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II. FELIZ LUSITÂNIA: SOBREPOSIÇÕES DE PAISAGENS NO CENTRO HISTÓRICO DE BELÉM

1. Contexto histórico da cidade

1.1. As primeiras ocupações

Pesquisas arqueológicas efetuadas no centro antigo de Belém evidenciaram registros arqueológicos referentes ao período pré-Cabralino (Figura 1). Mesmo não tendo como foco de interesse inicial épocas anteriores à colonização, essas escavações atestam a antiguidade da presença humana na região. No que tange à cerâmica encontrada, afirma-se o seguinte:

[...] considerando o contexto estratigráfico e suas propriedades físico- químicas, além de elementos decorativos similares aos da Cultura Marajoara, é possível inferir sua datação relativa à época pré-histórica, em torno de pelo menos mais de 500 anos antes do presente (Marques 2006: 177).

Figura 1- “Fragmentos de vasilhas cerâmicas decoradas associadas às culturas indígenas pré-históricas da região amazônica”. Foto: Equipe de Arqueologia (adaptado de Marques 2006: 179).

Quando ocorreu a chegada dos ibéricos (portugueses e espanhóis) à região de fundação de Belém havia significativa presença de grupos Tupinambá (Meira Filho 1976; Lima 2006). Contudo, não há registros sobre quais populações indígenas habitavam essa área em tempos mais recuados. Não obstante, podemos supor que essa ocupação não é recente, já que estratigrafia da cidade é composta também pela chamada terra preta (Marques 2006), solo resultante do descarte de matéria orgânica e caracterizadores da interferência humana na paisagem, especificamente no período pré-Cabralino (Moreira 2006; Schaan 2009).

Lançando olhar sobre uma escala maior, observa-se que a região amazônica tem um histórico de produtivas ocupações. Roosevelt (1992a) argumenta que a Amazônia foi, para as antigas populações humanas, um ambiente propício, além de um polo de inovação cultural. Ainda segundo esta autora, na fase final do período pré-Cabralino houve aumento

demográfico significativo dos povos nativos, o que pode ser algo exemplificado pelo registro arqueológico. Logo, pode-se inferir “uma bem-sucedida adaptação de longa duração dos povos indígenas ao ambiente tropical” (Roosevelt 1992b: 82). Nas crônicas dos viajantes que percorreram a região é possível observar a maciça presença humana. Esses grupos nativos possuíam redes de contatos significativas que ligavam, de alguma forma, a grande extensão da Amazônia (Porro 1996).

Por certo, o lugar onde se localiza Belém está inserido neste contexto. Este local está situado a cerca de 120 quilômetros do mar; margeado por uma baía – chamada de Guajará – e pelo rio Guamá, além de ter influência do rio Pará, por sua vez formado pela união do rio Tocantins com as águas do Amazonas; seu terreno era entrecortado por igarapés, que formavam zonas alagadiças, possuindo também o que foi denominado no período colonial de Pântano do Piri; por essas características, sua topografia era irregular (Penteado 1968), havendo oscilação entre várzea e terra firme (Moreira 1976).

Como referi anteriormente, os colonizadores europeus encontraram população Tupinambá já habitando a região. Importante discorrer sobre a presença desse povo na Amazônia. Habitando quase todo o litoral sul da América, os Tupinambá tem sua origem mais aceita na bacia do Paraná-Paraguai, tendo sua primeira leva migratória ocorrido no sentido sul-norte (Fausto 1992). Baseados nos relatos etnohistóricos, os pesquisadores contemporâneos afirmam que a presença Tupinambá na Amazônia ocorreu, principalmente, em decorrência do início da colonização europeia (Meira Filho 1976; Porro, 1992, 1997, 2007; Lima 2006). Saindo do nordeste da América Portuguesa, esses indígenas atravessaram “as chapadas da Amazônia meridional” até a região da Bolívia (Porro 1992: 187). Nesse percurso, os Tupinambá foram se dispersando, alguns tomando novos rumos, outros povoando áreas diversas (Porro 2007). Em 1549, por exemplo, numeroso grupo Tupinambá chegaram à região do Peru, enquanto alguns se instalaram na ilha de Tupinambarana (Rio Madeira); eles eram encontrados também na área em que se fundou a cidade de São Luis, no Maranhão (Porro 1992).

Fausto (1992) afirma que essas levas migratórias mais recentes do Tupinambá não ocorreram tão somente como decorrência da colonização. Havia nesta sociedade um movimento messiânico que buscava a terra-sem-mal, “lugar de abundância, de ausência de

labuta, da imortalidade, mas sobretudo da guerra e do canibalismo” (Fausto 1992: 985). Esta terra poderia ser encontrada após a morte – individualmente –, ou ainda em vida – coletivamente – à oeste ou à leste, sendo que na busca desse paraíso, os indígenas eram conduzidos pelos pajés. A conquista europeia, dessa forma, serviu “como catalisador do discurso profético dos extensos movimentos migratórios” (Fausto 1992: 387). Pelas suas características guerreiras, os Tupinambá empreenderam a submissão ou expulsão de muitos outros grupos indígenas que habitavam as áreas por eles percorridas, mantendo também práticas comerciais com as etnias subjugadas (Porro 2007). Assim, essa sociedade beneficiou-se da estratificação social interétnica nesse processo migratório (Porro 1992). No que diz respeito ao local onde se assenta Belém, referenda-se a presença de diversos grupos indígenas na região (Meira Filho 1976), mas nomeadamente as grandes referências são aos Tupinambá.

Não se pode desconsiderar que os Tupinambá possuíam um grande domínio nesse espaço. Sua influência se estendia desde a área onde se localiza São Luis, no Maranhão, até – pelo menos – onde foi criada Belém (Meira Filho 1976; Lima 2006). Basta lembrar as revoltas indígenas ocorridas entre 1617 e 1619, desencadeadas desde a capital do Maranhão até o Grão-Pará (Coelho et al. 2006; Lima 2006). Em 1619, data da última revolta, Belém foi atacada por cerca de 10 mil indígenas liderados por Guaimiaba, guerreiro Tupinambá (Lima 2006). Mesmo que esses fatos tenham ocorrido no período histórico, eles são exemplificadores da articulação e poder Tupinambá nessa região, sendo que o número de guerreiros que atacam do Forte do Presépio mostra, mesmo que de forma não segura, a presença significativa de populações nativas nas proximidades do lugar onde se fundou Belém. Nesse sentido, essa área já era amplamente ocupada pelos Tupinambá, e provavelmente por outras etnias nos períodos anteriores. No que diz respeito ao período inicial da cidade, ainda no século XVII, é provável que as fronteiras Tupinambá tenham se confundido com a lógica territorialidade implementada pelos ibéricos, uma justaposição de limites e temporalidades que devem constar nesse tipo análise de longa duração (Crumley 1979).

Por volta do século XVIII as notas sobre os Tupinambá começam a decair. La Condamine (2000[1745]: 97-98) registrou que o domínio de “dois séculos” dessa “valente nação” se

restringiu, em 1745, a um pequeno aldeamento no rio Madeira. Após o ataque de 1619, esses índios foram incorporados ao processo colonial definitivamente, tendo sido aldeados nas missões próximas à Belém. O aldeamento, as epidemias e a miscigenação contribuíram para que nos fins desse século não se tivesse mais referências aos Tupinambá vivos (Coelho et al. 2006).