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3. OS MÉDICOS E SEUS CONDICIONANTES: CONSTRUINDO O ARQUÉTIPO MÉDICO

3.4 Os médicos e o mercado de trabalho

A concepção da Medicina como prática profissional regulamentada se deu após algumas intervenções estatais e pela necessidade de padronizar a formação desse profissional e de unificar a sua base cognitiva, levando ao controle, ao monopólio e à autonomia do mercado. Nesse contexto, talvez a reforma mais importante tenha acontecido nos Estados Unidos, com a criação da Medical School da Universidade John Hopkins, em 1893, logo após a publicação do Relatório Flexner, que consolidou a Medicina científica como modelo paradigmático (MACHADO; BELISÁRIO, 2000).

A importância desse Relatório centrava-se na determinação de uma nova Medicina e de uma nova prática e teve como conseqüência imediata o fechamento de inúmeras escolas médicas, diminuindo o número de vagas e limitando o acesso, o que levou a uma mudança na composição dos quadros sócio- demográficos da profissão (STARR apud MACHADO; BELISÁRIO, 2000). O paradigma flexneriano influenciou de maneira importante o modelo da Medicina e sua prática e o ensino médico no mundo ocidental. Institui-se, assim, no início do século XX, a Medicina científica com forte controle do mercado, do sistema de produção e da transmissão da sua base cognitiva.

O objetivo deste capítulo é desenhar de forma panorâmica o mercado de trabalho médico hoje no Brasil.

Campos (1988) descreve quatro formas de inserção do médico no mercado de trabalho brasileiro:

1 Trabalho liberal: caracterizado pela existência de clientela própria com a qual se estabelecem as condições de remuneração, bem como pela posse dos instrumentos de trabalho pelo médico.

2 Assalariamento: caracterizado pela venda da força de trabalho por tempo determinado por troca de salário.

3 Proprietários: os que detêm o controle das condições materiais de trabalho, até mesmo em relação a instrumentos que podem ser operados por um único ou por poucos profissionais.

4 Autônomos: forma intermediária entre o liberal e o assalariado, na medida em que envolve controle parcial dos meios de trabalho ou da clientela. Esse autor considera como autônomos os médicos ligados às cooperativas médicas ou a outras formas de pagamento preestabelecidas por terceiros – não são, portanto, profissionais liberais (CAMPOS, 1988).

Ainda segundo esse autor,

o trabalho liberal com controle sobre os meios de trabalho, a clientela e a remuneração é uma forma em declínio, residual. O mesmo não acontecendo, todavia, com a prática autônoma que ao lado do assalariamento se constituem nas modalidades dominantes de inserção do médico no mercado de trabalho (CAMPOS, 1988).

Como características mais marcantes do atual mercado de trabalho médico no Brasil, podem ser citados: a homogeneidade do demandador ou comprador de serviços; o aumento significante da participação feminina; a constituição etária do mercado; a urbanização; a perda da condição de profissional liberal; e a crescente especialização dos atos médicos (MACHADO; BELISÁRIO, 2000).

Em relação à homogeneidade do comprador, pode-se dizer que a esfera pública e a privada ofertam serviços em montantes semelhantes, ou seja, 69,7% dos médicos atuam em serviços públicos, 59,3% em estabelecimentos privados e 74,7% ainda mantêm atividades em consultórios particulares. A partir da década de 1980, o setor público passa a ser o principal empregador na área da saúde. Esse movimento se acentua com o processo de municipalização e de expansão da rede ambulatorial pública. O setor público é o nicho de mercado que emprega médicos em maior quantidade na faixa etária mais jovem ou na primeira fase de sua vida profissional. À medida que o médico se firma profissionalmente, ele migra para o setor privado.

Pode-se dizer também que hoje transcorre no Brasil um processo de feminilização do mercado médico.

Esta é uma questão importante que afeta nuclearmente a profissão médica e que denominamos transição de gênero. Arriscamos afirmar que provavelmente nas próximas décadas a profissão médica passará a vigorar no cenário das profissões liberais como uma profissão predominantemente feminina [...] Enfocando-se o segmento etário de médicos com até 45 anos de idade o contingente feminino é ainda maior: 41%, o que reforça a idéia de feminilização é um fenômeno geracional

pós década de 70. No contingente com menos de 30 anos a participação feminina aumenta ainda mais, representando cerca de 50% deste segmento (MACHADO et al., 1997).

Do ponto de vista etário, tem-se um quadro no qual 70% dos médicos têm menos de 45 anos de idade.

Os médicos ingressam no mercado de trabalho entre 26 e 28 anos [...]. Isto significa dizer que 65% dos médicos que atuam no mercado de serviços de saúde têm menos de 16 anos de formado, o que configura um mercado em constantes reacomodações de necessidades e especificidades tanto em nível nacional quanto regional (MACHADO et al., 1997).

No Brasil, a Medicina vem se tornando uma atividade concentrada nos grandes centros urbanos. Na região Sudeste, que abriga 59,5% dos médicos do País, a concentração nas capitais chega a 40%.

A última pesquisa sobre a classe médica realizada pelo CFM, em 2002, e apresentada como dados preliminares no 10º ENEM (Encontro Nacional de Entidades Médicas), confirma algumas dessas tendências relatadas anteriormente. O Brasil, na época da realização da pesquisa, contava com 283.000 médicos. Destes, 69,8% são do sexo masculino, 61,2% residem nas capitais, 63,4% têm menos de 45 anos. Em relação à inserção no mercado de trabalho, os dados mostram que 67% dos profissionais trabalham em consultório particular, 69,7% mantêm vínculo com o setor público, 53,8% trabalham para o setor privado e 18,9% se dedicam a atividades de docência. Esses dados confirmam a múltipla inserção do médico no mercado de trabalho e mostram a importância do setor público como empregador (JORNAL DO CFM, 2003).

A distribuição geográfica desigual, demonstrada acima, tem como uma de suas conseqüências a diminuição progressiva do rendimento dos médicos de forma geral. As oportunidades urbanas de mercados competitivos têm diminuído no Brasil, porque quanto mais aumenta a oferta mais se reduzem as oportunidades de trabalho com bons rendimentos.

Busca-se, então, freqüentemente e cada vez mais intensamente a especialização dos serviços prestados como forma mais segura de obter rendimentos compatíveis com o status que esses profissionais médicos adquirem ao longo de sua história profissional (MACHADO; BELISÁRIO, 2000).

Mas, mesmo trilhando esse caminho, o médico especialista já não consegue manter a característica de profissional liberal, uma vez que o seu consultório não se sustenta com clientela particular, e, por causa da imposição do mercado de utilização de tecnologias cada vez mais avançadas e caras, começam a ser colocadas restrições dos seguros de saúde privados para o seu uso. A realidade do mercado hoje aponta para uma diversificação de serviços em instituições de saúde que remuneram seus profissionais e uma gama quase ilimitada de atendimentos e prestação de serviços.

A vida profissional do médico é constituída de inúmeras passagens em instituições de saúde, hospitais, alterações na hierarquia da equipe médica (aprendiz da medicina – médico residente a preceptor – mestre do ofício), mudanças na área de atuação, com alteração por vezes radical de especialização ou até mesmo de migração de cidade ou de estado. A medicina, como poucas profissões permite essa dinâmica especial de estar no mundo do trabalho (MACHADO et al., 1997).

O profissional médico foi socializado para ter esse padrão de vida profissional, ou seja, estar sempre presente a possibilidade de inserções múltiplas no mercado de trabalho, não sendo esse fato apenas decorrência da crise econômica, mas também de seu processo de trabalho.