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A circularidade das culturas e da religião desde o período colonial

CAPITULO 1- A CULTURA E A RELIGIOSIDADE POPULAR: AS FOLIAS DE REIS

1.3 A circularidade das culturas e da religião desde o período colonial

Para discutir a religiosidade popular existente nas festas de Folias de Reis de Três Lagoas/MS é fundamental apreender como essa religiosidade constituiu-se de maneira tão peculiar na história do Brasil e entender esse universo, onde a linha entre o que constitui o sagrado e o profano é tênue. Neste sentido, apontamos para a necessidade de uma reflexão bibliográfica acerca da constituição histórica das características deste catolicismo brasileiro, percebidas hoje como complexas e genuínas.

A convivência de múltiplas culturas desde a América Portuguesa gerou uma pluralidade de significados culturais, sociais e religiosos, que permitiu a delineação de uma complexa rede de significados sócio-culturais dinâmicos e polissêmicos, que traduzem parte da peculiaridade da forma como se define o ser brasileiro. É a partir deste pressuposto que sempre sublinharemos as considerações de Bosi de que o Brasil é um país plural. Ao discutir o que venha a ser cultura brasileira, salienta o autor:

Ocorre, porém, que não existe uma cultura brasileira homogênea, matriz dos nossos comportamentos e dos nossos discursos. Ao contrário: a admissão do seu caráter plural é um passo decisivo para compreendê-la como um ‘efeito de sentido, resultado de um processo de múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço. (1992, p.07)

Assim, devemos estar atentos a esse universo polissêmico que vai desenhando características diversas e complexas, presentes tanto no mundo da cultura quanto no mundo da religião, que em grande parte dos casos - como no objeto tratado nesta dissertação - não podem ser vistos como separados.

Esse imbricamento é uma das mais ricas características do modo de ser religioso brasileiro, já que religião e cultura estão interligadas. E quando pensada a idéia de cultura, estamos falando das músicas, das danças, do modo de sentir de um povo tão plural de significados. Neste sentido, compreendemos que cultura é a rede de significados de que as práticas populares8 estão investidas.

A proposta já salientada de estudar a cultura popular brasileira a partir da idéia de circularidade mostra-se bastante frutífera, pois serve-nos como um mapa de onde partimos e que, ao percorrê-lo percebemos como as características existentes hoje surgem de agrupamentos, apropriações, re-significações, traduções e transformações e que, desta forma, explicam de maneira bastante significativa os processos, as mudanças e continuidades no universo da cultura e da religiosidade.

Ao pensarmos no objeto proposto para a reflexão desta dissertação, buscamos em Bakhtin a idéia de uma “dualidade na percepção do mundo e da vida humana” (1993, p.05), uma dualidade caracterizada pela idéia de circularidade entre o erudito e o popular, o oficial e o burlesco, que permitia aos sujeitos o uso da comicidade para viverem experiências não ligadas ao seu cotidiano, o que possibilitava um ambiente alegre e festivo para as práticas festivas como o carnaval e as procissões. O autor revela a possibilidade de leitura da circularidade do sagrado e do profano, entendidos como o alto e o baixo, em que : “O ‘alto’ é o céu; o ‘baixo’ é a terra” (p.19) e vivem em junção no momento das práticas populares.

Estas abstrações de Bakhtin vão sendo trilhadas por diversos outros teóricos que, por sua vez, contribuem significativamente para uma conceitualização desta chamada circularidade cultural. Um exemplo notório deste caminho é a forma como Ginzburg em sua obra “O queijo e os vermes” ressalta que sua concepção de circularidade cultural baseia-se na leitura de Bakhtin:

Pode-se ligar essa história àquilo que já foi proposto, em termos semelhantes por Mikhail Bakhtin, e que é possível resumir no termo ‘circularidade’: entre a cultura das classes dominantes e das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências

8 Referendamos o popular por tratar a pesquisa de um objeto de cultura popular, no caso, as Folias de Reis. Entretanto, entendemos que a rede de significados culturais é produzida em todas as esferas sociais, dadas principalmente a partir da circularidade e intercâmbio entre elas.

recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo. (1983, p. 12)

Neste mesmo caminho, propomos então a idéia de se aplicar esse conceito ao estudo e compreensão das Folias de Reis, buscando à luz destes autores, a possibilidade de interpretar esta festa como uma cultura dinâmica e circular, que se movimenta em todos os sentidos. É neste intuito que visamos, a seguir, tratar de maneira sucinta, mas não artificial, a forma como a circularidade foi praticada historicamente, ora de forma consciente, ora não.

Partindo da compreensão de que a religião católica veio para o Brasil sob a tutela inicial dos Jesuítas com o objetivo de converter os nativos da região a esta religião, devido à percepção de que as práticas desses sujeitos nativos eram rudimentares e incivilizadas, sabemos que, mesmo tendo o indígena sucumbido de forma bastante significativa à aculturação, muitos mantiveram as crenças em seus deuses e divindades, e os que se aculturaram não o fizeram sem oferecer também elementos novos a esse catolicismo europeu que chegara aos trópicos.

Como se sabe, logo houve outro grupo étnico que se somou aos dois já existentes: os africanos que foram trazidos para o país para trabalharem como escravos. Mesmo com as adversidades históricas enfrentadas pelos negros desde o período da escravidão, esses nunca silenciaram, e principalmente nunca deixaram de viver sua cultura e sua religião, com suas singularidades e complexidades, estando também inseridos neste contexto de circularização.

Esses três grupos étnicos são provavelmente os maiores contribuidores para a forma de ser religioso do brasileiro, todavia diversas culturas e religiões de pessoas que migravam para cá engrossaram este caldo, transformando a cultura brasileira em um mosaico de significações e de significados. A este respeito, Bosi salienta que:

Há imbricações de velhas culturas ibéricas, indígenas e africanas, todas elas também polimorfas, pois já traziam um teor considerável de fusão no momento do contato interétnico. E há outros casamentos, mais recentes, de culturas migrantes, quer externa (italiana, alemã, síria, judaica, japonesa...), quer internas (nordestina, paulista, gaúcha ...), que penetram fundo em nosso cotidiano material e moral. (1992, pp. 7-8)

Vários estudiosos, entre eles Hoornaert (1974) e Souza (2000) trabalham/trabalharam com a idéia do sincretismo como componente fundamental na caracterização da manifestação do religioso no Brasil. Contudo, mesmo que a idéia de sincretismo não seja mais tão recorrente na historiografia contemporânea, é necessário entendermos o seu significado e ver como os pesquisadores o utilizaram para pensar a questão da circularidade cultural entre diferentes grupos, e também suas diversas maneiras de se manifestar com o sagrado:

Entendemos, pois o sincretismo (...) como ‘a coexistência de elementos - entre si estranhos- dentro de uma religião’. Estes elementos podem ser introduzidos como provenientes de outra religião (por exemplo, o culto de Maria - o culto de Iemanjá), ou de estruturas sociais (por exemplo: a imagem do Pai segundo a revelação bíblica – a imagem do patriarca na cultura dos engenhos de açúcar). Existem sincretismos externos (por exemplo: catolicismo europeu – candomblé africano) e sincretismos internos (já assimilados por uma determinada religião, por exemplo: sincretismo entre a mensagem cristã e as filosofias do mundo greco romano como estoicismo, neo-platonismo, sincretismos elaborados e analisados pelos padres da igreja num imenso esforço missionário durante diversos séculos da história da igreja). (HOORNAERT, 1974, p. 23)

Para Souza, o sincretismo entre brancos, negros e índios, “refundiu espiritualidades diversas num todo absolutamente específico e simultaneamente multifacetado” (2000, p.88). Este aspecto é muito caro a qualquer pesquisador que se debruce sobre assuntos ligados à religiosidade e cultura popular, já que é necessário entender as dinâmicas existentes dentro da cultura.

Para não cairmos na rede dos significados do sincretismo, o que pretendemos é reler estes textos, buscando neles elementos que permitam apreender a circularidade. Isto porque, a idéia de sincretismo trabalhada pelos autores acima revela bastante da dinâmica cultural, tão em voga na discussão atual da história, da antropologia e de outras áreas do conhecimento. Os autores estudados mostram em suas análises que o sincretismo não significa escolhas casuais e aleatórias. Pelo contrário, as escolhas nos revelam uma lógica própria existente no interior dos grupos, e que muitas vezes escapa aos olhos do pesquisador.

Feitas pelos sujeitos históricos, não podem, também, ser caracterizadas como escolhas conscientes e definidas como necessárias para a participação de suas manifestações originais. Essa lógica que escapa de uma definição mais apurada é apontada por Souza (2000) como vivência. Ou seja, é no cotidiano, nas práticas rotineiras que elementos antes estranhos são incorporados aos rituais do grupo, e estes rituais, conforme a autora: “não eram permanentes ou definitivos [...] toda a multiplicidade de tradições pagãs, africanas, indígenas, católicas, judaicas não pode ser compreendida como remanescente, como sobrevivência”. (SOUZA, 2000, p.98)

É necessário ainda pensar a respeito de como a Igreja Católica, trazida como uma forte instituição para a América Portuguesa, vivenciou este catolicismo, lembrando que a Igreja representava o mundo cristão, representando também o mundo europeu, espelho de civilização.

Pensando na dinâmica cultural que o Brasil vivenciou e ainda vive de maneira muito pulsante, é que percorremos algumas páginas da historiografia sobre a forma encontrada pelos brasileiros de praticar sua religião de modo tão original, e da instituição religiosa de lidar com tal fenômeno. É importante assinalarmos que, na maioria das vezes, essa originalidade não levou os sujeitos a pensar que haviam criado outras práticas religiosas, ou até mesmo outra religião, já que apesar da circularidades e imbricamentos continuavam se sentindo pertencentes ainda à religião católica de onde se originou suas práticas.

É neste intuito que buscaremos, a seguir, tratar a forma como a circularidade foi praticada, ora de forma consciente, ora não.

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