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III. O “MELHOR SÍTIO DA TERRA”: ARQUITETURA E PAISAGEM NA BELÉM DO GRÃO-PARÁ

1. A Companhia de Jesus na América Portuguesa

No bojo da Contrarreforma, a Companhia de Jesus foi fundada em 1540, pela ação do ex militar Inácio de Loyola. Com Fórmula do Instituto aprovada pelo papa Paulo III na bula

Regimini Militantis Ecclesiae, os jesuítas se tornaram um dos mais importantes dos movimentos de reforma do século XVI vinculados à liderança papal (Eisenberg 2000). A ordem nasceu com caráter não monástico, com o objetivo de ter contato direto com os sujeitos de missionamento, havendo como principal objetivo a persuasão de “cristãos, hereges e pagãos a viverem uma vida reta, guiada pela moral cristã e pela luz divina” (Eisenberg 2000: 32). Tal ethos está presente na própria denominação da Ordem, Societas Iesu (Sociedade de Jesus), alusão a sua organização pensada para atuar no mundo, incluindo as missões, a educação e as ações junto aos reis (Costa e Menezes 2010).

Chegados à América Portuguesa em 1549, os padres inacianos desenvolveram no Brasil, segundo Neves (1978: 25), “a história de uma missão”, estritamente no sentido que deve ser adotado o termo missão para o período, qual seja, o da expansão do catolicismo e do mundo ibérico (europeu) para o Novo Mundo. Sua presença em terras brasileiras, portanto, esteve desde o início ligada ao compromisso em converter os povos indígenas do território. A experiência jesuítica no Brasil foi ímpar para o desenvolvimento da própria Ordem, incluindo os aspectos ligados à criação de missões religiosas e ao seu próprio pensamento político (Eisenberg 2000).

Na Amazônia não foi diferente, posto que a presença jesuíta, tal qual a presença religiosa de maneira geral, esteve diretamente imbricada com o processo colonizador português. Reis (1948) argumenta que tal qual a economia e o militarismo, os religiosos regulares eram uma das dimensões da expansão luso-brasileira, fundamentais no trato com os grupos indígenas e definição do território. Para uma visão concreta disto, é de se pensar o caso dos aldeamentos missionários, que chegaram ao número de 63 em meados do século XVIII, congregando, em média, 470 indivíduos em cada uma das 19 missões dos inacianos, somando 50 mil ao todo em estimativa aproximada (Azevedo 1999[1901]).

A organização dessa rede missionária no Vale Amazônico subsidiou a ação dos padres inacianos até sua expulsão em 1759, dado as injunções coloniais na região.20 O aparato das aldeias foi tão significativo ao ponto de serem incorporadas, com toda a sua dinâmica, à reforma urbana ocorrida a partir da segunda metade do século XVIII (Araujo 1998), o que

20 Para o debate sobre as reformas políticas ao tempo da expulsão dos jesuítas em 1759, cf. Maxwell (1997) e

demonstra a integração desses espaços missionários ao processo de urbanização amazônico desde o século XVII, dado que em sua organização pode-se vislumbrar características de mundo urbano (Guzmán 2008; Guzmán et al. 2009; Lopes 2009, 2010, 2012). Ressalta-se, todavia, que as aldeias compreendiam uma das estruturas sob a administração dos padres, e se somavam aos colégios, residências, fazendas e engenhos.

Toda essa estrutura se diferenciava pelas atividades econômicas de cada uma delas, posto que possuíssem, nesse aspecto, especializações. Sendo assim, a dimensão espiritual da ação missionária estava associada imediatamente às necessidades práticas de produção e manejo dos bens materiais, o que gerou para os jesuítas um poderio econômico singular se comparado às outras ordens religiosas (Assunção 2004). Tem-se, assim, a manifestação mercantil dos agentes religiosos que atuavam também como colonizadores (Azevedo 1999[1901]), obrigando os padres a terem acurado conhecimento do sistema produtivo vigente (Assunção 2004). Para a Amazônia, ou o antigo estado do Maranhão e Grão-Pará, a maximização do patrimônio jesuíta, particularmente a partir das suas fazendas, ensejava uma gama de relações entre os padres e os colonos, indígenas, autoridades políticas e os soberanos portugueses, o que gerou constantes reclamações e conflitos diretos com tais agentes (Neves Neto 2012).

Dessa estrutura, os colégios possuíam posição hierárquica privilegiada, na medida em que centralizavam as funções administrativas e possuíam autonomia no que tange à organização financeira da Ordem, sendo encabeçados por um reitor e um procurador (Neves Neto 2012). Desse modo, a criação de colégios era o objetivo primeiro em dada missão, tendo em vista a função articuladora que possuíam no que tange aos bens materiais da Companhia de Jesus, o que os associava ao aparato econômico alcançado pelos padres (Neves Neto 2012). Os bens materiais adquiridos eram vinculados somente aos colégios e casas de formação, que segundo Leite (1945b), serviu para o seu sustento. Para a Amazônia colonial, os colégios de Santo Alexandre em Belém, Nossa Senhora da Luz em São Luis – os dois maiores – e os de Vigia e Alcântara, eram os únicos com esse privilégio (Leite 1945b). Tal arranjo fazia parte da própria organização jesuíta, definida a partir das suas Constituições ainda por Inácio de Loyola (Leite 1945b). Contudo, as atividades econômicas desenvolvidas nesses lugares de modo algum se limitavam aos religiosos, mas se expandiam aos outros moradores do mundo

colonial. De acordo com Neves Neto (2012: 26-27), a “[c]riação de gado, cultivo de diversas culturas, expedições ao cravo e cacau e descimentos de indígenas eram algumas atividades desenvolvidas pelos missionários dos colégios”.

Por outro lado, os colégios também desempenharam papel na educação no mundo colonial, posto que os discípulos de Santo Inácio também fossem uma “ordem docente”, no sentido de empregarem a educação como uma das formas de catequese (García-Villoslada 1991: 833). Na Amazônia, o ensino dos filhos dos moradores e o inicial objetivo de formar noviços para a Companhia demonstram uma das formas de sua inserção no mundo colonial português (Chambouleyron et al. 2011). A chegada e permanência dos padres inacianos em Belém, por exemplo, foi primeiramente condicionada pela sua limitação às atividades de educação dos colonos (Azevedo 1999[1901]). O ensino, assim, fez parte da dimensão política das atividades dos jesuítas, contribuindo para a construção do lugar dessa Ordem no mundo colonial (Chambouleyron et al. 2011).

Importa mencionar que, funcionalmente, a organização espacial desses colégios atendia às demandas da instituição e, além disso, incorporava materialmente o mundo jesuíta em todas as suas dimensões. Como veremos a seguir, esses prédios deveriam seguir um traço elementar, com espaços para residência dos padres, ensino, guarda da produção material advinda das fazendas, oficinas e, claro, a igreja. Para Martins (2009, v. I: 54), todavia, não se deve pensar tais edificações dentro de um plano uniforme de construção da Companhia, já que elas “tomam sua forma de acordo com o contexto histórico, social, cultural e econômico de cada região em particular”.

Por outro lado, considero que, sendo o centro administrativo da Companhia de Jesus, os colégios eram pontos nefrálgicos na atuação global desses padres. Eles integravam o amplo complexo das missões mundiais organizadas a partir da Assistência de Portugal, que incluía todo o império luso, tais como a Índia, o Japão, a China, Etiópia e arquipélago indonésio (Alden 1996). Isto implica, pois, na necessária percepção da relação local-global que enseja a prática jesuítica no mundo colonial (Alden 1996), o que permite, em minha percepção, a análise de uma das formas de estruturação e uma das forças diretoras desenvolvidas para a expansão do capitalismo em seus meios de dominação (Lima 2002a, 2002b).