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CAPÍTULO II – Esfera Privada e Política Deliberativa

I. A compreensão empírica dos processos políticos

Ao pretender cumprir sua passagem à dimensão externa da tensão entre facticidade e validade, Habermas parte e retoma diversas vezes a “longa história das teorias realistas”, a qual inclui modelos tão diversos quanto a teoria da concorrência de Becker, as teorias pluralistas, o elitismo democrático, a teoria econômica e a teoria do sistema. De maneira bastante esquemática, podemos apresentar a estratégia de refutação das teorias realistas da seguinte forma: elas ou não conseguiriam se desprender dos elementos normativos que procuram evitar, ou acabariam por assumir pressupostos descritivos não comprovados (na maior parte dos casos, ambas as coisas).178

177 FG, p. 349 (DDem, v. II, p. 9).

178 Dada a extensão de um percurso que toma grande parte dos capítulos 7 e 8, não poderia reconstituir em detalhe tal estratégia de refutação, sob pena de me afastar muito do recorte temático proposto neste trabalho. Pela mesma razão, também nivelo a diferença entre a perspectiva da “teoria democrática”

Segundo Habermas, ao pretender neutralizar qualquer elemento normativo em prol de uma análise estritamente empírica dos processos políticos, a tradição do realismo político apenas deixaria de explicitar seus pressupostos normativos de fundo. E em todos os casos nos quais esse argumento é utilizado (i.e., todos os realistas, exceto Luhman), os pressupostos normativos mais ou menos camuflados seguiriam aqui uma mesma filiação: o modelo normativo liberal. Com efeito, Habermas acusa Becker de fazer “propaganda ideológica do Estado de direito liberal”179; a teoria social do pluralismo é considerada inserida “no modelo normativo do liberalismo através de uma simples substituição: o lugar dos cidadãos e de seus interesses individuais é ocupado por organizações e interesses organizados”180; o modelo elitista, por sua vez, seria igualmente marcado por uma substituição da disputa pluralista entre organizações por uma disputa travada agora entre elites: “uma vez que os grupos de interesses são seletivos e sem muita influência sobre a política das associações, passa-se a pensar que a luta pelo poder se desenrola essencialmente entre elites”; e a teoria econômica, por fim, agregaria diferentes atores já utilizados na tradição realista aos termos gerais de uma barganha racionalmente motivada: “Ao demonstrar a racionalidade do comportamento dos eleitores e dos políticos, a teoria econômica da democracia levou a cabo a tentativa de capturar empiricamente algumas intuições normativas do liberalismo. Segundo esse modelo, os eleitores traduzem com seus votos um interesse mais ou menos esclarecido na forma de pretensões direcionadas contra o sistema político; enquanto que os políticos, desejosos de conquistar ou manter seus postos, trocam esses votos pela oferta de políticas determinadas. Das transações entre eleitores que decidem racionalmente e elites políticas produz-se decisões consideradas racionais na medida em que levam em conta interesses particulares agregados e sopesados equitativamente.”181 Em todos esses casos da tradição realista, a política seria explicada nos termos de uma concorrência entre entidades

(capítulo 7) e da “sociologia da democracia” (capítulo 8). Tal nivelamento simplifica, mas não prejudica demasiadamente a exposição do argumento de Habermas, já que os “déficits empíricos” atribuídos às análises realistas dos processos democráticos são encontrados em ambas as perspectivas de análise. Sobre o tema, cf. VITALE, D. e MELO, R. “Política Deliberativa e o Modelo Procedimental de Democracia” in NOBRE, M. e TERRA, R. (orgs.). Direito e Democracia – Um Guia de Leitura. São Paulo: Malheiros, 2008.

179 FG, p. 359 (DDem, v. II, p. 18). 180 FG, p. 60 (DDem, v. II, p. 60). 181 FG, p. 404 (DDem, v. II, p. 62).

egocêntricas e auto-interessadas, alterando-se apenas sua amplitude e suas posições sociais.

Após denunciar a falha dessas teorias em desenvolver modelos de análise normativamente neutralizados, Habermas não combate sua “falácia individualista” diretamente no campo normativo, mas sim no próprio âmbito da plausibilidade empírica reivindicada por elas. Segundo Habermas, tais modelos políticos egocêntricos seriam incapazes de explicar como atores que agem segundo cálculos puramente estratégicos poderiam estabilizar suas relações sociais.182 Além disso, eles não explicariam os resultados de pesquisas empíricas que revelam a transformação dos atores, das preferências e dos argumentos durante o próprio jogo político – e nem sequer possuiriam condições adequadas a fazê-lo, já que não voltam suas energias aos processos de formação da vontade política, sendo com isso obrigados a sustentar o pressuposto não comprovado de um conjunto de interesses, valores e objetivos fixos, assumidos de antemão pelos participantes. Nesse sentido, o autor escreve que “não são realistas as idéias segundo as quais possibilidades de escolha e preferências são tratadas como algo dado; ambas transformam-se no próprio processo político. (...) A mudança política de valores e enfoques não é um processo de adaptação cega, porém o resultado de uma formação constitutiva da opinião e da vontade. (...) [Também] não é realista a idéia segundo a qual todo comportamento social é concebido como agir estratégico, o qual pode ser explicado como o resultado de um cálculo egocêntrico de possíveis vantagens. A força sociológica e explicativa desse modelo é visivelmente limitada.”183

As críticas à teoria do sistema ganham contornos diversos: para Habermas, ela de fato instaura um modelo objetivante de análise política que se desprende de todo referencial normativo, já que “abandona por completo o nível dos sujeitos da ação, sejam eles individuais ou coletivos”.184 Para o autor, a teoria dos sistemas possuiria certas vantagens descritivas em relação aos demais modelos realistas: ela descreve como nenhum outro o “modo como o processo democrático pode ser solapado pela pressão de imperativos funcionais”.185 Vale dizer, ela apresenta com riqueza de detalhes um

182 FG, p. 407 (DDem, v. II, p. 65). 183 FG, p. 408 (DDem, v. II, p. 66). 184 FG, p. 405 (DDem, v. II, p. 63). 185 FG, p. 406 (DDem, v. II, p. 64).

diagnóstico unânime entre todos os realistas, o qual aponta para o fechamento do sistema político institucional aos fluxos comunicativos oriundos da sociedade civil. Para a teoria dos sistemas, todo tipo de demanda vinda de fora do aparato burocrático-estatal seria acomodada como parte do “entorno” do sistema político e, por sua vez, todo tipo de “irritação” havida entre a política e seu entorno poderia no máximo gerar uma nova auto- programação do sistema para fins de sua estabilização.

Os ganhos de riqueza descritiva da formulação sistêmica do diagnóstico realista, no entanto, não o tornariam menos problemático. Em primeiro lugar, ela não apenas endossaria uma compreensão da política centrada no Estado, como elaboraria sua versão melhor acabada. Nela, o centro de gravidade da política é alojado não apenas nas arenas político-decisórias (as quais podem incluir espaços mais porosos como as instituições parlamentares), mas na atividade mesma de auto-programação do poder administrativo: “[M]anifesta-se aqui de maneira mais acabada uma compreensão da política centrada no Estado, já aplicada pelo modelo liberal. A teoria dos sistemas atribui a formação política da opinião e da vontade dominada pela concorrência entre partidos a um público de cidadãos e de clientes incorporados ao sistema político, porém podados das raízes que os ligavam ao mundo da vida, isto é, à sociedade civil, à cultura política e à socialização. Ali, o governo e a administração não formam apenas o complexo de maior densidade organizatória; eles também estabelecem um contra-curso junto à própria circulação oficial de poder: a administração se auto-programa amplamente, na medida em que dirige os processos de produção legislativa através de projetos de governo, obtém a lealdade maciça do público de cidadãos através de partidos estatizados e se coloca em contato direto com seus clientes.”186

Em segundo lugar, ao negligenciar a existência de uma linguagem comum não especializada que perpassa a sociedade como um todo, incluindo os diferentes sistemas especializados de ação, a teoria do sistema assumiria um inquietante problema relacionado a sua incapacidade em explicar a integração social – o qual já teria sido assumido por algumas de suas mais influentes vertentes tardias, como Teubner e Wilke: “[E]sse ganho ‘realista’ proporcionado pela observação seletiva sobrecarrega a teoria com um problema colateral inquietante. Segundo sua descrição, todos os sistemas

funcionais conseguem sua autonomia através da criação de códigos e de semânticas próprias, não traduzíveis entre si. Com isso, perdem a capacidade de se comunicar diretamente, limitando-se apenas à ‘observação’ mútua. Esse autismo atinge especialmente o sistema político, o qual se fecha de maneira auto-referencial em relação a seu entorno. E esse encapsulamento autopoiético o impede quase por completo de integrar a sociedade em seu todo. (...) Não se vê como o sistema político possa superar o hiato que separa a autonomia dos diferentes sistemas funcionais, garantindo sua coesão: ‘O núcleo do problema está na improbabilidade de que aconteça uma comunicação entre unidades autônomas, que operam de modo auto-referencial’ (Wilke)”.187

Por fim, ao neutralizar qualquer referência normativa em sua caracterização do sistema político, a teoria do sistema não deixaria de recair em cegueiras e falhas descritivas: ela falharia justamente em perceber a normatividade que acompanha o funcionamento do sistema político e os processos democráticos na medida em que se instauram segundo o medium do direito. Nesse sentido, Habermas escreve que “uma teoria dos sistemas que expeliu de seus conceitos qualquer resquício de normatividade, torna-se insensível em relação aos freios normativos contidos no fluxo de poder regulado pelo Estado de direito.”188 Vale dizer, ela opera com um conceito de poder “insensível à relevância empírica da constituição do poder no Estado de direito.”189

Para Habermas, o tipo de realismo político hoje em voga faria prevalecer o diagnóstico de impossibilidade de uma formação racional da opinião e da vontade. Esse diagnóstico, embora não inteiramente equivocado, seria no entanto limitado na medida em que desconsidera formas de “resistência” à auto-programação do sistema político, as quais serão encontradas em práticas de desobediência civil, na proliferação de movimentos sociais e, fundamentalmente, na constituição de esferas públicas independentes da agenda política oficial. Embora tais formas de resistência sejam com freqüência obliteradas em meio ao exercício rotineiro do poder burocrático, elas não são consideradas pelo autor como focos isolados ou casuais. Com efeito, o caráter ambivalente do direito moderno, apresentado na reconstrução interna nos termos de uma tensão entre a positividade da norma e suas exigências de legitimidade, permite que ele

187 FG, p. 407 (DDem, v. II, pp. 64-65). 188 FG, p. 406 (DDem, v. II, p. 64). 189 FG, p. 407 (DDem, v. II, p. 65).

seja apresentado aqui como um mediador entre as operações do sistema político e os fluxos comunicativos oriundos do mundo da vida. Para Habermas, quando os sistemas de ação institucionalizam juridicamente suas estruturas de funcionamento, eles assumem mesmo que a contragosto as expectativas normativas vinculadas ao medium o direito, as quais os obrigam a se abrir a exigências de legitimidade veiculadas na linguagem não especializada do mundo da vida.190 Assim, a mencionada resistência à auto-programação burocrática do sistema político é apresentada como uma contra-tendência da formação política da vontade que parte da sociedade em direção ao Estado, possibilitada pela interligação mesma entre o poder político e o medium do direito.

“Parece que o saber regulatório requerido não consegue mais penetrar nas capilares de um processo de comunicação entrelaçado horizontalmente, aberto osmoticamente e organizado de modo igualitário. Tais evidências, porém, não devem fazer esquecer a circunstância de que o desacoplamento da regulação política do processo parlamentar e a emigração dos temas para fora das arenas públicas não acontecem sem resistência. Pouco importa a versão, nem o tipo de constelação: a questão democrática sempre consegue entrar na agenda. (...) Se partirmos da premissa de que o sentido próprio do medium do direito, com o qual se liga internamente o poder político, nos força a admitir uma gênese democrática do direito, veremos que essas tendências opostas não acontecem por acaso.”191

Segundo o autor, a tentativa de superar as limitações dos modelos realistas em perceber os “freios normativos” à auto-programação sistêmica dos processos políticos exigiria uma passagem às teorias normativas da democracia.192 Ao considerar os debates

190 “No seu conjunto, o mudo da vida forma uma rede de ações comunicativas. Sob o ângulo da coordenação da ação, seu componente social consiste na totalidade de relações interpessoais ordenadas legitimamente. Ele abrange, além disso, coletividades, associações e organizações especializadas em determinadas funções. Alguns desses sistemas de ação funcionalmente especificados tornam-se independentes em relação aos domínios de ação integrados socialmente através de normas, valores e entendimento, passando a formar códigos próprios – como é o caso da economia, que se utiliza do dinheiro, e da administração, que se desenrola através do poder. Todavia, através da institucionalização jurídica dos meios de regulação, esses meios continuam ancorados no componente social do mundo da vida. A linguagem do direito reveste as comunicações do mundo da vida oriundas da esfera pública e privada com uma forma que as permite serem assumidas também pelos códigos especializados dos sistemas de ação auto-regulados – e vice-versa. Sem esse transformador, a linguagem comum não poderia circular por toda a sociedade.” FG, p. 429 (DDem, v. II, p. 86).

191 FG, p. 389 (DDem, v. II, p. 48).

192 “Uma vez que o problema da relação entre norma e realidade não pode ser evitado pelo caminho das definições empiristas, temos que retornar aos modelos normativos de democracia já introduzidos para averiguar se as suas concepções implícitas de sociedade oferecem ancoras para uma ciência social.” FG, pp. 358-359 (DDem, v. II, p. 18).

contemporâneos entre os modelos normativos liberal e republicano, Habermas nos diz que ambos os modelos em disputa seriam ainda incapazes de superar os déficits acumulados até aqui: além de se sustentarem por meio de premissas não comprovadas da filosofia do sujeito, as quais projetam as figuras do “sujeito particular que concorre por vantagens” ou do “macro-sujeito social dotado de uma vontade homogênia”, tais modelos estariam ainda presos a uma compreensão da política centrada no Estado. Com efeito, tanto a compreensão da política como uma disputa acerca de “normas constitucionais” (as quais “disciplinam” o poder do Estado), quanto aquela que a defende como a realização dos “objetivos coletivos” de uma sociedade política (a qual pretende se “apropriar do poder burocratizado do Estado”), teriam seu campo de análise limitado, defensiva ou ofensivamente, à política institucional. Tais modelos, pois, caracterizariam a política por meio de demandas específicas levadas ao aparato Estatal (de um lado, o bem comum de uma comunidade eticamente homogênia e, de outro, a proteção de interesses eticamente neutralizada na forma de competências constitucionais), deixando de lado a análise sobre as condições e bloqueios para que tais demandas sejam formuladas livremente entre os cidadãos.193 Em suma, os modelos liberal e republicano seriam ainda incapazes de abarcar os processos sociais de formação política da vontade, nos quais os temas, as posições e os próprios atores coletivos seriam constituídos deliberativamente em esferas públicas situadas à margem do sistema político.

Neste ponto, a teoria da democracia deliberativa é invocada como aquela permite a superação das falhas liberais e republicanas. Ela se baseia em uma compreensão ampliada da política e em critérios procedimentais para medir sua legitimidade. Em primeiro lugar, a política não se limita aos processos de tomada de decisões impositivas havidos no interior das instituições-chave do Estado democrático de direito, mas incorpora, como sua dimensão fundamental, os processos deliberativos que antecedem tais decisões e que podem vir a garantir sua justificação e seu convencimento públicos. Nesse sentido, ela não se limita em avaliar a incorporação de demandas na agenda oficial do poder ou à sua institucionalização jurídico-estatal (caracterizadas como input e output

193 Para Seyla Benhabib, essa caracterização da política em função de demandas específicas direcionadas ao Estado levaria já a uma delimitação prévia das fronteiras entre o público e o privado. Sobre isso, conferir o próximo item deste capítulo. Cf. BENHABIB, S. “Models of Public Space: Hannah Arendt, the Liberal Tradition and Jürgen Habermas”, in Situating the Self. Gender, Community and Postmodernism in

do Estado), mas estende suas atenções à própria gênese dessas demandas em esferas públicas alheias ao sistema burocrático. Segundo a teoria da democracia deliberativa, com efeito, a formação política da vontade tem início em esferas públicas não- institucionais, constituídas por redes de comunicação espontâneas e interconectadas que não se deixam inteiramente organizar, cujas fronteiras se apresentam fluidas no espaço e no tempo. Ao insistir no papel cumprido por uma tal esfera pública não-institucional, a noção de “formação” assume um sentido enfático: ela apresenta-se como responsável não apenas pela identificação dos novos problemas sociais com a sensibilidade de um número irrestrito dos potenciais afetados, como também pela elaboração discursiva de tais problemas, interpretação de carências, articulação de identidades coletivas e seleção prévia dos melhores argumentos apresentados, constituindo assim pautas políticas a serem levadas às instituições político-decisórias e os próprios atores coletivos a exigirem nelas sua devida representação. Em segundo lugar, a teoria da democracia deliberativa defende uma concepção procedimental de legitimidade democrática. Segundo ela, a determinação das normas, valores e objetivos políticos apenas pode ser considerada legítima quando realizada segundo procedimentos que, devido a sua própria estrutura imparcial, sustentam a suposição de produzir resultados racionais. Tal imparcialidade, por sua vez, implica tanto a abertura do procedimento democrático à participação de todos os cidadãos interessados, quanto a exigência de que tal participação seja “qualificada”, quer dizer, que seja realizada por cidadãos considerados “livres e iguais”. Uma concepção ampla de “procedimento imparcial”, pois, exige não apenas o caráter inclusivo e transparente das instituições políticas de tomada de decisão, mas também o estabelecimento de liberdades individuais capazes de garantir a livre formação da consciência e das opiniões pessoais, de direitos à participação igualitária em todos momentos relevantes da formação política da vontade, de uma esfera pública ativa e livre de coerções, capaz de permitir a circulação de, argumentos, críticas e tematizações entre os cidadãos, e de uma redistribuição dos bens materiais capaz de assegurar que todos possuam condições igualitárias de aproveitamento de suas liberdades civis e políticas. Em todas essas exigências de um modelo procedimentalista amplo, trata-se de assegurar que a vontade democrática seja formada, desde suas fases iniciais, segundo a aceitação não coagida dos melhores argumentos apresentados intersubjetivamente.

“A idéia de democracia, apoiada na teoria do discurso, parte da imagem de uma sociedade descentrada, a qual constitui – ao lado da esfera pública política – uma arena para a percepção, a identificação e o tratamento de problemas de toda a sociedade. Se prescindirmos dos conceitos oriundos da filosofia do sujeito, a soberania não precisa concentrar-se no povo, nem ser banida para o anonimato das competências jurídico-constitucionais. A identidade da comunidade jurídica que se organiza a si mesma é absorvida pelas formas de comunicação destituídas de sujeito, as quais regulam de tal modo a corrente de formação discursiva da opinião e da vontade, que seus resultados falíveis têm a seu favor a suposição de racionalidade. Com isso, não se desmente a intuição que se encontra na base da idéia de soberania popular: ela simplesmente passa a ser interpretada de maneira intersubjetiva. A soberania do povo retira-se para o anonimato dos processos democráticos e para a implementação jurídica de seus pressupostos comunicativos pretensiosos para fazer-se valer como poder produzido comunicativamente. Para sermos mais precisos: esse poder resulta das interações entre a formação da vontade institucionalizada constitucionalmente e esferas públicas mobilizadas culturalmente, as quais encontram, por seu turno, uma base nas associações de uma sociedade civil que se distancia tanto do Estado como da economia.”194

Para o autor, é importante mostrar que essa primeira apresentação geral do modelo deliberativo de política nem exclui disputas conceituais travadas em seu interior, nem decide, por si mesma, as estratégias mais adequadas a sua operacionalização no campo da sociologia política.195 Habermas apresenta a democracia deliberativa como um campo intelectual amplo que já inclui diferentes teorias e formulações de seu conceito. E na avaliação dessa pluralidade de modelos, importa essencialmente para ele considerar a relação que cada um deles estabelece com a realidade social. Com efeito, as formulações da política deliberativa revelam expectativas normativas extremamente exigentes, as

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