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A CIDADE E OS USOS DOS PARQUES PÚBLICOS URBANOS

CAPÍTULO 4 O SIGNIFICADO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS PARA EXPERIÊNCIAS

4.1 A CIDADE E OS USOS DOS PARQUES PÚBLICOS URBANOS

A cidade aparece, como vimos nas capítulos anteriores, como lugar de grandes transformações, muitas vezes geradoras de um processo desequilibrado de edificações e de mudanças sempre em curso. Nesse contexto, torna-se cada vez maior a preocupação do planejamento urbano com referência à produção de espaços públicos e à preservação de áreas verdes, em função da reivindicação por espaços de lazer, onde a natureza possa ser contemplada e vivenciada.

De tal forma, no espaço urbano, segundo Carlos (1999, p.27) "fundem-se os interesses do capital, a ação do Estado e a luta dos moradores como forma de resistência contra a segregação no espaço residencial e pelo direito à cidade". O direito à cidade, para Lefebvre (1969),

manifesta-se como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e à habitação. O direito à obra (atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto da propriedade) se imbrincam dentro do direito à cidade.

Neste sentido, poderíamos pensar na possibilidade da não fragmentação entre cotidianeidade-lazer, cotidianeidade-trabalho, compreendendo a cidade como espaço de trabalho produtivo e do lazer. Assim, para Carlos (1999, p.33), "a cidade seria a obra perpétua dos seus habitantes, o que contraria a idéia de receptáculo passivo da produção e das políticas de planejamento citada por Sánchez (2003, p.204), ao afirmar que a população recebe as obras da cidade em um "atitude contemplativa, passiva e reverenciadora. Deslumbra-se sempre com o privilégio de viver numa cidade planejada e sente-se partícipe da cena, embora essa participação se resuma à de figurante."

Considero que as experiências no âmbito do lazer em parques públicos facilitam a potencialização de um certo tipo de participação comunitária, porque contemplam territórios da vida urbana, em que grupos/indivíduos co-dividem, num mesmo espaço, maneiras extremamente diversas de apropriação desses lugares, muitos deles de forma mais isolada, outros em grupos, outros ainda interagindo em redes mais ou menos informais. De qualquer maneira, sempre dimensionando novos sistemas de valores, de imagens, de códigos, de formas de pensar e exprimir-se diferencialmente nos espaços públicos das cidades. Suscita-se, assim, uma relação entre espaço/cidade/cidadão de maneira singular. São sujeitos que compartilham, por algum tempo, de uma visão comum de realidade. Interagem por meio de uma rede de significados, conforme as indicações de Geertz (1989), e atuam dentro de um sistema

compartilhado de crenças e valores, em que estão presentes algumas formas de solidariedade, de sociabilidade e de respeito pela natureza, por meio de práticas sensíveis experienciadas pelo corpo.

Portanto, frente às problemáticas urbanas apontadas, tendo a pensar que alguns modelos de parques públicos que contemplem a preservação do patrimônio cultural e natural, integrando-os nas cidades aos diversos estilos de vida, ao progresso e respeito ao meio ambiente, podem significar a possibilidade de um "viver melhor" nesse intricado meio urbano.

Atualmente, não é necessário ser um especialista em arquitetura ou urbanismo para perceber que muitos espaços públicos urbanos no Brasil estão adotando uma mesma padronização, pela força da evolução de tecnologias e pela imposição de modismos, os quais podem ser considerados aspectos de um mesmo processo. Nas cidades brasileiras essa tendência parece se apresentar com mais força porque as tradições são bem tênues entre nós. Poucos são os lugares que guardam suas tradições, seus monumentos históricos, suas reservas naturais, suas culturas locais. Neste sentido, Yázigi (2001, p.15) nos alerta que "os padrões de arquitetura colonial brasileira, presentes em muitos pontos do território nacional, tornaram-se meras relíquias". Se tomarmos os países europeus como eixo de reflexão, veremos que muitos de seus espaços – cidades em especial – guardam traços seculares e milenares que se constituem em grandes tesouros da cultura material de um lugar.

Yázigi (2001, p.15) também afirma que, no Brasil, com o desenvolvimento da indústria brasileira da construção, "propagou-se o uso em todas as cidades até mesmo dos mesmos materiais e, muitas vezes, das mesmas tecnologias". Esse fato se faz acompanhar de certos estilos de gestão municipal, impulsionados pelo vício de copiar ou pela vergonha do que é antigo e histórico. O autor exemplifica essa questão citando a padronização da arquitetura de madeira, ainda hoje comum nos Estados do Paraná,

de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Para ele, "medíocre também é o empresário do lazer, que já tem pronta a mesma lista dos equipamentos que rendem e que é aplicada a qualquer lugar. É a mesmice dos pedalinhos sobre lagos barrentos, os tobogãs azuis, os ranchinhos de sapé, a música de ambiente, as fontes luminosas, a roda gigante".

De fato, Fernandes (2001, p.317) afirma que "a uniformização do modo de pensar e dos modelos de planejamento parece não mais se colocar apenas como perspectiva, mas como desdobramento concreto de palavras e ações já relativamente corriqueiras nas práticas de nossas cidades". Para a autora, entre outros fatores, essa uniformização se daria pela redução tecnocrática: linguagem estandartizada, criando a uniformização de elementos de produção, de acordo com um padrão estabelecido. Em outras palavras, trata-se da redução a um só tipo de modelo urbanístico, refletindo um só tipo de modelo de parques púbicos.

Embora a cidade de Curitiba não esteja "vacinada" contra esse modelo padronizado, percebo que ao longo de sua história vem conseguindo por meio de um planejamento urbano diferenciado, superar alguns desses valores e práticas limitantes em certos setores da gestão municipal e na forma como o curitibano se identifica com essas intervenções.

Considero os parques públicos urbanos como uma das possibilidades de se pensar numa cidade mais humana, em que a dialética homem/natureza pode se efetivar num movimento conciliador entre participação, encontro, liberdade e ludicidade. Mas, para tanto, faz-se necessário desmistificar a idéia de que os parques urbanos são sempre uma dádiva conferida à população de uma cidade. O olhar crítico sobre esses espaços pressupõe considerar os parques urbanos como locais construídos e que precisam de vida e da aprovação conferida a eles pela população local. Isso está mais de acordo com a realidade, pois as pessoas dão utilidade aos parques e fazem deles um sucesso ou, então, não os usam e os condenam ao fracasso.

Ao enunciar a influência mútua entre parques e cidade, Jacobs (2001, p.99) observa que a condição fundamental para compreendê-la é acabar com a confusão entre os usos reais e os fantasiosos. Cita, como exemplo, a ficção de que os parques são "os pulmões da cidade", salientando que certa metragem de área verde não é suficiente para fornecer mais ar para a cidade do que uma metragem equivalente em ruas. Outra falsa convicção é de que os parques são capazes de estabilizar o valor dos imóveis ou funcionar como âncoras da comunidade.

Nesse cenário, tendo em vista as funções dos parques nas cidades, Jacobs (2001, p.100-101) faz considerações sobre os aspectos relevantes desses espaços, tomando por base a implantação de alguns parques importantes na Filadélfia, considerada, pela autora, uma experiência controlada nesse aspecto. Assim, reporta-se a Willian Penn77

que projetou a cidade e colocou em seu centro uma praça, hoje ocupada pela Prefeitura. Tendo como referência essa praça central, Penn projetou quatro praças para áreas residenciais, todas da mesma idade, do mesmo tamanho, com a mesma destinação, que, entretanto, tiveram destinos diferentes conforme destaca a autora.

Rittenhouse Square - A mais conhecida das quatro praças, foi adotada pela população. É bem-sucedida, muito freqüentada e considerada, atualmente, um dos maiores patrimônios da Filadélfia. Representa o núcleo de um bairro elegante.

Franklin Square - O segundo dos pequenos parques projetados por Penn, é um parque de submundo, onde se juntam os sem-teto, os desempregados e os indigentes em meio a cortiços, pensões, estabelecimentos religiosos, lojas de roupas usadas, entre outros. O parque e seus freqüentadores têm má fama, mas o local não é perigoso, pois não há crimes.

77

Governou a Colônia da Pensilvânia por dois anos, entre 1682 e 1684, a qual lhe havia sido concedida pelo rei inglês Carlos ll como pagamento de uma dívida. Foi Penn quem batizou a cidade de Filadélfia. O plano consistia de uma malha ortogonal de 22 por 8 quadras (JACOBS, 2001, p.100).

Washington Square – O parque localiza-se numa área de escritórios que já foi um centro comercial. Atualmente, tornou-se um local de perversão a ponto de ser evitado pelas pessoas que trabalham nos escritórios. Em meados dos anos 50, o parque foi revolvido e ficou fechado por mais de um ano, sendo reprojetado. Durante esse período, os freqüentadores se dispersaram – e era essa a intenção. Hoje tem uso escasso e aleatório e está quase sempre vazio, com exceção da hora de almoço nos dias de tempo bom.

Logan Circle - é a quarta das praças projetadas por Penn. Foi reduzida a uma pequena ilha de tráfego, transformando-se numa rotatória, adornada com um chafariz e um jardim bem cuidado. Embora se trate mais de um local para quem passa de automóvel, a rotatória recebe muitos visitantes nos dias claros.

Os destinos dessas praças ilustram o desempenho inconstante que caracteriza os parques urbanos. Nas considerações de Jacobs (2000, p.97) "os parques de bairros ou espaços similares são comumente considerados como uma dádiva conferida à população carente das cidades". Na seqüência, a autora sugere que se inverta o raciocínio para visualizar uma situação em que quem dá utilidade aos parques são as pessoas. Os parques são lugares efêmeros, ou seja, pouco duradouros e condenados ao fracasso quando não valorizados e freqüentados pelos moradores da cidade. A autora destaca que os parques costumam experimentar extremos de popularidade e impopularidade, demonstrando que o desempenho de um parque nada tem de simples. A utilidade do parque e os aspectos do seu desempenho representam casos particulares que desafiam as generalizações, pois diferem muito de trecho para trecho, dentro de si próprios, e recebem influências diversas das diferentes partes da cidade de onde vêm seus freqüentadores.

Nas cidades contemporâneas pode-se observar o desempenho dos parques e das praças. Eles podem agradar as pessoas e tornarem-se populares ou enquadrar- se na categoria de parques de pouco uso, cujos equipamentos se transformam em alvo de vandalismo.

A análise da importância dos parques nas cidades em seus aspectos mais relevantes, os quais consideram a participação social e a necessidade de se produzir espaços públicos que sejam parte da evolução dos centros urbanos, nos conduzem à reflexão de Santos (1997, p.51,) para quem "o intercâmbio efetivo entre as pessoas é a própria matriz da densidade social, configurando-se como condição para essas relações que se acumulam, diversificam-se e renovam-se".

Szmrecsanyi (2001, p.15) cita os parques do Ibirapuera e do Flamengo, em São Paulo e no Rio de Janeiro, respectivamente, como espaços públicos favorecendo "a agregação, o encontro, a visibilidade recíproca de diferentes classes sociais". O mesmo acontece em alguns parques públicos de Curitiba, o que pôde ser facilmente comprovado pela observação de campo e pelas entrevistas realizadas.

O desafio, portanto, está em apontar que o sucesso dos parques urbanos criados em Curitiba não está somente ligado ao fato da grande quantidade de espaços produzidos, ou no sucesso da divulgação desses espaços, mas, também, na forma como o cidadão curitibano compreende e faz uso desses espaços. Uma das formas de uso diz respeito às práticas corporais vivenciadas no Parque Municipal Barigüi.

Ao analisar em diferentes horários do dia e em diferentes dias da semana o fluxo do Parque Barigüi, pude perceber que a cada momento novos cenários se apresentam, evidenciando perfis diferenciados de usuários. Por exemplo, às 6h e às 17h, poucas pessoas freqüentam o Parque. Entre elas estão as que programam sistematicamente suas práticas de "atividades físicas", através de corridas e caminhadas e as que vivenciam estas mesmas práticas, mas buscam além da manutenção da saúde física, outras relações mais sutis, as quais revelam formas diferenciadas de experienciar o espaço do Parque.

Os usuários que se preocupam acentuadamente com a "saúde física" tem um perfil muito peculiar. Freqüentam o Parque independente das variações de temperatura

(sol, chuva, frio, neblina) e mantêm sempre a mesma "rotina". Usam roupas adequadas para corredores, realizam sempre determinados alongamentos, correm olhando para frente e silenciosamente, cuidam da postura corporal, respiram profundamente, controlam as passadas e a freqüência cardíaca. Tais praticantes buscam "rotinas de atividades físicas" sustentados em um certo conceito de saúde, atividade física e corpo. Vejamos o que estes usuários dizem:

"Olha, gosto de vir ao parque esta hora, porque não tenho tempo mais tarde, começo a trabalhar às 8:00, então só resta este tempinho para eu cuidar de minha saúde. Mas, vejo vantagem nisso porque o parque está vazio, ninguém atrapalha a corrida, quem está aqui esta hora é porque quer realmente praticar atividade física forte. Poderia até correr na rua, mas acho este local mais plano e seguro." (Raul, 38 anos, professor).

"Eu acordo cedo, gosto de ter hábitos alimentares saudáveis, não fumo, não bebo, e a atividade física que faço aqui acredito que está me proporcionando mais tempo de vida. Busco saúde e bem estar. Quando não venho, parece que a "máquina" sente! Me sinto meio enferrujado". (Marcos, 45 anos, empresário). "Saio do trabalho às 17:30 horas, é aqui perto. Em 5 minutos chego aqui. Carrego minhas roupas de corrida no carro, troco de roupa dentro do carro mesmo. Corro 1 hora três vezes por semana, chova ou faça sol. Sou metódico mesmo. Acho que quando nos propomos a fazer exercícios físicos temos que nos disciplinar, levar a sério, senão não adianta nada, não alcançamos resultados para saúde. Quando o parque começa a encher já estou no final da corrida. Não gosto de correr nos finais de semana quando o parque está cheio, tenho que desviar das pessoas que ficam passeando com cachorros ou entre crianças brincando, isso atrapalha meu ritmo, adoro este parque vazio". (Rogério, 30 anos, contador).

"Estou muito fora de forma, tenho feito um esforço para acordar cedo e vir para cá todos os dias. Depois que tive uns "probleminhas" de saúde o meu médico recomendou exercícios diários e uma alimentação mais leve, não gosto muito desta rotina, mas me obrigo a fazer exercícios. Hoje, tenho que ter consciência que isso previne doenças mais graves. É só por essa razão que venho aqui." (Rosa Maria, 45 anos, professora).

Nestas falas evidencia-se uma concepção de prática corporal sustentada em um modelo instrumental de atividade física, onde a preocupação com a "saúde" significa a simples manutenção da "boa forma", o auto–controle, a obrigação e a

disciplina sobre o "corpo máquina". Estes aspectos nos levam a questionar até que ponto a realização de "práticas convencionais" de atividades físicas, apoiadas nesses conceitos e entendidas como imprescindíveis à promoção da saúde, significa realmente a garantia para uma vida saudável.

Aparece, no entanto, outras formas de vivenciar o corpo no espaço do Parque, as quais de certa forma fogem desta lógica de produção de performances corporais, permitindo experiências mais sensíveis e menos marcadas pela produtividade. Deve-se ressaltar que esta segunda perspectiva apresenta-se como predominante.

Este deslocamento pode ser percebido através de um grupo significativo de usuários deste Parque, os quais relatam a utilização de tais práticas como estímulo para a vida cotidiana, como "oxigenação" à rotina do mundo do trabalho, aproveitando de maneira intensa o espaço para meditar, contemplar a natureza, ouvir os pássaros, ver o pôr-do-sol, exercer um certo ócio e entrar em sintonia com o corpo. Vejamos suas falas:

"Adoro correr neste horário para ver o sol nascer ali atrás do lago. A corrida para mim é uma preparação para o agito do dia-a-dia. Corro, caminho, respiro, medito sobre minha vida e sobre os compromissos que terei pela frente. Se não venho aqui logo cedinho, parece que o dia não começou". (Antonio Carlos, 50 anos, funcionário público).

"O melhor momento do meu dia é vir correr aqui no parque no final do dia, o por do sol neste parque é lindo, corro, suo, olho as pessoas e percebo que elas estão mais relaxadas em função do horário do dia, depois sento ali no deck para olhar o por do sol, tomando uma cervejinha. Acho este programa uma maravilha para celebrar mais um dia vivido." (Maurício, 37 anos, professor). "O silêncio deste lugar me fascina, chego aqui as 7:00 da manhã, depois de deixar meus filhos na escola, os pássaros estão cantando, o sol surgindo, poucas pessoas circulando, me sinto meio dona do espaço. Corro lentamente para não deixar de perceber essa maravilha que é a natureza, agradeço á Deus pela oportunidade de poder compartilhar com outros elementos da natureza este espaço e vou embora começar mais um dia, me sinto renovada e com muita saúde." (Arlete, 39 anos, dona de casa).

"Sabe, meu corpo pede para vir aqui. Parece engraçado, mas quando não venho dar uma corridinha ou pela manhã bem cedinho ou ao entardecer, escuto meu corpo dizer, hei! não agüento mais, me leve para relaxar...(risos, risos)

sabe estou ficando mais velho e percebo que estou ouvindo mais o meu corpo, sei quando ele precisa relaxar, respirar a natureza, olhar os animais, nós estamos nos entendendo nestes últimos anos porque tenho respeitado minhas vontades e limites, já fui muito doído, lutava contra o tempo e sempre perdia, o tempo me engolia, já trabalhei muito, já deixei de ouvir meu próprio corpo, hoje, não, sempre reservo um tempinho para nós dois, consegui encaixar a vinda aqui no parque na minha vida cotidiana, arranjei o tal tempo, dou preferência aos espaços abertos, naturais, onde eu possa me (re)equilibrar espiritualmente, fisicamente e psicologicamente." (José Roberto, 53 anos, aposentado).

As falas de nossos personagens evidenciam que algumas pessoas conseguem transformar práticas corporais cotidianas em vivências significativas no tempo/espaço do lazer. Essas experiências até podem estar vinculadas à preocupação com a saúde, à manutenção da forma física, mas num primeiro plano estão associadas à aquisição de estilos de vida diferenciados, em que a valorização dos espaços ao ar livre no tempo/espaço de lazer está presente com o aproveitamento destes momentos para busca de uma (re)significação da natureza, uma harmonia espiritual e até mesmo para um certo "exercício do ócio".