• Nenhum resultado encontrado

A ciência pós-moderna e o pós-positivismo

CAPÍTULO 1: EPISTEMOLOGIA, CIÊNCIA E DIREITO

1.3 A CIÊNCIA DO DIREITO: A INFLUÊNCIA DO

1.3.3 A ciência pós-moderna e o pós-positivismo

O lema da Revolução de 1789 — Liberdade, Igualdade e Fraternidade — não alcançou todos os homens, o que produziu a intensificação das diferenças entre classes sociais e, principalmente, entre países. Embora as suas promessas tenham sido guiadas pelo tom da universalidade, terminaram incumpridas para diversas localidades. A existência de uma vida moderna – com segurança, liberdade e disponibilidade de bem-estar – ficou longe de ser alcançada por todos. Assim, pode-se considerar o projeto utópico da Revolução Francesa, em parte, fracassado. Boa parte daquilo que se pregava, não aconteceu.

É exatamente desse fracasso que se considera ter nascido o atual momento da pós-modernidade, marcado por uma sociedade pós- industrial, de consumo, assim como pelo risco e excessivo individualismo do homem. (LYOTARD, 1984)

No entanto, Giddens (1991, p. 13) destaca que ―em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes‖. Na mesma linha, aponta Charles (2009, p. 127-135) que o atual momento deve ser conceituado como ―hipermoderno‖, pois retrata o excesso de características modernas.

O pós-modernismo, na concepção de Santos (2006, p. 18), é ―um fantasma que passeia por castelos modernos‖. Na lição do autor, esse fantasma rodeia a humanidade desde os anos 1980. Desta forma, as

relações entre modernidade e pós-modernidade são ambíguas, haja vista que não existe um posicionamento pacífico na doutrina. O individualismo atual, por exemplo, nasceu com o modernismo, com a Revolução Francesa, mas seu exagero narcisista é um acréscimo pós- moderno.

O futuro passou a ser visto como algo ―assustadoramente desconhecido e impenetrável. No mar das incertezas, procura-se a salvação nas ilhotas da segurança‖, consoante anota Bauman (2004, p. 44). Referidas ilhas, no entanto, garantidoras de segurança, são incertas demais, inserindo o homem cada vez mais em sentimentos relacionados ao medo e à insegurança (BAUMAN, 1998).

Sobre o tema, Feyerabend (2010, p. 361) aponta que ―a maneira pela qual os problemas científicos são atacados e resolvidos depende das circunstâncias em que esses problemas surgem, dos meios (formais, experimentais, ideológicos) disponíveis naquele momento e dos desejos de todos que estão lidando com eles‖. Para o autor, não há qualquer limite permanente da pesquisa científica, da mesma forma em que limite não existe para a ação humana, no caso de problemas socioculturais.

Ante tal realidade é que se deve buscar estabelecer zonas seguras para a humanidade. Não se pode viver à mercê de riscos e de incertezas, de forma total, sob pena de se viver em um verdadeiro caos ou retroceder ao estado de natureza hobbesiano. (HAACK, 2011)

A pós-modernidade é caracterizada ainda pela liquidez dos conceitos. Diz-se líquido aquilo que não é sólido, isto é, que não se enquadra em formas rígidas. Ao contrário, trata-se de conceitos maleáveis, flexíveis, fluidos. Essa nova realidade reflete diretamente na vida do homem, que sofre diante da crise de valores, como relata Adela Cortina (1998, p. 15), e em todas as vidas da atual e das futuras gerações.

O ―caráter líquido dos conceitos‖, referido por Bauman, não está limitado às relações humanas. Ao contrário, percebe-se que a insegurança e a incerteza estão se espalhando por todo o conhecimento científico, provocando, assim, uma crise no paradigma moderno de ciência.

Sobre a problematização do conhecimento, expõe Popper (2007, p. 14): ―o conhecimento não começa de percepções ou observações ou de coleção de fatos ou números, porém, começa mais propriamente, de problemas‖. Ao se deparar com um problema e achar uma solução adequada, não significa o fim de um ciclo, pois a cada nova solução, há novos problemas, surgindo a necessidade de novas soluções.

Trabalhar com a ideia de uma verdade absoluta ou pautado em paradigmas, com o objetivo de elaborar um conhecimento científico, é criar falsas conclusões sobre a pesquisa, pois o meio utilizado para o fim limita o senso crítico e as possibilidades de conclusões do pesquisador.

Na mesma linha, manifesta-se Gleiser (2014, p. 325-326): [...] embora as ciências físicas e sociais sejam capazes de iluminar muitos aspectos do conhecimento, não têm como missão responder a todas as perguntas. Nem todas as perguntas têm respostas. Imaginar que a ciência tenha todas as respostas é diminuir o espírito humano, amarrar suas asas, roubando-lhe de sua existência multifacetada.

A proposta da sociedade de risco, referenciada por Beck, é oportuna às limitações do conhecimento científico. A sociedade pós- industrial produz riscos que podem ser controlados e outros que escapam ou neutralizam os mecanismos de controle típicos da sociedade industrial.

Nessa toada, destaca-se que Beck (1995) defende a existência de duas modalidades de risco: o concreto ou potencial, que é visível e previsível pelo conhecimento humano (modernidade simples); e o abstrato, que tem como característica a invisibilidade e a imprevisibilidade pela racionalidade humana (modernidade reflexiva ou pós-modernidade).

Sob a mesma ideia de Beck, aponta Giddens (2002, p. 44-45) que o risco é expressão de sociedades que se organizam sob a ênfase da inovação, da mudança e da ousadia. Questiona-se, por conseguinte, a própria prudência e cautela da ciência em lidar com as inovações tecnológicas e ambientais que, mesmo trazendo benefícios, estão causando riscos sociais não mensuráveis.

Para agravar ainda mais o clima de incertezas a que se está imerso, o desenvolvimento econômico abafa as consequências negativas do seu progresso, isto é, há uma invisibilidade dos riscos ecológicos, decorrente do fato de que o Estado e os setores privados interessados utilizam meios e instrumentos para ocultar as origens e os efeitos do risco ecológico, com o objetivo de diminuir suas consequências, ou melhor, com o fim de transmitir para a sociedade uma falsa ideia de que o risco ecológico está controlado.

É o que Beck (1995) apontou como irresponsabilidade organizada. Para o teórico, apesar da consciência da existência de riscos, estes são ocultados pelo Poder Público e pelo setor privado. Assim, a irresponsabilidade organizada acaba transformando o ―Estado em faz de conta‖, em ―Estado fantoche‖, que só dá publicidade aos fatos científicos de acordo com seus interesses.

Nota-se que a sociedade contemporânea está pautada em uma irresponsabilidade organizada, haja vista que as instituições públicas e civis parecem ainda não terem se despertado para a necessidade de uma gestão compartilhada do risco. Aliás, caso tenham se atentado, é preferível o silêncio, contribuindo para um anonimato geral. No entanto, na medida em que a sociedade percebe uma incongruência do discurso público com as consequências da crise ambiental e dos riscos a ela inerentes, perde-se o referencial sólido do próprio Poder Público, incorporando-se à liquidez sugerida por Bauman.

Como se vê, o risco é inerente à vida em sociedade. A aceitabilidade do risco é própria da necessidade de desenvolvimento da civilização. Hodiernamente, o risco da vida em sociedade adquiriu proporções oceânicas, nunca antes imaginadas, marcando a civilização pós-moderna por uma atmosfera de insegurança e de incertezas, fruto dos excessivos riscos aceitos por esta.

É preciso construir uma governança dos riscos. Nesse sentido, o Direito, como ciência, precisa abrir espaços para discussões em torno de novas formas de sociabilidade, por meio da criação de instrumentos jurídicos que busquem trazer à baila medidas de gerenciamento preventivo do risco.

Goldblatt (1996, p. 232), ao analisar a obra de Beck, aponta que as formas contemporâneas de degradação do ambiente evidenciadas pelo referido autor não estão limitadas em termos de espaço ao âmbito do seu impacto, muito menos confinadas em um âmbito social a determinadas sociedades. Ao contrário, são potencialmente globais dentro do seu alcance.

A própria ideia de tempo no Direito, na lição de Ost (2005), também é questionada, dentro de uma perspectiva histórica não linear, o que demanda um diálogo entre presente, passado e futuro, envolvendo os princípios de responsabilidade e de equidade intergeracional.

Dessa forma, constata-se que a razão humana, ora absoluta, que permitiu ao homem a busca pela ciência e tecnologia como resposta para todas suas inquietações, tornou-se relativa. Nem tudo o que o homem conhece é feito de forma segura, restando espaços vazios incalculáveis que podem ser a causa de efeitos irreparáveis.

Não há como se ―encaixotar‖ todos os problemas a partir de um silogismo. É por isso que a ciência pós-moderna se abre, se reinventa e se constrói a partir de uma nova racionalidade, o que traz repercussão, por conseguinte, para o Direito e, em especial, para a segurança jurídica. (DOUZINAS, 2004)

Inaugura-se um novo período intitulado de pós-positivista (DUARTE; POZZOLO, 2010), onde ocorre a superação dialética da antítese entre positivismo e jusnaturalismo, com a distinção das normas jurídicas em regras e princípios (CADEMARTORI; DUARTE, 2009), tendo como conteúdo os valores. 24Além da normatividade alcançada pelos princípios, percebe-se que os valores fazem parte das ciências sociais e, por consequência, do Direito, amadurecendo a tridimensionalidade de Miguel Reale (1994).

Com a perspectiva do pós-positivismo, os princípios alcançaram patamar de norma jurídica, e o valor passa a ser conteúdo do Direito (ALEXY, 2008; ENTERRÍA, 1999). Justiça e segurança abandonam a relação maniqueísta (dualista e cartesiana), reunindo-se na manifestação dos princípios jurídicos. A dignidade da pessoa humana é o influxo, o coração dos direitos fundamentais (MENDES, 2000), vinculando toda a ordem jurídica no âmbito do Estado Constitucional.

Atualmente, a discussão da segurança jurídica retorna mais forte do que nunca, porém numa perspectiva diferenciada. Se o próprio

24

É importante estabelecer as diferenças entre neoconstitucionalismo e o constitucionalismo garantista. O neoconstitucionalismo é, de uma forma geral, uma linha de pensamento no âmbito do pós-positivismo, que aproxima o Direito da moral, defende a distinção das normas em regras e princípios e, portanto, a necessidade de técnicas hermenêuticas específicas, o que aumenta a possibilidade de controle jurisdicional. Em sentido oposto, o constitucionalismo garantista, cujo principal marco teórico é Luigi Ferrajoli (2008), é uma corrente de continuação ou complementação do positivismo jurídico, cujo objetivo é desenvolver os postulados do positivismo a partir das alterações estruturais engendradas pelo Estado Constitucional. O garantismo possui quatro características basilares: (i) apesar de reconhecer que as normas jurídicas possuem um conteúdo moral ou uma pretensão de justiça, defende a separação entre Direito e Moral como fundamento da ciência jurídica; (ii) afirma o papel normativo da Constituição sem distinção de cunho qualitativo de suas normas, (iii) defende o método da subsunção para aplicação das normas constitucionais e considera, portanto, inoperante a técnica da ponderação; (iv) reconhece a importância da atividade legislativa frente às lacunas e do Judiciário apenas como agente denunciador dessas antinomias entre a Constituição e a legislação ordinária. (BORBA, 2014, p. 109)

sistema jurídico já parecia um paradoxo (que era fechado e endógeno), uma vez que segurança exacerbada gera insegurança (ÁVILA, 2011, p. 40), a partir do momento que esse sistema se abre e se liga com outros sistemas (dialógico e exógeno), em especial as teorias sobre os riscos, o paradoxo se torna maior.

É inconteste a importância da segurança jurídica para a ciência do Direito. Seu objetivo é assegurar ao próprio Estado a estabilidade das instituições, a harmonia da sociedade e a confiabilidade dos cidadãos nos órgãos estatais. Sobre o tema, afirma Perez Luño (1991, p. 8):

A segurança é, sobretudo e antes que nada, uma radical necessidade antropológica humana e o ―saber ao que agarrar-se‖ é um elemento constitutivo da aplicação individual e social à segurança; raiz comum de suas distintas manifestações na vida e fundamento de sua razão de ser como valor jurídico.

Discorre Silva (1997, p. 412) que o direito à segurança jurídica é ―o conjunto de condições que tornam possíveis às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida‖.

Ocorre que a relação entre segurança e insegurança é ontológica. Os processos sociais são mais velozes do que os legiferantes. Foi-se a época em que o legislador tudo queria prever, tudo queria abarcar, retrato de um Estado oitocentista. O estudo da segurança jurídica muda (e deve mudar) de acordo com o tempo e o contexto.

É oportuna a observação de Reale (1994, p. 87):

[...] se é verdade que quanto mais o direito se torna certo, mais gera condições de segurança, também é necessário não esquecer que a certeza estática e definitiva acabaria por destruir a formulação de novas soluções mais adequadas à vida, e essa impossibilidade de inovar acabaria gerando a revolta e a insegurança. Chego mesmo a dizer que uma segurança absolutamente certa seria uma razão de insegurança, visto ser conatural ao homem – único ente dotado de liberdade e poder de síntese – o impulso para a mudança e a perfectibilidade [...]

Em um primeiro momento, a fundamentação da segurança jurídica clássica é influenciada pelo positivismo jurídico, momento em que a teoria do Direito foi marcada pelas características da modernidade simples, do pensamento linear, da razão cartesiana e dos raciocínios silogísticos.

Não obstante a abertura que é conferida pelo pós-positivismo, é preciso confiança no Estado, conhecer as leis, cumprir os contratos pactuados entre particulares, enfim, ter previsibilidade do que pode acontecer. O objetivo da segurança jurídica é assegurar ao próprio Estado a estabilidade das instituições, a harmonia da sociedade e a confiabilidade dos cidadãos nos órgãos estatais.

Humberto Ávila (2011, p. 44) aponta a existência de um grande paradoxo na segurança jurídica: ―o combate à insegurança contribui para a insegurança. Quanto mais segurança por meio do Direito se pretende garantir, menos segurança do Direito se pode conquistar‖.

Se a vontade do Estado é proteger o indivíduo, o processo legislativo tende a ser maior. Leis cada vez mais detalhadas e específicas. Nesse caso, tem-se um Direito mais assecuratório, porém menos acessível, haja vista que a ―máquina‖ de fazer normas é tão veloz que não há possibilidade de se conhecer todos os instrumentos normativos vigentes. É o que autor chama de ―segurança pelo Direito‖.

Por outro lado, se o Estado pretende que os cidadãos conheçam as normas, que o Direito seja acessível e, de alguma forma, previsível, é preciso que o processo legislativo seja menor. Por conseguinte, aumenta-se a quantidade de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais prevista nas leis, cujo conteúdo será preenchido no caso concreto, em especial pelo administrador público. Aqui entra a discricionariedade administrativa do Poder Executivo, por meio de decretos, portarias, resoluções, instruções normativas, dentre outros. É, pois, a ―segurança do Direito‖.

Como se vê, não obstante o objetivo do Estado seja a ―segurança pelo Direito‖ ou a ―segurança do Direito‖, sempre haverá insegurança. Para Ávila (2011, p. 47), ―se o Direito é mais seguro, porque mais acessível, precisa ser menos assecuratório; se o Direito é mais assecuratório, enquanto mais protetivo, precisa ser menos acessível‖.

É preciso romper o imaginário jurídico formal e encaixotado da Epistemologia Jurídica, sendo o diálogo de saberes um caminho possível (e nunca a solução) para uma nova racionalidade jurídica que busque alinhar uma epistemologia ambiental a partir da complexidade, na esperança de poder contribuir, de alguma forma, com o Direito

Ambiental. Até porque não há avanços, sem falhas, como lembra Gleiser (2014, p. 325):

A esperança de que podemos atingir o conhecimento total é muito simplista. A ciência precisa falhar para avançar. Queremos certezas. Mas, para crescer, precisamos abraçar as incertezas. Estamos cercados por horizontes, pela incompletude. Vemos apenas sombras nas paredes de cavernas. Por outro lado, a existência de limites não deve ser vista como um obstáculo intransponível. Limites são oportunidades, alavancas que nos ensinam algo sobre o mundo e sobre nós mesmos, que nos incentivam a prosseguir na busca de respostas. Sem limites, não poderíamos saber quem somos, não poderíamos tentar ir além. Limites expandem as possibilidades de quem podemos ser. O mesmo processo de crescimento que vemos na ciência – para a frente, para trás, mas sempre avante – identificamos nas nossas buscas individuais. O dia em que nosso medo nos impedir de explorar o desconhecido será o dia em que pararemos de crescer.

As inquietações são várias, mas é a busca pela resposta que permite conhecer algo além do que se esperava descobrir, talvez até mais encantador, desconstruidor e envolvente. Como dizia Heiddeger, quem pensa grande, erra grande. Para tanto, vários barcos foram destruídos e uma nova barca se reergue. Às vezes pode-se ter a sensação de desordem, mas a própria complexidade induz ao processo de insegurança e de perda, para depois retomar a ordem. Saberes serão religados e novas conexões serão feitas. Rumo ao próximo capítulo – o paradigma da complexidade - cujas premissas são fundamentais para uma reviravolta epistemológica.