa afirmação mais discutível, defendendo que também se voltaram para o método tópico, “nomeadamente para uma teoria material da Constituição, construindo estradas próprias com o propósito de alcançar objetivos semelhantes, juristas da envergadura de Martin Kriele, Peter Häberle, Friedrich Müller e Konrad Hesse” (2000, p. 448).

segundo a qual a resolução de um caso jurídico dar-se-ia de forma silogística: uma premissa maior (o texto da lei), uma premissa menor (os fatos concretos) e a conclusão (a decisão) (cf. MÜLLER, 1996, p. 52-55). Entretanto, para que o silogismo possa ser desencadeado, um passo prévio faz-se antes necessário: estabelecer o conteúdo da norma, o que se dá com o auxílio dos métodos (tradicionais) de interpretação.

Essa teoria – a tradicional – sempre se perguntou qual seria o objetivo da interpretação: a “vontade do legislador” ou a “vontade (objetiva) da lei”? Conseqüentemente, esta questão não deixou de ocorrer ao Tribunal, que se filiou – ao menos discursivamente – à tese objetivista73. Müller afirma que, já em um julgamento de 21 de maio de 195274, decidiu- se que “é a vontade do legislador, tal qual ela se exprime e se objetiva na disposição legislativa, que é determinante para a interpretação desta disposição [...]”75. A tese é relativamente simples: “A ‘vontade do legislador’ encontra-se objetivada na lei” (BVerfGE 11,26, apud. SCHWABE, 2003, p. 02), o que corresponde a uma espécie de objetivação da

tese subjetivista76. E para atingir tal desiderato, ou seja, a vontade legislativa objetivada no texto da lei – como defende a teoria tradicional – é lícito ao Tribunal valer-se, de forma coordenada e complementar, dos métodos gramatical, sistemático, teleológico e histórico (BVerfGE 11,26, apud. SCHWABE, 2003, p. 02; MÜLLER, 1996, p. 52). Com o auxílio de tais métodos, seria possível ao julgador descobrir a “vontade da lei”77.

Entrentanto, em que pese ser lícito e recomendável ao responsável pela decisão judicial trabalhar os métodos de forma coordenada e complementar, o discurso jurisprudencial

73 A tese objetivista surgiu e ganhou força já no final do séc. XIX, quando se professava: “[...] se a lei vale menos, em último termo, por ser ‘positiva’ do que por ser ‘racional’, mais do que à vontade empírica do legislador cumpre recorrer à sua vontade ‘racional’, ou seja, à razão jurídica contida na lei” (LARENZ, 1989, p. 35). Foi a essa exigência “que correspondeu a teoria ‘objectivista’ da interpretação, tal como foi exposta, nos anos 1885 e 1886, quase simultaneamente por três dos mais significativos teorizadores do Direito da época: Binding, Wach e Kohler”, explica-nos Larenz (1989, p. 35-36). Sobre a tese central do voluntarismo objetivista, Larenz afirma tratar-se de uma concepção que defende “não apenas que a lei, uma vez promulgada pode, como qualquer palavra dita ou escrita, ter para outros uma significação em que não pensava o seu autor – o que seria um truísmo –, mas ainda que o juridicamente decisivo é, em lugar do que pensou o autor da lei, uma significação ‘objectiva’, independente dele e imanente à mesma lei” (1989, p. 36).

74 Decisão em BVerfGE 1, 299 (312). Confirmada nas seguintes: BVerfGE 6, 55 (75), BVerfGE 10, 234 (244),

BVerfGE 11, 126 (130). Cf. Müller (1996, p. 53, nota 1). A sigla (BVerfGE) refere-se ao Repertório de Decisões da Corte Constitucional Federal. Os dois números que a seguem, separados por uma vírgula, indicam, respectivamente, o tomo em que a decisão aparece e a página onde está transcrito o trecho citado.

75 Tradução livre.

76 Contudo, a consistência da tese objetivista não era um dado na jurisprudência do Tribunal. Em diversos julgamentos, como por exemplo, em BVerfGE 2, 266; 4, 299 (citados por Müller, 1996, p. 56), o decisivo foram argumentos referentes aos trabalhos preparatórios da Constituição, vale dizer, aqueles referentes à vontade constituinte, sem que tal abandono da tese objetivista tenha sido devidamente justificado.

77 Segundo Müller, comentando a concepção reinante na jurisprudência do Tribunal: “A interpretação da letra do

texto (interpretação gramatical), de seu contexto (interpretação sistemática), de seu objetivo (interpretação teleológica), bem como a interpretação dos trabalhos preparatórios e da gênese do texto (interpretação histórica ou genética) não têm outro objetivo a não ser descobrir a vontade do legislador tal como objetivada na lei” (1996, p. 53-54) (Tradução livre).

do Tribunal, aponta Müller (1996, p. 54), acenava com uma espécie de hierarquização

racional dos cânones, onde a primazia parecia recair, “sem outras justificações mais precisas” – e esse é um dado fundamental –, “sobre a letra e o contexto sistemático da disposição legal” (1996, p. 54)78. No entanto, já em um julgamento de 1952, (cf. MÜLLER, 1996, p. 54), os aspectos sistemático e teleológico pareciam dotados de um peso decisivo, sendo o texto da norma “cronologicamente utilizado como a primeira instância de seleção entre as soluções possíveis e, objetivamente, como o limite imposto às distintas soluções aceitáveis” (1996, p. 55)79.

Percebe-se que, mesmo dentro da área restrita da concepção tradicional, a jurisprudência do Tribunal já apresentava inconsistências e divergências de cunho metodológico. Contudo, o recurso à teoria tradicional da interpretação era apenas a retórica do Tribunal alemão, pois, como viria a demonstrar sua prática, o processo que então se iniciava de concretização da Lei Fundamental alemã de 1949 exigiria um agir interpretativo muito mais complexo e de difícil fundamentação do que o declarado pelo Tribunal em suas primeiras decisões.

A teoria constitucional alemã ainda não possuía uma tradição hermenêutica apropriada para um especial tipo de disposição legislativa: as normas constitucionais abertas da Lei Fundamental de 1949. O Tribunal Federal Constitucional, um dos principais responsáveis pela concretização da nova Carta alemã, sentiu tal ausência, a ponto de Müller afirmar que se afigura “quase impossível entender a prática decisória da Corte constitucional federal à luz das regras sobre as quais afirma ter feito seu programa” (1996, p. 55)80. Ou seja, a prática efetiva e o discurso teórico (retórico) do Tribunal não se coadunavam. Seus dois postulados

interpretativos, quais sejam, o da busca da vontade objetiva do legislador e o do recurso aos cânones interpretativos que remontam a Savigny, por si só, mostraram-se demasiadamente distantes de obter êxito na fundamentação das decisões. E isso é pontualmente detectado por Müller, que critica a jurisprudência da Corte afirmando que:

As inconseqüências, que colocam em questão o valor da posição metodológica formulada a título de princípio pela Corte constitucional federal, são essencialmente devidas à insuficiência objetiva dos pontos de vista sobre a concretização, tais como são definidos de maneira programática pela alta jurisdição (MÜLLER, 1996, p. 57-58)81.

78 Tradução livre.

79 Tradução livre. 80 Tradução livre. 81 Tradução livre.

Müller ainda defende que, tanto o dogma voluntarista da metodologia alemã do séc. XIX, quanto a idéia de que a concretização de uma norma restringe-se a uma interpretação de seu texto tendente a reexecutar uma vontade (pré)-existente e, ainda, a concepção do raciocínio jurídico como silogístico, de modo algum adaptam-se às exigência atuais de concretização de um Texto Constitucional, bem como à própria prática real do processo de decisão (MÜLLER, 1996, p. 58); fatos esses significativamente comprovados pela prática decisória da mais alta Corte alemã.

A razão da incompatibilidade entre a prática decisória real da Corte e aquilo que, por vezes, aparecia na fundamentação dos acórdãos como sendo a teoria seguida por sua jurisprudência resulta, na opinião de Müller, da “insuficiência objetiva dos fundamentos sobre os quais repousam as profissões de fé que a uma falta onerando sobre o fundo o caractere sustentável das decisões judiciais” (1996, p. 59)82.

E essa insuficiência metodológica ficou cristalina a partir do momento em que a própria Corte alemã começou a valer-se de novos recursos interpretativos, tais como: o princípio da unidade da Constituição, a interpretação conforme a Constituição e, ainda. o critério da correção funcional. Daqui em diante, ainda que tal ação não fosse deliberadamente voluntária, a jurisprudência da Corte Constitucional alemã tendente a concretizar o Texto constitucional de 1949 passou a demonstrar de forma inconteste que a teoria tradicional da interpretação não servia à sua nobre tarefa constitucional.

1.4.2 A superação da teoria tradicional a partir da inserção dos elementos