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CAPÍTULO III – DO ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO

3.4. A (in) segurança jurídica

Como vimos, os princípios basilares do Direito, especialmente, aqueles que são associados à pessoa e ao instituto da família estão a ser claramente violados e banalizados pela gestação de substituição, do qual o legislador sempre criminalizou, mas que decidiu repentinamente valorizar excessivamente o desejo dos beneficiários, ao ponto de os sobrepor à vida da criança sujeita a negócios jurídicos e à da gestante de substituição, cuja dignidade é notoriamente reduzida.

É, no mínimo, curioso a forma como a LGS necessitou de vários esclarecimentos avulsos por parte do CNPMA, para fazer face às diversas dúvidas que se levantaram quanto ao regime da gestação de substituição, após a sua entrada em vigor no ordenamento jurídico português. A inexistência de uma lei manifestamente suficiente e transparente gerou grande controvérsia, visto que estamos diante de um tema extremamente sensível e que necessita de rigor legislativo para evitar danos incontornáveis para a vida das partes.

Em vários preceitos, a LGS simplesmente remeteu para o CNPMA várias disposições imprescindíveis para a compreensão do instituto da gestação de substituição, a saber:

i) A autorização prévia do CNPMA para a celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição e ainda a competência de supervisionamento de todo o processo (crf. art.º 8.º n.º 4 da LGS);

ii) O contrato é reduzido a escrito e supervisionado pelo CNPMA, donde devem constar, obrigatoriamente, em conformidade com a legislação em vigor, as disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez (cfr. art.º 8.º n.º 10 da LGS), bem como não pode impor restrições de comportamentos à gestante de substituição, nem impor normas que atentem contra os seus direitos, liberdade e dignidade (cfr. art.º 8.º n.º 11 da LGS);

iii) Além disso, é da competência do CNPMA aprovar o contrato-tipo (cfr. art.º 3.º n.º 1 do Decreto Regulamentar n.º 6/2017, de 31 de Julho),

91 devendo ser respeitadas um conjunto de elementos referenciados nas alíneas do n.º 3 do art.º 3.º do mesmo diploma.

Daqui, resulta claro que a LGS apenas veio trazer alguns tópicos básicos/pontos essenciais, que o contrato de gestação deve observar, sem especificar ou esmiuçar qualquer critério, fundamental para a transparência da lei185.

Aliás, sabemos que tal indeterminação não pode suceder, visto que estamos a falar de direitos, liberdades e garantias e que são matéria de reserva de lei parlamentar186, pelo que a Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, na redação dada pela Lei n.º 25/2016, de 22 de Agosto, deveria conter todas a informações inerentes à gestação de substituição e ao contrato – o mais completo possível – e não, simplesmente, remeter para o CNPMA, a competência de decidir e regular, matérias que o legislador não previu (ou quis prever).

Com efeito, Vera Lúcia Raposo faz evidência a esse modelo escasso e dúbio de gestação de substituição. A autora destaca que “prever uma figura jurídica e impor-lhe um par de proibições não é regulamentá-las e estes contratos, pela sua especial sensibilidade e pelos direitos e interesses envolvidos, mereciam (e necessitariam) tal regulamentação187”.

Nesse sentido, o TC declarou que tal ausência de critérios prejudica a uniformidade dos contratos de gestação de substituição, sendo que estes devem ter critérios claramente evidenciados, de modo a garantir a igualdade entre todos. Além disso, entendeu que tal opção do legislador “não oferecem uma medida jurídica com densidade suficiente para estabelecer parâmetros de atuação previsíveis relativamente aos particulares interessados em celebrar contatos de gestação de substituição nem, tão pouco, critérios materiais suficientemente precisos e controláveis para o CNPMA exercer as suas competências de supervisão e de autorização prévia188”.

185 Aliás, Vera Lúcia Raposo critica essa posição adotada, ao afirmar que “é como se o legislador se tivesse desonerado por completo do conteúdo deste contrato, esquecendo que a especial sensibilidade que o rodeia não se coaduna com a aplicação cega do direito contratual, e que a liberdade contratual tão- pouco permite garantir uma eficaz proteção das partes em matéria que se presta especialmente a abusos”.

Vide RAPOSO, Vera Lúcia – Tudo aquilo que você sempre quis saber sobre contratos de gestação (mas o

legislador teve medo de responder) In Revista do Ministério Público, p. 30. 186

Conforme dispõe os artigos 18.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1 alínea b), da Constituição.

187 RAPOSO, Vera Lúcia – Tudo aquilo que você sempre quis saber sobre contratos de gestação (mas o legislador teve medo de responder) In Revista do Ministério Público, p. 10.

188 Cfr. Acórdão n.º 225/2018 do Tribunal Constitucional publicado no Diário da República, Série I - n.º 87 de 07 de Maio de 2018. [Em Linha]. [Consult. 30 de Jun. 2018]. Disponível em

92 Deste modo, no referido Acórdão, o TC entendeu que a indeterminação contida na lei não oferece qualquer segurança jurídica, sendo certo que os “aspetos essenciais da delimitação positiva e negativa da autonomia privada dos interessados em matéria de gestação de substituição – o que deve ser estipulado e o que não pode ser estipulado no contrato que tem por objeto a mesma – em especial na medida em que respeitem às condições indispensáveis à autorização prévia do correspondente contrato, devem obrigatoriamente constar de lei da Assembleia da República (cfr. o artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição)189” e concluiu inevitavelmente, pela declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das supra referidas normas da LGS.

A nosso ver, não se compreende como o legislador não previu esse desfecho, na medida em que a gestação de substituição é um tema extremamente sensível, que envolve a vida de três partes frágeis, além de interferir diretamente com direitos, liberdades e garantias da gestante de substituição, pelo que a lei não pode dar espaço para a existência de omissões ou lacunas, que possam interferir com a eficácia da vontade/consentimento das mesmas.

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