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A compreensão da paternidade humana no Novo Testamento

2. As diferentes compreensões da paternidade

2.2 A paternidade humana

2.2.3 A compreensão da paternidade humana no Novo Testamento

a palavra πατhvρ ocorre 414 vezes no Novo Testamento, reportando-se mais de 250 vezes a Deus e 150 aos homens177. Esta realidade ilustra a alteração paradigmática face à Antiga Aliança, mostrando que um dos centros do Novo Testamento é precisamente a revelação da paternidade de Deus Pai em Jesus Cristo. Não obstante esta constatação, o

no ambiente egípcio que o educador do príncipe herdeiro fosse tratado por pai (Cf. E. JENNI, baÉ,, 42-43.), sendo o faraó considerado filho de Deus (Cf. O. HOFIUS, pατhvρ, 616.).

A descrição de José como grão-vizir (cf. Gn 41, 43-49) aproxima-me muito dos atributos de sacerdote de

Ma’at. O principal atributo do ministro do faraó era o culto de Ma’at. Ma’at, era a deusa filha de Rá, Deus Sol e personificava a ordem universal, nomeadamente no equilíbrio cósmico, na norma jurídica, verdade, equidade e justiça. A veneração de Ma’at era, no entendimento egípcio, condição necessária para garantir a recta conduta. (cf. AA.vv., Maât, in Dicionário Enciclopédico das religiões. Volume II: K-Z (ed. H. SCHLESINGER e H. PORTO), Vozes, Petrópolis 1995, 1645).

176 Cf. E. JENNI, baÉ,,, 41-42.

Novo Testamento, em especial os escritos paulinos, contém importantes referências ao exercício da paternidade humana que excedem o uso estritamente familiar.

Apenas os evangelhos sinópticos se referem à paternidade humana no contexto familiar, retomando as categorias do Antigo Testamento. O evangelista coloca a atitude de honrar pai e mãe como um dos mandamentos de Deus (cf. Mc 10, 19), ainda que o seguimento de Cristo para o anúncio do Reino esteja acima dos valores familiares (cf. Lc 9, 60).

O apóstolo Paulo afirma que cabe ao esposo e pai ser a cabeça da família, estabelecendo uma analogia entre a relação esponsal e a relação de Cristo e a Igreja. A justiça (δίκαιον) (cf. Ef 5, 22 - 6, 9) implica a submissão (ὑποτασσόµενοι) da esposa ao marido, à imagem da Igreja a Cristo (cf. Ef 5, 21), exigindo o amor (ἀγαπη) do marido à

esposa (cf. Ef 5, 25). À imagem do mistério (µέγα µυστήριον) da relação Cristo e a Igre- ja, o marido deve reproduzir as atitudes de Cristo, que Paulo as nomeia em santificar (ἁγιάσῃ) e purificar (καθαρίσας). A estrutura familiar é ainda completada pela atitude de

obediência (ὑπακούετε) e honra (τίµα) dos filhos para com os pais (γονεῦσιν) (Ef 6, 1). A Carta aos Colossenses possui as mesmas orientações (cf. Col 3, 18 – 4, 1). Portanto, o apóstolo Paulo valoriza a autoridade do pai à imagem da cultura clássica e do Antigo Testamento; todavia a fundamentação da vida familiar é o Senhor (Κύριος) (cf. Ef 5, 20; 6, 1. 4; Col 3, 18. 20)178.

Este mesmo sentido é partilhado na carta aos Hebreus. A autoridade paterna de Deus encontra-se em analogia com a humana, pois Ele corrige porque ama (cf. Heb. 12, 7). O sentido dos escritos sapienciais (cf. Prov. 3, 12) coloca a correcção paterna como parte integrante da educação, sendo que a paternidade humana fica subordinada à paternidade divina da qual provém a Vida.

O sentido da paternidade no decurso no Novo Testamento ultrapassa o nível familiar. Não raras vezes o anunciador da Palavra de Deus torna-se, pela fé, pai dos discípulos. É com esta perspectiva que se encara a paternidade do apóstolo Paulo para com as comunidades por ele evangelizadas, e de modo especial, em relação a alguns dos seus discípulos. Neste contexto, Paul Ternant considera São Paulo como o teólogo da paternidade espiritual179.

A paternidade em Paulo de Tarso pode ainda ser enquadrada no entendimento greco-latino. A figura do pater familias no império romano era extremamente importante. Este garantia a disciplina e a regulação de todos os elementos da família, constituindo-se como figura jurídica. No apóstolo assinala-se a presença da autoridade, mas à qual se associa a nota de uma extrema afeição pelas comunidades por ele convertidas (1 Tes 2, 11-12; 1 Cor 4, 14-16; Fil 2, 22; Flm 10), evidenciando-se dois vectores característicos da paternidade: autoridade e afectividade180.

A afectividade paterna é notória na Primeira Carta aos Coríntios, um dos escritos cristãos mas antigos. Paulo é pai para os Coríntios por os gerar em Cristo pelo evange- lho; não se trata de um título de honra, nem parece provável que o apóstolo fosse assim tratado. O enfoque dá-se na transmissão da vida pela profissão do mesmo evangelho, do qual o apóstolo está ao serviço. Existe aqui uma importante nota de distinção do cristia- nismo face ao judaísmo – não se promove a dependência do discípulo ao mestre, pois a relação assenta na fé (ἐν πίστει) (1 Tim 1, 2; Tit 1, 4; 1 Cor 4, 17)181.

Paulo afirma-se como o pai da comunidade (cf. 1 Cor 5, 15) em virtude da pre- gação do evangelho de Cristo. Nas suas epístolas por várias vezes refere explicitamente o acto de gerar (γεννάω) (cf. 1 Cor 4, 15; Gal 4, 19; Flm 10); em outras passagens, Pau-

179 Cf. P. TERNANT, Padres y Padre, in Vocabulario de teología bíblica (ed. X. LÉON-DUFOUR),

Herder, Barcelona 1980, 624.

180 Cf. T. BURKE, Pauline paternity in 1 Thessalonians, in Tyndale Bulletin 51.1, 2000, 59-80. 181 Cf. G. SCHRENK, Pathvr, 1280-1281.

passagens, Paulo dirige-se, como Jesus, aos seus discípulos como filho (τέκνον) (1 Cor 4, 17), filho amado (ἀγαπητῷ τέκνῳ) (2 Tim 1, 2) e verdadeiro filho (γνησίῳ τέκνῳ) (Tit 1,

4).

À nota da afectivadade paterna, associa-se a sua autoridade. Em Paulo esta está implícita pelo uso de expressões imperativas que pretendem induzir determinados com- portamentos, como é o caso de «exortamos» (παρακαλοῦντες), «encorajamos» (παραµυθούµενοι) e «advertimos» (µαρτυρόµενοι) (1 Tes 2, 12) na Primeira Epístola aos Tessalonicenses e na Primeira Carta aos Coríntios de «admoestar» (νουθετῶν) (1 Cor 4, 14)182.

A autoridade de pai ainda se nota pelo uso do modo imperativo nas cartas pastorais, como se regista na Segunda Epístola a Timóteo. Paulo orienta Timóteo para a fidelidade ao ensinamento recebido, à imagem do seu próprio modo de vida, da sua fé e paciência, do seu amor fraterno e da sua resistência nas perseguições e sofrimentos (cf. 2 Tim 3, 10-12), como o discípulo pôde testemunhar (cf. 2 Tim 3, 11). Trata-se de uma exortação não apenas intelectual, mas sobretudo existencial, que exige a vida de quem anuncia e que no caso de Timóteo implica o bom exercício do ministério.