Capítulo III Justificados por Cristo no Espírito
3.2. Os fundamentos da justificação: individual e universalmente – (Rm 5,1–21)
3.2.4. A comparação entre Adão e Cristo – (Rm 5,15-21)
A proposição Adão é de Cristo, não poderia ser tomada, a priori, de
forma tautológica entre os dois personagens, por que mesmo existindo entre ambos
semelhança e oposição analogicamente, há a superioridade de uma parte
503.
Paulo almeja ao indicar na comparação Adão-Cristo, uma realidade do
Antigo Testamento que prefigura uma realidade análoga, do Novo Testamento
504.
Assim, como a aventura do povo israelita, que sai do Egito e peregrina pelo deserto,
é a imagem da caminhada da Igreja na história (1Cor 10,6.11). Mutatis mutandis,
Adão é figura de Cristo: (5,14b). Seu sentido visa
estabelecer, por semelhança e por contraste, a superioridade do papel libertador
deste último, pelo distanciamento em relação àquele. A relação de oposição: ...
(5,16) destaca a polarização dos elementos.
A sequência do texto delinea bem o encaminhamento do pensamento
paulino: após a invocação “daquele que devia vir”, interrompe-se a frase que
engajava um paralelismo entre Adão e Cristo
505.
503
Anders NYGREN. Commentary on Romans. Philadelphia: Fortress Press, 1975, p. 224-229.
504
Na literatura judaica da época encontramos alguns textos cujas semelhanças do paralelismo são mais nítidas. No Apocalipse de Esdras mediante o raciocínio da comparação opõe-se de um lado, uma semente má do pecado, e do outro, a rica colheita do mundo vindouro: “Quoniam granum seminis mali seminatum est in corde Adam ab initio; e quantum impietatis generavit usque nunc et generabit usque cum veniet area! Aestima autem apud te, granum mali seminis quantum fructum impietatis generaverit; quando seminatae fuerint spicae, quarum non est numerus, quam magnam aream incipient facere!” – Porque o grão da semente má foi semeado no coração de Adão desde o
início, e quando gerou de impiedade até agora e gerará até que venha a ceifa! Aprecia em ti, quanto fruto de impiedade terá gerado, quando as espigas forem semeadas, que imensa ceifa começarão a fazer! – (Esd IV,30-32), G. H. BOX (ed.). The Ezra Apocalypse. London: Sir Isaac Pitman & Sons,
1912, p. 236. Cf. Bruce M. METZGER. “The Fourth Book of Ezra”, in James H. CHARLESWORT (ed.). The Old Testament pseudepigrapha, 1. New York: Doubleday, 1983, p. 516-559; A. DÍEZ MACHO. Apócrifos del Antigo Testamento, 2. Madrid: Cristiandad, 1984. Cf. David A. DESILVA. “Grace, the Law and Justification in 4 Ezra and the Pauline Letters: A Dialogue”, in JSNT vol. 37, n. 1 (2014), p. 25-49.
505 Romano PENNA. Lettera ai Romani, I. Rm 1–5. Introduzione, versione, commento. Bologna: EDB,
131
Mediante o recurso analógico, Paulo passa imediatamente a considerar a
superioridade de Cristo, sobre o problema da difusão do erro de Adão. Aqui a
oposição é marcada pela conjunção , mas. O uso paulino desse recurso almeja
dar sustentabilidade a algo ainda mais amplo e mais importante: a contraposição de
suas linhagens: a do erro e a da graça que, agora – e ao longo da argumentação – é
posta em relevância a partir do “lugar da quantidade”: “em muito mais a graça do
Deus e a dádiva em graça, a de um só homem, Jesus Cristo, para os muitos
excedeu” (5,15)
506. Isso se faz inteligível quando Paulo opõe ao “erro de um” à graça
– – o dom aprazível, benefício totalmente gratuito, do outro
507.
De fato, o alcance global e pleno do erro adâmico é contraposto em evento e
em resultados ao sacrifício gracioso de Cristo (simetria por contraste)
508.
Por um lado () – tem-se a sentença condenatória que atravessou todos
os homens (incluindo, curiosamente, os que não erraram como Adão – 5,14), por
outro lado (), o dom gratuito justificador, excessivamente superior em eficácia,
porque é capaz de isentar os condenados de suas muitas transgressões (5,16).
Outro exemplo da oposição é apresentado entre - e -
(5,16). O objetivo visa novamente demonstrar o raciocínio simétrico,
inserindo-lhe variações temáticas: se por um lado, a sentença foi contrária em razão
de uma única transgressão, por outro, muito maior o efeito, o dom gracioso
convertido num ato de justiça sobre as muitas transgressões
509.
Em 5,17, Paulo apresenta, mediante o argumento de dedução, outro cotejo,
firmado pelo contraste entre o reinado da morte por um só erro em Adão e o dos
recebedores da graça e o dom da justiça em Cristo:
“Se, pois a morte reinou através de um só (erro), pela transgressão de um
só, em muito mais os que recebem em vida a abundância da graça e da
dádiva da justiça reinarão através de um só, Jesus Cristo” (5,17).
506
Em conjunto, a relação de causa-efeito e o recurso da analogia operalizam o processo de formação das disparidades que Paulo quer demonstrar. Bernard REY. Nova criação. São Paulo: Ed. Paulinas, 1974, p. 93-94. A oposição comparativa não está entre um pequeno número e uma multidão, mas entre um só homem e a quantidade dos outros.
507
O dom por excelência, no Antigo Testamento, é a vida, primeiramente a vida atual que se queria sem fim e que Deus, na sua onipotência, pode tornar eterna. A justiça de Deus vivifica (Sl 118,40; 142,11). A ligação entre a justiça e a vida se indica igualmente, com uma noção mais precisa de vida eterna: o dom reina pela justiça para a vida eterna (Rm 5,21); o Espírito é vida pela justiça (Rm 8,10).
508
Isto é visível na analogia por oposição estabelecida entre Jesus (, de um só
homem) e Adão (, de um só, erro/delito): de um lado o dom da graça de Deus e a vida, do outro o pecado e o castigo da morte.
509
Giuseppe BARBAGLIO. As Cartas de Paulo II. São Paulo: Loyola, 2009, p. 206; Jules CAMBIER.
132
Denota-se que Paulo repete seu argumento de modos e ênfases diferentes,
para presentificar o que almeja evidenciar
510. Trata-se de um recurso auxiliador para
quem ouve, lê a epístola e exige, no raciocício mental, o esforço da razão, a fim de
acompanhar e compreender o encadeamento lógico das ideias, dos juízos, dos
valores, do arrazoado teológico apresentados
511.
Em 5,18, insere-se por analogia com força de conclusão – (logo,
portanto), a contraposição entre uma só transgressão para condenação de todos os
seres humanos e um só ato de justiça para justificação de todos os homens.
A mesma variação é repetida em 5,19, contrastando o erro de um só ao ato
de justiça de um só, sob os ângulos da desobediência e da obediência, que
constituem pecadores e justos, reciprocamente. Se, por um lado, os muitos foram
feitos pecadores pela desobediência de Adão, por outro lado, os muitos foram feitos
justos pela obediência de Cristo
512.
A ênfase no versículo 15, onde se afirmou que a dávida divina excedeu –
– para os muitos, possibilita no crepúsculo do capítulo 5 (v. 20-21)
ainda extrair força do lugar da quantidade: a graça hiperexedeu –
– por meio de Jesus Cristo.
Enfim, a analogia dos últimos versículos intensifica a simetria contrastante:
“onde transbordou (excedeu) o erro, hiperexcedeu a graça para que, como o erro
reino na morte, assim também a graça reine através da justiça para a vida eterna,
através de Jesus Cristo, nosso Senhor” (5,20b-21).
Paulo continuará sua argumentação. Retomando assuntos já mencionados,
mas retrabalha-os com uma fecundidade original. Embasados nesse estado de
coisas, vemos como a identificação do pecador com o sacrifício de Cristo (morte e
ressurreição) faz morrer a velha linhagem adâmica interiorizada no homem e as
510
Heinrich SCHLIER. La Lettera ai Romani. Testo greco e traduzione. Brescia: Paideia Editrice, 1982, p. 292-294.
511
É interessante como Paulo constrói sua argumentação: retomando cada elemento para tornar
mais resistente ao argumento anterior e robustecer o dado que, em seguida, é posto em evidência. 512 “Assim como, pois, através da desobediência (ouvida ao lado) de um só homem, os muitos foram
instalados (constituídos) pecadores, assim também, através da obediência (ouvida sob) de um só, os muitos serão estabelecidos (constituídos) justos” (5,19). É estupendo como Paulo, para exprimir a ideia de obediência e desobediência, utiliza palavras tomadas da linguagem, da escuta e da audição: “assim como [...] pela desobediência ( – ouvida ao lado...) [...], assim também através da obediência (... – ouvida sob...)”. ( + ) literalmente fora de escuta;
sob ( + ) a escuta. Assim desobedecer é pôr-se fora de escuta, onde não se ouve mais. Obedercer é colocar-se sob a escuta da palavra de Deus, dentro dessa acústica divina ou fora dela.
Escutar significa a inserção da pessoa salva por Deus, participando na divinização da graça: “Bem- aventurados os que escutam e guardam a palavra de Deus” (Mt 4,25; Lc 11,27-28).