1 O ESPAÇO DA CIDADE DOS FRAGMENTOS À TOTALIDADE:
1.1.5 A cidade e a rua: reflexões sobre a sociabilidade
A rua sempre possuiu um caráter de elemento fundamental na construção do
espaço urbano, a ponto de alguns autores a considerarem como pré-existente aos
assentamentos humanos permanentes. A grande permanência deste elemento no
imaginário dos habitantes das cidades faz deles fragmentos importantes para serem
estudados. Segundo Cabral (2005) a rua é vista pelos alguns autores da Geografia
como:
[...] uma dimensão concreta da espacialidade das relações sociais num determinado momento histórico, mais do que isso, nas ruas se tornam perceptíveis às formas de apropriação, nelas se afloram as diferenças e as contradições que envolvem o cotidiano, enfim, as ruas se revelam como elemento importante de análise da sociedade (CABRAL, 2005).
As ruas podem ser analisadas sob diversas abordagens, desde o ponto de
vista físico como elementos formadores do tecido urbano até seus intrínsecos
aspectos subjetivos e particulares a cada cultura e a cada tempo. As ruas espelham
nitidamente todas as contradições do espaço da cidade contrapondo os domínios
diferentes também produziram espaços urbanos díspares e a rua torna-se o
elemento de fundamentação deste espaço, uma vez que não só o organiza, mas
também se oferece para ser significado. Na afirmação de Georgel (1986) antes de
constituir em um lugar histórico, o mesmo pode ser considerado um lugar político,
um habitat, uma interioridade.
A rua transcende o caráter físico traduzido pela paisagem urbana e ocupa um
lugar de metáfora que no dizer de Moreno (2005) significa o transcorrer da ação, a
essência da dimensão espaço-tempo na cidade, o percorrer, o movimento como
ação estruturadora do espaço e da idéia de viver, de chegar a algum lugar através
da experiência pessoal. Desta forma a rua é um espaço que se constrói e se
reconstrói cotidianamente e possibilita a leitura da cidade, que segundo Canevacci
(1993, p.22): “cada forma arquitetônica tem o poder inexaurível de comunicar-se
através de todo o aparelho perceptivo-emotivo e racional as memórias biográficas elaboram mapas urbanos invisíveis”.
Nesta intensa reconstrução, a rua mudou intensamente o seu significado
social ao longo do tempo variando sua posição dentro das dimensões pública e
privada. A evolução da humanidade e das suas cidades, encarando-as como obra
de arte, como panorama ou como espetáculo, legou à rua um número significativo
de representações que variaram no tempo e conforme os aspectos socioculturais
dos povos. As ruas das cidades muçulmanas e orientais diferem-se
fundamentalmente daquelas das cidades ocidentais, tanto no seu caráter físico
como no subjetivo. Apesar de acompanharem a evolução da humanidade e serem
maiores mudanças no conceito de Rua ocorreram no século XVIII e se intensificaram
aos fins do século XIX.
A influência das mudanças nos padrões de mobilidade influenciaram
dramaticamente o significado das ruas. Sennet (2003) denomina de desconexão do
espaço ao resultado da velocidade dos deslocamentos nas vias da cidade
contemporânea que levam à quase impossibilidade de percepção da paisagem.
Os deslocamentos são mais rápidos num meio ambiente cujas referências tornaram-se secundárias. Assim, a nova geografia leva mais água para os moinhos dos meios de comunicação. O viajante, tanto quanto o telespectador, vive uma experiência narcótica; o corpo se move passivamente, anestesiado no espaço, para destinos fragmentados e descontínuos ( SENNET, 2003, p.18).
As imagens urbanas resultantes destes deslocamentos são meras caricaturas
daquilo que poderiam ser.
Nessa nova imagem urbana colidem o público e o privado, prevalecendo o segundo sobre o primeiro na medida em que, agora, os espaços coletivos urbanos - praças, avenidas, ruas, galerias, lojas, pavilhões - cedem lugar à habitação como espaço urbano da intimidade, espaço vedado, seguramente protegido por portões, grades, muros, múltiplos signos de vedação, o mundo da solidão, a casa como lugar onde nos escondemos.
Truncada definitivamente a imagem urbana da sociabilidade, os signos, agora, são outros.
Subtraindo-se à ansiedade e agressão que lhe causa qualquer contacto público, o urbanita de hoje refugia-se em esquemas de proteção: a condução própria, os fins de semana usufruídos no refúgio do campo, os apartamentos longe do ângulo de visão da rua, os condomínios fechados, a propriedade privada, índices de segurança definidos pela família e pelos amigos íntimos.
Voltada para o interior da habitação, a imagem urbana nutre-se dos signos que a distinguem e diversificam: os objetos, motivo de conquista de uma luta diária, porque entendidos como prolongamento, extensão das qualidades dos proprietários ou, mais ainda, a posse do objeto como fator de nova e otimista compreensão do universo (FERRARA, 2005, p.10).
A rua é um lugar de passagem, mas também um local de encontro e descoberta: descoberta das coisas através das vitrines, descoberta recíproca de gente que a atravessa. Circular é ir a qualquer lado, existir num lugar. A rua é geometricamente um corredor: a mobilidade longitudinal (paralela ao eixo da rua) é maior que a mobilidade transversal (perpendicular ao eixo da rua). Uma rua termina noutra, numa praça, no infinito, mas é bem definida enquanto corredor. A rua como passagem, mas também sítio de prazer e de encontro.
O deslocamento do ser humano nestes corredores urbanos poder-se-á reduzir a um certo número de elementos e contribuem para a experiência de rua do transeunte. Esta experiência, fundamental para a compreensão do espaço urbano assenta no valor estético, no valor funcional e no valor pessoal da rua (DIAS, 2005, p.2).
O caráter múltiplo da rua vai além de entendê-la como unidade constituinte da
totalidade urbana ou de suas subtotalidades. Moreno (2005, p.18) explicita em sua
pesquisa essa constituição da rua:
A rua poderia ser entendida como um fragmento da cidade que vai além de ser uma simples parte de um sistema, ela é um elemento por si mesma, afastado do centro que a determina e ordena, pois o sistema permanece ausente, a unidade não é reconhecível e se reconstrói a partir de alternativas hipotéticas, mas não totalizantes; isto permite extrair a rua de seu contexto de pertencimento (parte constitutiva da malha viária) e recompô-la dentro de um marco de multiplicidade; adquirindo novos significados a partir do isolamento do fragmento. Assim a rua, transcende o limite estrutural dado pela geometria, convertendo-se em um limite fractal (indefinido, irregular e interrompido) que forma una línea de FRONTEIRA permeável donde circulam múltiplas forças geradoras de movimento: tensões e conflitos, conformando numerosas redes aleatórias de ralação e comunicação; por tanto, a ênfase não estará posta nos elementos constitutivos, embora eles sejam parte do cenário da rua (MORENO, 2005, p.18, tradução nossa).
A denominação “Rua” incorpora ao mesmo tempo a função de transitar e o
entorno ou a paisagem urbana. O significado das ruas no imaginário dos habitantes
da cidade, em toda sua plenitude sociocultural está presente nas expressões
populares “no olho da rua”, “rua da amargura”, “rua do fogo”, “vai pra rua”, entre
outras expressões.
As expressões refletem também um imaginário popular que coloca em
aquela como domínio da incerteza. Da Matta (2000) refere-se a estes dois
elementos, na tentativa de lançar luz sobre o assunto:
Quando digo então que “casa” e “rua” são categorias sociológicas para os brasileiros, estou afirmando que, entre nós estas palavras não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de possibilidade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas (MATTA, 2000, p.15).
O entendimento da rua sempre tem sido levado a cabo pelo viés reducionista
das contradições existentes entre o seu caráter público e privado, contudo pode não
ser esta a melhor forma de abordar um elemento urbano de tamanha complexidade.
Moreno (2005) revela que o problema não está na transgressão entre o público e o
privado porque a funcionalidade do espaço não se configura somente através destas
duas dimensões. O que realmente importa é a compreensão da rua como elemento
componente de uma projeção material, intelectual e espiritual, construída pela
sociedade e denominada cidade e impossível de ser extraído da mesma. A rua é o
elemento que possibilita a leitura da cidade pela sua condição de espaço público,
espaço obrigatório onde vivem todos os habitantes da cidade de forma plural, com a
qual se desenvolverá uma condição de fragmentação em ambas as entidades,
pública e privada.