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3. Vicente de Lérins e a Identidade dos Patres Ecclesiae

3.1 Obra do Commonitorium

3.1.1 Datação, género e destinatários

Da obra do Commonitorium, redigida por Vicente de Lérins, conhecem-se quatro manuscritos, que se conservam na Biblioteca Nacional de Paris, os quais datam do sécu- lo VII/IX até ao século XII. Todos estes manuscritos parecem ter tido origem no mesmo modelo e têm por título Incipit tractatus Peregrini pro catholicae fidei antiquitate et uniuersitate aduersus profanas omnium haereticorum nouitates206. A editio princeps do Commonitorium foi realizada em 1528, na cidade de Basileia, por João Sichard, prova- velmente a partir de um códice hoje perdido207.

206 Cf. C. SIMONELLI, Introduzione, Commonitorio. Estratti, Paoline, Milano 2008, 9. 207 Cf. C. SIMONELLI, Introduzione, 124.

O nome Commonitorium, pelo qual é mais conhecido, advém de um manuscrito, que não está incluído nos quatros já referidos, cujo título é Peregrini commonitorium aduersus haereticus208.

Quanto à datação, na medida em que o autor indica que iniciou este trabalho três anos depois do Concílio de Éfeso, podemos situar com segurança a redacção desta obra no ano 434. A compreensão do título de peregrinus, que o autor se atribui, enquadra-se no contexto histórico, que já foi apresentado no primeiro capítulo. A nota de Genádio de Marselha, De uiris illustribus, redigida vinte anos depois do Commonitorium, indica que já nesta altura uma porção significativa do segundo livro se havia perdido, tendo os dois volumes sido concatenados num só, distinguindo-se perfeitamente o primeiro do segun- do209.

Esta obra enquadra-se no contexto cultural e eclesial. Vicente de Lérins indica que escreveu este livro para o auxílio da sua memória (cf. Commonitorium I, 1), situação que justifica o título da obra. Esta acção era recorrente no contexto cultural envolvente, pois o género Commonitorium era já conhecido. O seu uso era comum tanto entre escritores pagãos, como por exemplo Quinto Aurélio Símaco, mas também eclesiásticos – veja-se o caso de Sulpício Severo – e tinha por objectivo evitar o esquecimento de elementos ou dados importantes do próprio ou de outro autor.

No decurso dos séculos IV e V, este género encontrou particular acolhimento no seio de uma Igreja preocupada em combater as heresias. Em tal contexto, era costume corrente registar por escrito as listas e os conteúdos fundamentais das heresias, indicando-se também, de modo sintético, o modo como estas deveriam ser refutadas. É o mesmo modelo e preocupação que encontramos na obra de Vicente de Lérins. A

208 Cf. R. DEMEULENAERE, Prefacio de Vicentii Lerinensis, Commonitorium. Excerpta, CC 64, Bre-

pols, Turnholt 1985, 128-129.

209 Cf. R. DEMEULENAERE, Prefacio de Vicentii Lerinensis, 127. Cf. C. SIMONELLI, Introduzione,

utilidade prática e pastoral deste tipo de documentos é evidente, pois facilmente se tornava acessível a um público que não fosse muito erudito. O carácter pedagógico e simples associado a um estilo retórico cuidado leva igualmente muitos a não desprezarem a possibilidade de ter servido de manual de instrução para os monges mais novos do mosteiro de Lérins; recorde-se, a este propósito, que Euquério de Lião confiou a Vicente a educação dos seus dois filhos210.

Os séculos IV e V da Igreja na Gália ficaram marcados pela acesa discussão e confronto com as heresias que se foram sucedendo quanto à interpretação da doutrina da fé e no cuidado de evitar toda a novidade que adulterasse ou acrescentasse algo ao cor- pus doutrinal. Por exemplo, é no século IV que se faz a tradução do grego para o latim da obra de Ireneu de Lião, Adversus haereses, sobretudo pelo interesse que suscitava a formulação da regula fidei, a regra da fé, que o bispo formulou como regula veritatis 211. Com efeito, nota-se a influência de Ireneu na obra de Vicente de Lérins, que também se havia debatido com uma heresia – o gnosticismo – e que alicerçou o sentido da interpre- tação eclesial da Sagrada Escritura e da Tradição. Todavia, o monge de Lérins coloca menor ênfase na apostolicidade da doutrina e na função do magistério que o bispo Ire- neu212.

3.1.2 Estrutura do texto

A primeira parte da obra contém a tese principal, na qual o autor indica que as heresias surgem em virtude da introdução de novidades na Tradição, apresentando sinteticamente as heresias que a Igreja havia condenado até ao século IV. A fidelidade

210 Cf. C. SIMONELLI, Introduzione, 96-110.

211 IRENEU DE LIÃO, Adversus Haereses III, 2, 1 (ed. A. ROUSSEAU e L. DOUTRELEAU), SCh 211,

Cerf, Paris 1974, 26.

212 Cf. E. CONTRERAS e R. PEÑA, Introduccion al estúdio de los padres latinos. De Nicea a Calcedo- nia. Siglos IV y V, Editorial Monasterio Trapense de Azul, Argentina 1994, 135. Cf. C. SIMONELLI,

da Igreja reside em guardar a Tradição que vem de e por meio de seus Pais, e que «tem sido acreditado em todo o lado, sempre e por todos» (Commonitorium II, 5). Neste sen- tido, importa cuidar de forma especial da correcta interpretação da Sagrada Escritura, à luz da Tradição, na qual pode acontecer o saudável o desenvolvimento dos dogmas.

O conhecimento que se tem da segunda parte está limitado ao final, havendo-se perdido a restante informação. Aqui é apenas possível encontrar a conclusão da obra, com um resumo da primeira parte, a narração dos acontecimentos do concílio de Éfeso e seus intervenientes, assim como se descreve duas cartas pontifícias.

A distinção clara dos dois blocos nesta obra não impede todavia a unidade das partes conhecidas. De facto, o final da primeira parte (XXVIII, 16) remete para a necessidade da segunda, e na segunda parte apresenta-se um brevíssimo resumo da obra inicial. Scherliess chega mesmo a apresentar uma hipótese de estrutura da obra, enqua- drando-a num esquema retórico clássico de discurso213, e que tem o seguinte aspecto:

1. Premissa: I

2. Narratio, propositio, explicatio: II-III 3. Desenvolvimento do tema: IV-XXXII

3.1 Illustratio: IV-VI 3.2 Confirmatio: VII-IX 3.3 Refutationes: X-XXXII 4. Peroratio: XXXIII

O número inicial apresenta o tom do autor para a obra, notando-se o respeito que este tem pela Tradição dos Pais.

Os números II-III são, segundo este esquema, a base da obra, onde o autor apre- senta aquilo que é frequentemente considerado como o cânone lerinense (cf. II, 5) e que representa o critério central para a interpretação da Sagrada Escritura. Esta tese é desen-

213 Cf. C. SIMONELLI, Introduzione, 102-106. A autora apresenta o pensamento de C. SHERLIESS, Literatur und conversio. Literarische Formen im monastichen Umkreis des Kloesters von Lérins, Frank- furt am Mein 2000, 194-242.

desenvolvida ao longo do texto, sendo ilustrada (illustratio) entre os números IV a VI com exemplos históricos das heresias conhecidas.

Scherliess identifica entre os números VII-IX a Confirmatio, incluindo-se aqui o modo como o Apóstolo Paulo combateu os desvios da fé nas comunidades cristãs por ele fundadas.

O maior bloco corresponde às Refutationes e inclui as duas secções do Commonitorium. Em termos gerais, Vicente de Lérins apresenta entre os números X- XX o motivo de Deus permitir as heresias na vida da Igreja, concretizando a sua exposição com os casos de Fotino, Apolinário, Nestório, Orígenes e Tertuliano. Ainda nesta parte, o monge de Lérins apresenta um resumo da doutrina católica, aprovada nos concílios anteriores. As Refutationes continuam entre os números XXI-XXVII, nas quais o autor desenvolve um comentário bíblico a 1 Tim 6, 20-21, sustentando o correcto modo do desenvolvimento da doutrina. A terceira parte deste bloco integra os números XXVIII-XXXII. De especial importância é o número XXVIII para este estudo, onde se descreve o lugar teológico dos Padres da Igreja e sua relação com a Tradição. Os restantes números integram o segundo Commonitorium, do qual só se conhece a parte final; aqui distingue-se com exemplos históricos o lugar dos Padres.

A peroratio, ou conclusão, retoma a tese original no sentido de afirmar a necessidade da Igreja preservar a Tradição e de condenar as novidades que adulteram o depósito da fé.

A percepção da estrutura retórica da obra permite intuir uma intencionalidade de redacção pela parte de Vicente de Lérins, possivelmente excedendo o uso pessoal (cf. I, 1). Todavia, a identificação de uma estrutura retórica numa obra que não é conhecida na totalidade deve ser sempre tida com bastante precaução.