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A comercialização do altruísmo

CAPÍTULO III – DO ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO

3.3. A comercialização do altruísmo

A gestação de substituição é um tema polémico, que divide opiniões em diversos ordenamentos jurídicos, dada a sensibilidade do tema e as diversas complicações que levanta, cujas respostas estão longe de encontrar algum consenso.

O legislador pretendeu admitir no ordenamento jurídico português a versão gratuita do acordo de gestação de substituição, prevendo no n.º 2 do art.º 8.º da LGS a natureza gratuita do contrato, bem como seu n.º 5 a proibição de “qualquer tipo de pagamento ou a doação de qualquer bem ou quantia dos beneficiários à gestante de substituição pela gestação da criança, exceto o valor correspondente às despesas decorrentes do acompanhamento de saúde efetivamente prestado, incluindo em transportes, desde que devidamente tituladas em documento próprio”.

A essência do contrato de gestação de substituição assenta, dessa forma, no altruísmo da mulher, definido como “inclinação para procurarmos obter o bem para o

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Vide CAMPOS, Diogo Leite de; BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves – O início da

87 próximo181” que se disponibiliza a participar do projeto parental assumido pelo casal beneficiário.

Contudo, questionamo-nos: O altruísmo pode ser lucrativo?

O n.º 7 do art.º 8.º da LGS bem tentou evitar o lucro no altruísmo da gestante, ao estipular a proibição de “celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição quando existir uma relação de subordinação económica, nomeadamente de natureza laboral ou de prestação de serviços, entre as partes envolvidas”. Mas quem irá investigar se existe essa relação económica? O CNPMA enquanto entidade reguladora designada, assumirá também funções de “babysitters” ou serão os órgãos de polícia? Haverá autorização judicial para o levantamento do sigilo fiscal e bancário?

A nosso ver, independentemente do art.º 39.º da LGS prever a sansão penal para os negócios de gestação de substituição onerosas, torna-se difícil comprovar o caráter altruísta da gestante de substituição, visto que existem diversas formas em que a referida gestante poderá receber, indiretamente, qualquer proveito por parte do casal contratante, sem que seja possível fazer a devida associação.

Um exemplo disso será o casal contratante assegurar à gestante de substituição, um emprego do qual exercerá um cargo de grande importância, junto da empresa de algum amigo, com regalias que poderão proporcionar um estilo de vida, completamente diferente do atual. Ainda mais longe, tratando-se do altruísmo que ocorre geralmente no seio da família, poderá um elemento da família renunciar a sua parte em alguma herança, contribuindo para um aumento patrimonial da gestante de substituição.

Haverá uma constante monitoração do comportamento financeiro dos contraentes? É claro que não. É notório que não existe uma forma de controlar – por toda a vida – a relação futura entre os contraentes, principalmente quando esta relação ocorre maioritariamente dentro do seio familiar.

Deste modo, o legislador português, na sua tentativa de descriminalizar a gestação de substituição por via da gratuitidade do contrato, também não assegurou os mecanismos necessários para evitar um verdadeiro “mercado de bebés”, pelo que ficamos sujeitos a um comércio clandestino, onde mulheres carenciadas recorreriam a

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Conforme definição dada pelo Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. [Em Linha] [Consult. 11 de Ago. 2018]. Disponível em https://www.priberam.pt/dlpo/altru%c3%adsmo

88 este serviço para suprir suas necessidades básicas, o que resultará na manipulação do seu consentimento livre.

A lei é clara: só são admissíveis pagamentos que dizem respeito às despesas de saúde e de transporte, sendo certo que deverão constar de documento próprio, que comprove a existência de tal despesa com a gestação.

Diga-se também, que o próprio contrato-tipo aprovado pelo CNPMA tentou controlar os tipos de pagamentos que são efetuados à gestante e que resulta da cláusula 7.ª sob a epígrafe “pagamentos admissíveis”. Contudo, soa-nos um sinal de alerta quando confrontamos o ponto n.º 4 da referida cláusula que estipula:

“Qualquer pagamento de despesa não elegível e/ou não titulada em documento próprio efetuado pelo casal beneficiário à gestante é havido como doação à qual se aplica o disposto nos artigos 8.º número 5 e 39.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 25/2016, de 22 de Agosto182”

Ora, parece-nos que a lei foi clara quando designou no n.º 5 do art.º 8.º que “é proibido qualquer tipo de pagamento ou a doação de qualquer bem ou quantia dos beneficiários à gestante de substituição pela gestação da criança”, bem como a exigência de documento titulado que justifique essa despesa.

Como pode um contrato que proíbe expressamente a sua onerosidade, admitir a existência de pagamentos avulsos e estipular que os mesmos serão considerados como uma doação?

Ainda que tal cláusula remeta essas despesas indeterminadas para os artigos que advertem a proibição de pagamentos avulsos e para a sansão penal, resulta claro que a intenção do CNPMA foi de tentar acautelar que qualquer transação adicional entre os contraentes não está prevista no próprio contrato, esquivando-se, dessa forma, de qualquer responsabilidade pela conduta das partes.

O exposto no ponto n.º 4 da cláusula 7.ª do contrato-tipo abre portas para o pagamento de quantias injustificadas entre o casal de beneficiário e a gestante, pelo que é notória a precariedade do instituto da gestação de substituição que abre portas para a comercialização do altruísmo.

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Cfr. análise ao contrato-tipo aprovado pelo CNPMA [Em Linha]. [Consult. Em 05 de Nov. 2018]. Disponível em http://www.cnpma.org.pt/Docs/ContratoTipo_GS.pdf

89 O CNECV afirma que “a motivação, a intenção e o interesse de quem recorre às técnicas de PMA para gerar um novo ser é sempre uma motivação de benefício, de realização ou de satisfação pessoais e que se traduz na intenção de procriar, de gerar descendência, de assumir maternidade ou paternidade, de constituir família, porque se pensa que isso será bom para o próprio e, sendo o caso, para o projeto parental que se comunga com alguém, acompanhado da convicção — a não ser que se estivesse no domínio de patologia que pode ocorrer em qualquer situação — de que o projeto parental será igualmente bom para o novo ser”183

.

Contudo, Diogo Leite Campos defende que existe um limite. O autor afirma não ser admissível que a necessidades desses casais “seja satisfeita através de outra pessoa transformada em objecto das necessidades de outrem”, pelo que uma pessoa não pode ser instrumentalizada para esse fim. Além disso, o autor entende ser inadmissível “que se atribua à vontade do casal a omnipotência de ultrapassar todos os limites, sobretudo quando este limite é um ser humano184”. Concordamos com o autor, na medida em que o desejo dos beneficiários não pode ser visto como um direito subjetivo supremo, onde devemos aceitar que a instrumentalização do corpo de um terceiro, em prol do seu anseio.

Dito isto, resulta claro que a implementação de um modelo de gestação de substituição gratuito não acautela a existência de um comércio clandestino, estimulando a exploração de mulheres desfavorecidas em prol da satisfação do desejo de casais com problemas de infertilidade, dispostos a efetuar o pagamento da quantia necessária, para que possam ter um filho biológico, ainda que para tanto, o mesmo seja tido como um produto.

183 Parecer 63/CNECV/2012 do Conselho Nacional de Ética para as Ciência da Vida, p. 7. 184

CAMPOS, Diogo Leite de – A procriação medicamente assistida heteróloga e o sigilo sobre

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