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Perder-se na cidade: do flaneur ao Voyeur urbano

1 O ESPAÇO DA CIDADE DOS FRAGMENTOS À TOTALIDADE:

1.1.6 Perder-se na cidade: do flaneur ao Voyeur urbano

As indagações sobre a apropriação psicológica dos espaços têm origens,

européias e notadamente em Paris. Essa localização deve-se obviamente ao grande

número de pessoas que afluíram para as cidades a partir da revolução industrial

tornando ainda mais complexas as relações no espaço habitado. A construção do

imaginário urbano passa então por esta apropriação da cidade ainda possível pelo

deslocamento a pé. Assim é a Paris dos fins do século XIX, onde o poeta Baudelaire

a reconhece em suas caminhadas sem destino a “aborver” lentamente a paisagem

urbana em seus aspectos físicos e sociais. No entanto, esta cidade perceptível pelo

habitante errante vai dar lugar a um outro tipo de cidade, percebida de forma rápida

tanto pela velocidade dos deslocamentos que se tornaram, em sua maioria

motorizados, quanto pelo tempo acelerado do século XX.

Em cada habitante errante pela cidade do século XIX, em cada pedestre que

caminhava despercebido pelas ruas morava um “Flâneur” benjaminiano criado pela

modernidade. A via pública adquiriu um papel do espaço coletivo que ele

“experimenta, reconhece e inventa tanto quanto os indivíduos ao abrigo de suas

quatro paredes” (BENJAMIN, 1989, p.194). A tese do autor de que “saber orientar-se

numa cidade não significa muito, no entanto, perder-se numa cidade, como alguém

se perde numa floresta, requer instrução” (BENJAMIN, 1993, p.73) evidencia as

possibilidades da experiência de vida trazidas pela mobilidade e potencializadas

caso o indivíduo se permita explorar o espaço urbano além dos movimentos

pendulares tão óbvios e, muitas vezes, impostos por configurações urbanas

inadequadas.

O advento da modernidade trouxe o acirramento do processo de urbanização

e nela esteve contida uma nova forma de viver urbano. O “flanar” pela cidade, como

Paris do século XIX, tem na rua seu grande baluarte. Esse modus vivendi chegou ao

Brasil no fim do século XIX e início do século XX e é bem descrito por João do Rio,

em Alma encantadora das ruas, na qual o autor define o ato de “flanar” como um

deleite do habitante urbano:

A rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! (...) Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres (...) A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. (...) Sem o consentimento da rua não passam os sábios, e os charlatães, que a lisonjeiam lhe resumem a banalidade, são da primeira ocasião desfeitos e soprados como bolas de sabão. (RIO, 1987, p.5).

Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia e de noite, meter-se nas rodas da população, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos (RIO, 1987, p.5).

Assim, a cidade foi apreendida pelos seus habitantes por meio da paisagem

urbana das ruas e outros lugares públicos e criou-se, a partir daí, o imaginário social

do século XIX. Apesar de ter tido seu ápice de importância nos fins do século XIX e

início do século XX, as ruas tiveram uma grande perda do seu significado público ao

longo do século XX em face de um intenso processo de interiorização da vida

pública, condicionada pelo espaço familiar, às novas tecnologias e à insegurança. O

espaço público então passou de habitat do “Flaneur” ao locus do “Voyeur” urbano

ávido pelo fetiche das vitrines, dos passantes ou de situações inusitadas,

espreitadas pelas janelas dos veículos. A vivência dos espaços urbanos traz em si o

potencial do pertencimento ao lugar ou sua repulsa dependendo do desempenho

dos mesmos.

“A cidade”, dizia Marsílio Ficino, “não é feita de pedras, mas de homens”. São os homens que atribuem um valor às pedras e todos os homens, não apenas arqueólogos ou os literatos. Devemos, portanto, levar em conta, não o valor em si, mas a atribuição de valor, não importa quem a faça e a que

título seja feita. De fato, o valor da cidade é o que lhe é atribuído por toda a comunidade (ARGAN, 1995, p.212 ).

Essa atribuição de valor torna os planejadores essencialmente responsáveis

pela criação de muitos dos fatos aos quais a comunidade usufruirá. A análise das

respostas dadas pelas diversas configurações urbanas implica em estudar quais as

possibilidades de encontros geradas por cada uma delas e sua contribuição para a

formação da imagem mental do espaço habitado. Como afirmado por Argan (1995,

p.227) ao comparar essas possibilidades ao quadro de Mondrian (Figura 17) e

Pollock (Figura 16):

A imagem urbana que corresponde à nossa experiência, e a do espaço pictórico de Pollock: densa retícula de signos, de linhas traçantes talvez os itinerários habituais e sem um ponto de chegada de milhares ou milhões de pessoas que se movem cruzando-se e com freqüência voltando ao ponto de partida Essa miríade de itinerários e trajetórias, diferentes para cada individuo e constelada por uma infinidade de pontos intensamente coloridos que representam as infinitas coisas ou talvez, as pessoas que, no vertiginoso espaço citadino, retêm por um instante o olhar. (ARGAN, 1995, p.232).

Sem a pretensão de realizar julgamentos estéticos, o quadro de Pollock serve

de exemplo para explicitar as possibilidades da natureza humana que transcende a

rigidez geométrica de traçados geométricos carregados de aspectos funcionais. O

emaranhado de linhas que se cruzam na obra de Pollock contrastam com a rigidez

geométrica de Mondrian. Dessa forma, uma indagação e um desafio constante aos

planejadores e projetistas da cidade diz respeito a qual seria a relação entre a

quantidade de possibilidades geradas pelos diversos tipos de estruturas urbanas e a

Figura 16 Os postes azuis - Jackson Pollock (1912-1956)

Fonte: Piqué e Puente (1997,p. 54,55)

Figura 17 Composição em vermelho, azul e amarelo - Piet Mondrian (1930)

Fonte: Piqué e Puente (1997, p.85)

O estudo das respostas dadas pelas diversas configurações urbanas implica

estudar quais seriam as possibilidades de encontros que estas estruturas

conseguiriam possibilitar e a contribuição destas para a formação da imagem mental

dos habitantes. Contudo, o espaço se torna dinâmico pela ação do homem sobre ele

conferindo-lhe identidade. Desta forma, cada tempo e cada povo produz sua própria

cidade de forma ímpar. As possibilidades de encontros em uma cidade sempre

dependerão da mobilidade por ela permitida, desta forma faz-se necessário

compreender como este importante item tem sido tratado, principalmente no período

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