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A competência da Administração Fazendária, no Brasil, para fins de integração

CAPÍTULO V – A revisibilidade dos lançamentos pela Administração

15 A competência da Administração Fazendária, no Brasil, para fins de integração

normativa, requalificação e interpretação dos suportes fáticos realizados, no

mundo da vida, pelos contribuintes

Na lição de José Souto Maior Borges, o poder tributário – aspecto particular do poder financeiro, este, por seu turno, exteriorização do poder geral do Estado – está rigidamente alicerçado em normas constitucionais disciplinadoras de seu exercício. É, assim, poder jurídico, delimitado pelo Direito. Esclarece, então, o autor sob referência, que, verdadeiramente, o poder tributário do Estado é exercido a partir das normas postas pelo legislador ordinário, com fiel observância ao texto constitucional. Postas tais normas, restringe-se o Estado a dar-lhes efetividade através de seus órgãos administrativos.359

Submetida a atividade tributária do Estado ao ordenamento jurídico vigente, a ideia de “poder”, ora considerada, cede espaço para os conceitos de “direito” e de “obrigação” e, assim, os agentes públicos deixam de exercer uma atividade tributante – de instituição de tributos – para se ocupar com uma tarefa gerencial, meramente arrecadatória, lógica e cronologicamente, posterior ao exercício do poder tributário e, por isto mesmo, destituída de qualquer prerrogativa apta a inovar na aplicação do feixe normativo que a regula.

José Casalta Nabais360 se ocupa em identificar o equívoco da doutrina tradicional em considerar o “poder tributário” como expressão sintética capaz de traduzir, a um só turno, o poder de criação e de exigência dos tributos. Para tanto, esclarece que a criação e a exigência de tributos, presentemente referidas, encontram-se situadas em dois momentos e em dois planos completamente distintos: (i) o momento e o plano de instituição dos tributos, que tem por parâmetro a Constituição e que se exerce por meio de leis; (ii) o momento e o plano da exigência, que, no caso brasileiro, por exemplo, tem por parâmetro as leis (fundamento de validade da criação de obrigações tributárias principais) ou mesmo normas secundárias (fundamento de validade da criação de obrigações tributárias acessórias) e que se realizam através da ação administrativa. Apenas no primeiro momento e plano, em foco, é que, segundo o autor, restaria evidenciado o poder tributário em sentido técnico, como uma faculdade conferida, ao legislador, para dar concretude jurídico-política aos preceitos constitucionais.

359

BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 25 a 27.

360

NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos – Contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2012, p. 269 e 270.

O poder tributário, como procurou demonstrar este trabalho, não mais pode ser compreendido a partir do caráter impositivo que o marcou outrora – poder de fato, decorrente da força. Isto porque, consoante esclarecido no capítulo II, a contemporaneidade atribuiu um novo perfil para o vínculo que une a Administração Fazendária e os contribuintes. Sendo tal perfil obrigacional, constou-se que a relação jurídica de cunho fiscal, por ostentar caráter obrigacional, contempla direitos e deveres recíprocos para aqueles situados em seus polos ativo e passivo; direitos e deveres estes que têm os seus conteúdos determinados pela lei vigente ao tempo de seus nascimentos.361

Não se confundem o poder tributário do Estado com a competência tributária atribuída à Administração Fiscal. Sequer é comum o fundamento de validade do exercício dos mesmos ou os seus respectivos destinatários: no caso do poder tributário do Estado, o legislador; no caso da competência tributária da Administração Fiscal, os agentes da Fazenda Pública. A competência tributária, como visto, diz respeito ao plano de atuação administrativa com vistas à implementação e execução das leis fiscais; é, pois, limitada, como bem sintetiza Aurélio Pitanga Seixas Filho:

A autoridade fiscal, como todos os agentes administrativos, tem o seu campo de ação perfeitamente delimitado pela lei, não podendo agir fora dos parâmetros fixados pelo legislador, porquanto a sua função própria é a de aplicar a lei, isto é a de compelir as pessoas a cumprirem a lei. Assim como as pessoas são inteiramente livres para agir desde que não exista uma lei, determinando comportamento diferente, a autoridade não pode agir ao seu livre-arbítrio, somente podendo se comportar conforme o ordenamento predeterminado pelo legislador.362

O Estado titulariza poderes-deveres, porquanto a sua potestade existe, apenas, nos limites necessários ao cumprimento de determinadas obrigações. Neste sentido, desempenha funções; estas vinculadas não à satisfação de um interesse próprio do ente estatal, que não o possui nesta condição, e sim ao atendimento ao interesse público, ao bem comum, à utilidade coletiva. Nesta senda, assume o Estado a figura de um sujeito de deveres, os quais são impostos pela Constituição e, também, pelas próprias normas infraconstitucionais.

361

Ilustra este posicionamento a clássica lição de Ruy Barbosa Nogueira acerca do meio jurídico para se alcançar a vinculação legal da imposição tributária: “O meio é a determinação dos elementos do fato gerador que devem estar descritos na lei tributária concomitantemente ocorrendo na realidade. É sòmente com a ocorrência do fato prèviamente descrito que vão resultar as conseqüências jurídicas. Sòmente assim é que pode nascer a obrigação tributária. A realização do fato gerador é que cria entre o Estado e o súdido a relação jurídica, que é uma relação obrigacional de Direito Público. A apuração dêsse direito de crédito é feita, tècnicamente, por meio do lançamento.” (Problemática do Direito Tributário no Brasil. In: Ives Gandra da Silva; BRITO, Edvaldo (organizadores). Doutrinas Essenciais do Direito Tributário – Princípios Gerais. Vol. I. São Paulo: RT, 2011, p. 501e 502).

362

SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Princípios de Direito Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; BRITO, Edvaldo (organizadores). Doutrinas Essenciais do Direito Tributário – Princípios Gerais. Vol. I. São Paulo: RT, 2011, p. 61.

Confundir, nesta senda, a ideia de tributação com a noção pura de poder estatal equivale a subverter a natureza da relação instaurada entre o Estado (Fisco) e os seus súditos (contribuintes) – o que constitui verdadeiro equívoco, eis que a imperatividade pura e simples, comprovadamente, não mais permeia a novel relação fiscal, de cunho marcadamente obrigacional.

Deve, pois, a Administração Fazendária harmonizar a atividade arrecadatória do Estado com os princípios constitucionais da legalidade, da capacidade contributiva, do não-confisco, da segurança jurídica e da propriedade. Define-se, justamente, neste giro, a competência tributária como parcela de um poder juridicamente limitado. Em matéria de obrigação fiscal, deste modo, cumpre-se notar que esta, com razão, independe do exercício da vontade (discricionariedade) do sujeito ativo (credor estatal), à medida que envolve um vínculo, sobremaneira, ex lege. O agente fiscal, logo, por não ser o titular do crédito objeto da modalidade obrigacional em foco, deve submeter as suas atuações a uma rígida moldura, previamente configurada pelo legislador ordinário e, reflexamente, pelo constituinte, caso queira emprestar-lhe validade jurídica.

Nos termos acima, a busca autorizada da efetividade do princípio da capacidade contributiva permite que a Administração Tributária identifique o patrimônio, os rendimentos e as atividades dos contribuintes. Para tanto, porém, deverá esta agir, ao exercer dita função fiscalizadora, com base em duas premissas: (i) respeito aos termos das normas – constitucionais e infraconstitucionais – postas; (ii) respeito aos direitos individuais, dentre os quais se situa a propriedade.

Defende, pois, este trabalho não caber, ao aplicador público das normas fiscais (destituídos de poder tributário), empreender, segundo critérios próprios – extrajurídicos – qualquer julgamento acerca da existência ou não de capacidade contributiva em determinada situação concreta não prevista em lei. Entendimento diverso, necessário evidenciar, conduziria à substituição dos critérios de imposição de tributos, legislativamente impostos, pelo arbítrio puro do intérprete público – o que conduziria, em ultima ratio, ao desprestígio da função legislativa e, por conseguinte, ao abalo da separação constitucional de poderes (art. 2º da CF/88). Isto sem falar na quebra de previsibilidade e de segurança que as normas, oriundas dos Parlamentos, gartantem àqueles, às mesmas, submetidos.

O princípio da capacidade contributiva, ante a particular estruturação do ordenamento jurídico brasileiro, deverá conformar-se, portanto, aos estritos contornos do

princípio da legalidade; não se revela, por conseguinte, um fundamento autônomo de tributação, método casuístico posto ao alvedrio da Administração Pública em execício. Entendimento diverso consagra, a despeito da rigidez dogmática do Direito Fiscal pátrio, a viabilidade de um poder geral de tributação, de uma norma geral inclusiva – necessariamente analógica – cuja utilização foi vetada, como visto, pelo legislador ordinário, através do parágrafo primeiro do art. 108 do CTN.

A Constituição Federal de 1988, conforme alertado anteriormente, consagrou, no Brasil, um regime de tributação plena que não admite a integração, senão por lei, dos espaços vazios deixados pelo legislador, ao exercitar o poder tributário do Estado. A atuação válida, assim, da Administração Fazendária, deve cingir-se à taxatividade das hipóteses legais de cobrança de tributos. Poderá haver, neste contexto, espaços alheios à tributação, quer expressos – casos de imunidades, isenções, subsídios, reduções de base de cálculo, concessões, créditos presumidos, diferimentos, anistias, remissões etc –, quer implícitos. Em ambos os campos, operam-se, licitamente, os mecanismos elisivos.

Necessário concluir, então, com esteio no pensamento de Cesar A. Guimarães

Pereira, que não existem lacunas no Direito Tributário brasileiro em relação às normas que prevêem deveres tributários (de recolher tributos ou deveres tributários instrumentais).363 Os casos não previstos em lei submetem-se à regra-geral excludente, recebendo regime jurídico idêntico ao dispensado à não-incidência. É, justamente, com base em tal premissa que se delineia a competência tributária (limitada) dos agentes fazendários para fins de integração,

requalificação ou mesmo interpretação dos suportes fáticos das normas de incidência fiscal,

realizados, no mundo da vida, por particulares.

Por meio da elisão, conforme restou alinhavado, os contribuintes, licitamente, suprimem o exercício da competência tributária da Administração Fazendária. Isto porque a exigência de tributos, pelo Fisco, opera-se ex lege e, em tal situação, por exemplo, não se verificará a ocorrência, no mundo da vida, do suporte fático suficiente para a incidência de norma tributária mais onerosa. E não cabe à Administração Fazendária, com vistas a exigir tributo, extrair a sua competência de fonte diversa da lei.364

Como visto no tópico 12 deste trabalho, detêm os agentes fiscais competência para considerar ineficazes, apenas, os “autolançamentos” elusivos (simulados) ou evasivos,

363

PEREIRA, César A. Guimarães. Elisão Tributária e Função Administrativa. São Paulo: Dialética, 2001, p. 48.

364

PEREIRA, César A. Guimarães. Elisão Tributária e Função Administrativa. São Paulo: Dialética, 2001, p. 16.

aos quais podem dar causa os sujeitos passivos. Isto porque a configuração, no mundo da vida, de qualquer uma de tais hipóteses corresponderá à concretização do suporte fático suficiente de outras normas, as quais autorizam, por sua vez, a ação administrativa revisora: hipóteses do art. 149 do CTN. A revisão de um “autolançamento” elusivo ou evasio, cumpre- se relembrar, deverá ser feita, motivadamente, mediante prova, produzida pela Autoridade Fazendária, dos elementos que caracterizam, por exemplo, a simulação – o que depende de procedimento administrativo fiscal próprio, em que se deve garantir, aos contribuintes, sob pena de nulidade, o exercício do contraditório e da ampla defesa.

Na esteira do parágrafo antecedente, acerca da função investigadora / fiscalizadora da Administração Tributária, diz-se que cumpre a esta empreender esforços para produzir os elementos de prova necessários e suficientes à demonstração da real concreção, no mundo da vida, do suporte fático de determinada hipótese de incidência normativa que o contribuinte quis mascarar. Para tanto – sob pena de revelar-se a sua atuação em decompasso com o ordenamento jurídico vigente – deverá valer-se o Fisco de critérios de interpretação puramente objetivos quando proceder à análise dos atos, contratos e demais institutos de Direito Privado utilizados, por um particular para, violando normas jurídicas, tentar economizar ilicitamente tributos.

A questão da prova da realização, no mundo da vida, do suporte fático de uma norma jurídica é de fundamental importância para a problemática da realização do Direito. Isto porque a segurança jurídica no tráfico social não se compatibiliza com imposições, dirigidas aos contribuintes, de efeitos jurídicos, cuja causa não possa ser devidamente esclarecida. Entendimento diverso permitiria que um agente fiscal, por exemplo, a despeito da realidade, pudesse efetuar a cobrança de determinada exação contra um particular que não tivesse dado causa à norma de incidência desta.

Não é por outra razão que, mesmo quando o sistema jurídico admite a utilização, pelo Fisco, de presunções, estas admitirão prova em contrário. É que, como bem aduz Marcos Bernardes de Mello, “somente fato cuja ocorrência seja da ciência de alguém, apenas, ou que seja passível de prova, pode ser considerado concretizado para os fins da incidência das normas.”365 Nesta ordem de ideias, afirma-se, enfim, que, quando a Administração Fazendária ultrapassa os limites objetivos de análise da materialização de um suporte fático de tributação, no mundo da vida, adentra nos campos da tributação por analogia, retirando, do Diteito Tributário, novamente, a causalidade que lhe é inerente, eis que

365

inexistente lei apta a dar azo à produção dos efeitos jurídicos de natureza fiscal, pretendidos pelo agente fazendário. Por compartilhar do mesmo entendimento, colaciona-se o ensinamento de Heleno Taveira Tôrres:

O órgão julgador [da validade de determinada prática de economia fiscal] deve, pois, esforçar-se para distinguir, nos limites do possível, as situações de “planejamento tributário lícito” daquelas de “dissimulação”, cumpridas com fraude à lei ou mediante atos “sem causa”. A simples dúvida da Administração sobre a qualificação jurídica adotada pelo contribuinte não poderá servir para alegar a “desconsideração do ato ou negócio”. Por isso, a motivação, descrevendo as causas e razões do convencimento, deve ser a mais precisa possível, para que o procedimento se dê de modo legítimo e eficaz.366

A liberdade que o legislador pátrio conferiu aos agentes fazendários quanto à investigação dos meios e modos de revelação de capacidade contributiva e da subsunção dos atos praticados, pelos contribuintes, às hipóteses legalmente previstas representa, à luz dos argumentos expostos neste trabalho, uma discricionariedade formal que não se transfere ao campo substantivo da tributação, ou seja, à aplicação da regra de incidência, por meio da qual, taxativamente, são expressos os fatos tributáveis, os sujeitos passivos, os elementos constitutivos da base de cálculo das exações, bem como as alíquotas destas (elementos essenciais dos tributos).

A função qualificadora tributante, no sistema tributário vigente no Brasil é definida por intermédio de atos vinculados de aplicação das leis vigentes, não podendo, logo, ser suplantados os estritos atos de interpretação / aplicação normativa que, validamente, dão azo à cobrança de tributos, por valorações de ordem social, política ou econômica. Por mais coerentes que possam parecer tais valorações revelam-se as mesmas estranhas à dogmática e, assim, permitir o ingresso destas no mundo jurídico, findaria por corromper a segurança que este, a seu turno, esforça-se para promover. Sintetiza este argumento Hugo de Britto Machado:

Trocar o critério jurídico da definição legal das hipóteses de incidência tributária, pelo critério econômico da identificação de capacidade contributiva, seria inaceitável troca de segurança, propiciada pelo princípio da legalidade, pela insegurança, que abre as portas para o arbítrio.367

Do modo como se encontra estruturado o ordenamento jurídico brasileiro, maximizou-se a eficácia da legalidade que, aqui, ultrapassa o momento dos lançamentos para nortear toda atividade administrativa; inclusive, quando esta for dotada de escopo fiscalizatório, com vistas a rever, por exemplo, atos praticados pelos contribuintes para,

366

TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Tributário e Direito Privado: autonomia privada, simulação e elusão tributária. São Paulo: RT, 2003, p. 275.

367

ilicitamente, fugir à tributação, ou pelos próprios agentes fazendários, diante de erros de fato, inimputáveis aos mesmos.368 Limitadas, pelo bloco de juridicidade vigente no país, as funções administrativas no que toca à qualificação, integração e interpretação dos suportes fáticos realizados, no mundo da vida, pelos contribuintes, estes se encontram livres, ao menos do ponto de vista dogmático defendido neste trabalho, para além dos tipos fechados de tributação, cujas “lacunas” – irrelevantes jurídico-tributários – não poderão ser preenchidas pelos aplicadores da lei tributária. Como visto, optou o constituinte por entronizar os valores

certeza e segurança, aqui tratados como decorrência da legalidade fiscal, com vistas a conter

o arbítrio da Administração Tributária no que tange à instituição e/ou majoração de tributos não previstos em lei.

16. Questionamentos acerca da revisão de “autolançamentos” elisivos empreendida