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5. Os médicos e as possibilidades de mudança

5.2. A clínica do sujeito

Tomo, a partir de agora, como principal referência, o trabalho de Campos (2003), intitulado A clínica do sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. Esse autor propõe uma reconstrução da prática clínica, valendo-se da crítica a uma clínica, hoje hegemônica, a qual denomina de “clinica degradada” em relação a uma ”clínica oficial” ou a uma “clínica clínica”. Muitas das críticas feitas no seu trabalho já foram apontadas nos capítulos anteriores e aqui serão retomadas de forma mais sintética. “Clínica degradada” seria a clínica que sofre limitações por questões ou situações externas, como imposições econômicas que interferem na autonomia do médico no sentido apenas de redução de custos, ou de modelos de assistência, em que a produtividade é um imperativo levando a um trabalho médico alienado, através de um atendimento quase padronizado baseado no binômio queixa-conduta.

Portanto há uma clínica degradada por interesses econômicos ou por desequilíbrios muito pronunciados de poder. Toda vez que a

racionalidade clínica é atravessada por outras racionalidades do tipo instrumental ou estratégica, há degradação de sua potencialidade teórica e perde-se oportunidade de resolver problemas de saúde (CAMPOS, 2003).

Mas não se pode perder de vista que a clínica como prática social não está isenta de referências externas, como, além do interesse econômico, os interesses da lógica da política e do poder.

Além disso, a clínica oficial também tem seus limites que não são apenas os pontos desconhecidos na evolução dos processos saúde-doença, como o enfoque excessivamente biológico desse processo com uma desvalorização ou desatenção dos aspectos subjetivos e socioculturais dos indivíduos. A abordagem mais voltada para a doença em detrimento ao indivíduo leva freqüentemente a uma fragmentação da assistência, tratando o usuário como um ser composto de partes que apenas teoricamente guardam uma interdependência. As ações médicas visam à cura ou apenas à eliminação dos sintomas ou à correção de lesões anatômicas ou funcionais.

Mas, apesar de todas essas limitações, a clínica ou a Medicina ainda mantém seu poderio sobre a sociedade e continua sendo uma instituição influente e importante, na qual os indivíduos investem afetos e esperanças de uma vida melhor. O que Campos (2003) propõe é uma clínica do sujeito ou uma clínica ampliada. Nela, o sujeito único, particular, ganha nova e fundamental presença.

“Sim, uma clínica centrada nos sujeitos, nas pessoas reais, em sua existência concreta, também considerando a doença como parte dessas existências.” É desfocar a doença, focando o sujeito, mas sem perder de vista a doença, mesmo porque “a doença está lá, dependendo dos médicos e da medicina, é verdade, mas também independente da medicina; dependente da vontade de viver das pessoas, com certeza, mas também independente da vontade dos sujeitos. Está lá, simplesmente, como processo humano de nascer, crescer, gastar a vida, minguar e morrer” (CAMPOS, 2003).

Então, o desafio é este: passar de uma clínica degradada, empobrecida para uma clínica ampliada. Como fazer essa travessia? Primeiro, é necessário ultrapassar os nós críticos que a clínica oficial “não tem conseguido analisar e muito menos resolver” (CAMPOS, 2003). Depois, é preciso articular alguns conceitos que já estão sendo colocados em prática, dando-lhes outros e novos sentidos, como os de equipe de referência, interdisciplinaridade, projetos terapêuticos que aqui ganha um sentido ampliado pelo conceito de cuidado, construídos e partilhados com a equipe cuidadora e, porque não, com o próprio sujeito envolvido e principal interessado.

Essa travessia significa também que a clínica ou a Medicina salte de um mundo estruturado por regularidades e normalizações para outro cheio de imprevisibilidade e incertezas, mas trazendo consigo o saber acumulado. É necessário reconhecer “os limites de qualquer saber estruturado [...] pois obrigaria todo especialista a reconsiderar seus saberes diante de qualquer caso concreto. Sempre” (CAMPOS, 2003).

A teoria de Habermans sobre a Ação Comunicativa pode ser de grande valia para clarear essa travessia. Baseando-se nessa teoria, pode-se dizer que a saúde é fruto da colonização do mundo da vida pelo sistema, ou seja, pela substituição dos processos comunicativos que coordenam a ação dos atores e garantem a reprodução do mundo da vida cujo imperativo é a solidariedade, por mecanismos sistêmicos de controle, cujos imperativos são o poder e o dinheiro, que pressionam para a mercantilização das práticas de saúde, e onde a Medicina se caracteriza pela clínica degradada descrita anteriormente. No agir comunicativo,

os participantes devem se entender uns com os outros sobre algo no mundo objetivo, no mundo social e no mundo subjetivo definindo em comum a situação da ação (referências compartilhadas aos mundos objetivo, social e subjetivo) para que possam realizar seus planos e utilizar as possibilidades de ação abertas pela situação (MELO, 2000). Traduzindo para as práticas de saúde, pode-se dizer que a ação comunicativa é feita por meio de uma relação entre sujeitos ou de uma relação de intersubjetividade (trabalhador/médico, usuário/doente), mediada pela linguagem que leva a uma construção e realização compartilhada de uma ação (projeto terapêutico), acordado entre dois ou mais sujeitos.

Para que esse agir comunicativo aconteça, também é necessário abrir os canais de conversação entre os trabalhadores das equipes e os dos serviços de saúde, fazendo acontecer uma cultura da comunicação.

E o primeiro passo é quebrar a arrogância pétrea da Medicina com seus doutores e protocolos, que seriam bem-vindos, desde que houvesse espaço para se duvidar deles, para que as equipes agissem apoiado neles, mas duvidando deles (CAMPOS, 2003).

Outras estratégias que potencializassem a comunicação entre os trabalhadores também seriam bem-vindas, como a gestão colegiada, a criação de unidades de produção em cada serviço compostas por equipes multiprofissionais e outras que pudessem facilitar ações cuidadoras, sem diluição de responsabilidades, facilitando a ação diante do imprevisto.

Algumas das características necessárias para a constituição de serviços ou atos de saúde com esse novo sentido podem ser encontradas nas práticas médicas ditas alternativas, que, nas últimas décadas, vêm apresentando grande procura por parte da população. Uma dessas características é assim descrita por Nogueira (1998):

O paciente da medicina holística não tem necessidade de fazer a mágica de acreditar no médico descrendo da medicina. Médico e paciente estão desde o início entrelaçados pela mesma crença fundamental, a despeito de ser reconhecido que um tenha acumulado maior saber do que o outro. A satisfação com essa relação e com o curso terapêutico não depende de nenhuma surpresa ou artifício técnico ou comunicacional. Vem com a espontaneidade dos que falam a mesma língua numa mesma aldeia. A satisfação é construída na relação e não por uma correspondência abstrata com expectativas anteriores do cliente.

Nogueira (1998) ainda aponta para a possibilidade de maior satisfação do usuário que aderiu às práticas alternativas por causa exatamente da relação que se estabelece entre os dois sujeitos: médico e paciente.

A satisfação não deriva apenas de uma racionalidade técnico científica que tende, aliás, a ignorar a dimensão humana envolvida na relação terapeuta/paciente. O sucesso das medicinas alternativas deriva em grande parte da maneira como essas medicinas estabelecem a relação com seus pacientes (LUZ apud NOGUEIRA, 1998).

Para finalizar, mas sem aprofundar a discussão, é necessário apontar os responsáveis pela geração dessas mudanças: as escolas médicas e os serviços de saúde. Nas escolas médicas, acontecem já alguns movimentos de mudança, como a reformulação de grades curriculares e a preocupação com a inserção dos alunos nos serviços públicos de saúde como campo de estágio. Mas, além de pensar em novos currículos e disponibilidade de recursos físicos, é preciso tentar responder a algumas perguntas que podem apontar para uma nova (?) missão institucional: que tipo de profissional se quer formar? Como estruturar o modo de aprendizado para formar “novos profissionais” com “novas” competências? É preciso pensar na formação de “novos médicos” para além do conteúdo técnico, “Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar- se alheio à formação moral do educando” (FREIRE, 1996).

Para pensarmos sobre alguns dispositivos específicos das escolas médicas (diríamos até das escolas da área da saúde) temos de nos perguntar sobre a marca singular delas, isto é, que tipo de competência queremos construir. E, isto, nos remete ao reconhecimento de que estamos apostando na formação de um profissional que deverá ter a capacidade de dispor de uma ‘caixa de ferramentas tecnológicas’ cujo ‘compromisso – objetivo’ é produzir o cuidado em saúde, visando impactar ‘necessidades’ que os indivíduos e ou os grupos portam e expressam como necessidades de saúde. [...] No caso dos médicos queremos produzir um operador de tecnologias de saúde [...] que tenham competência de gerar e gerir um projeto terapêutico que sirva de substrato para a produção do cuidado médico, em particular (MERHY, 2002).

Mas é nos serviços de saúde que existem hoje as melhores condições para que apareçam e se formem novos profissionais, acreditando que o trabalho também é fonte e lugar de aprendizagem e de formação de sujeitos (CAMPOS, 2000). E é aí, nos serviços de saúde, que está a presença instituinte do usuário. Os serviços

devem investir na possibilidade de formação de sujeitos (trabalhadores) com maior capacidade de análise crítica e de intervenção criativa, fortalecendo sua autonomia, mas sempre compromissada com o atendimento de necessidades de outro sujeito (usuário). Sujeitos menos alienados, mesmo porque não há sujeitos completamente enquadrados pelas instituições e, no caso da saúde, isso é muito verdadeiro. “Sempre haverá brechas, rachaduras e fluxos irreprimíveis” (CAMPOS, 2000).

Por outro lado, e pensando o sujeito médico, é preciso que as instituições deixem de lado o processo de “naturalização” do modo de ser do médico no seu processo produtivo em serviços públicos de saúde. É como se gerentes e gestores considerassem sempre uma ”guerra perdida” o lidar com os médicos e sua inquestionável autonomia (autonomia aqui não é apenas a clínica, mas a capacidade de ditar normas sobre a organização de seu trabalho).

As instituições ou os serviços, valendo-se de seus modelos de assistência e formas de organizar o trabalho, podem moldar “novos” profissionais e competências. Ou seja, baseando-se em projetos centrados nos usuários e não na produção de procedimentos, em que se operam basicamente as tecnologias leves, com produção dirigida ao cuidado (MERHY, 2002).