3 A CONSTRUÇÃO DO CAMPO CIENTÍFICO: TRÊS ARENAS
3.2 A COMUNICAÇÃO CIENTÍFICA: PRODUZIR OU REPRODUZIR, EIS A
Meadows (1999) aponta que, com a utilização dos tipos móveis de
Gutemberg, a partir do século XVII o sistema de informação científica toma grandes
proporções ampliando seu alcance geográfico e atingindo um número maior de
leitores. Nesse mesmo período a sedimentação científica pós Idade Média
oportuniza a ampliação dos canais de comunicação, à medida que o volume de
conhecimentos e o aumento no número de agentes inviabilizam que sejam utilizados
somente os canais informais de comunicação, a saber, cartas, reuniões, seminários
e conversas pessoais. Essas possibilidades deixam de figurar como modo preferido
para a troca de informações entre cientistas e passam a compor um rol de canais
(formais e informais) de informação científica. (BURKE, 2003).
As atividades científicas e técnicas são o manancial de onde surgem os conhecimentos científicos e técnicos que se transformarão, depois de registrados, em informações científicas e técnicas. Mas, de modo inverso, essas atividades só existem, só se concretizam, mediante essas informações. A informação é o sangue da ciência. Sem informação, a ciência não pode se desenvolver e viver. Sem informação a pesquisa seria inútil e não existiria o conhecimento.
Fluido precioso, continuamente produzido e renovado, a informação só interessa se circula e, sobretudo, se circula livremente. (LE COADIC, 2004, p. 27, grifo nosso).
Um conceito possível para comunicação científica é o da livre circulação das
informações, pois é através desse mecanismo que o intercâmbio de informações,
entre os membros da comunidade científica, se constitui. De acordo com Meadows
(1999), a comunicação científica encontra-se no coração da ciência e é através dela
que o campo se edifica. Para o autor não se pode imaginar um campo científico
sedimentado sem um sistema eficaz de comunicação científica. Esse sistema tem
por característica principal a busca pela imparcialidade na avaliação dos originais,
pela colaboração inter e intrainstitucional entre agentes, pela maior visibilidade de
seus produtos, mas, sobretudo, pela construção de uma rede composta por
periódicos, temáticas e agentes (pesquisadores e instituições) que ao se manterem
articulados propiciam ao campo maior institucionalização no cenário da ciência.
Nesse sentido, a principal função da literatura científica é tornar
visíveis/públicos os resultados das pesquisas realizadas. Para Targino (1999), o
processo de comunicação científica compreende desde o momento da escolha
temática e dos possíveis colaboradores, da divulgação dos resultados e, por fim, da
incorporação desse novo saber ao arcabouço científico.
É sabido que o ato de publicar destina-se a tornar oficial um produto ou texto,
garantir a primazia e/ou propriedade da descoberta e, além disso, sob a ótica da
teoria sociológica de Pierre Bourdieu, ao acúmulo de capital científico puro que,
conforme dito, anteriormente, pode transformar-se em capital científico temporal
assegurando cargos relevantes na administração do campo. No contexto científico
brasileiro,
[...] a edição de um artigo científico, além de confirmar competência, pode, agora, assegurar empregos, e quiçá, prêmios e recompensas variadas. Ademais, a política vigente das agências de fomento também concorre para a crescente autoria múltipla, priorizando os projetos integrados de pesquisa em vez de trabalhos individuais. (TARGINO, 2005, p. 8-9, grifo nosso).
Em sendo assim, o sistema de comunicação científica chancela e confere
distinção aos autores que dele fazem parte, atribuindo-lhes maior capital científico
puro, que poderá ser transformado em temporal conforme os postulados de Pierre
Bourdieu. Essa distinção, feita não só com base em temáticas e teorias, mas
também nas regras instituídas e compartilhadas, define aqueles que compõem o
campo, mas principalmente, aqueles que se destacam no campo (elite científica).
“Se fosse preciso dar uma definição transcultural da excelência, eu diria que ela é o
fato de se saber jogar com a regra do jogo até o limite, e mesmo até a transgressão,
mantendo-se sempre dentro da regra.” (BOURDIEU, 2011c, p.99).
A afirmação anteriormente exposta é inquietante visto que, para o senso
comum, transgredir pressupõe ultrapassar as regras, transpor as leis. Nesse sentido,
são os próprios agentes os responsáveis pela manutenção dos limites do campo e
pela definição das práticas legítimas, seja pela atribuição de capital econômico,
cultural ou simbólico, seja pela função de “guardião dos limites do grupo: pelo fato
de que a definição de critérios de entrada no grupo está em jogo a cada nova
inclusão [...].” (BOURDIEU, 2011a, p.68).
O maior problema da atualidade no Brasil, no que concerne à avaliação da
produção acadêmica, diz respeito não só aos critérios que garantiriam a qualidade
do que se produz e se publica, mas também à forma como esses critérios são
empregados nos diferentes níveis exigidos pela comunicação científica. A saber,
ineditismo da abordagem proposta, contribuição para o campo, colaborações intra e
interinstitucionais realizadas, entre tantas outras regras, facilmente identificáveis na
seção de orientações ao autor de qualquer periódico qualizado.
De modo surpreendente, os pesquisadores brasileiros que na maior parte dos
casos também são professores de ensino superior, acabaram por conformar-se ao
sistema “publish or perish” (WILSON, 1942
5apud GARFIELD, 1996, p.11), ensejado
no pós-guerra pelos Estados Unidos como forma de garantir maiores conhecimentos
5
WILSON, Logan. The academic man: a study in the sociology of a profession. New York: Oxford University Press.
de em determinados campos do saber – em especial aos de importância militar,
incorporando-o em seu fazer científico de maneira naturalizada. É inegável que,
principalmente para as agências de fomento brasileiras, os critérios quantitativos de
publicação ainda – mesmo depois de mais de sete décadas – são utilizados como
sinônimos de qualidade e, até mesmo, de profundidade na análise da produção
científica, seja no nível individual, seja no âmbito institucional.
Essa concepção, aceita e ratificada pela práxis da produção acadêmica, gera
– ao mesmo tempo – certo desconforto, ou no mínimo, inquietações à comunidade
acadêmica, entre elas a de como conciliar excelência na execução dos três pilares
(ensino, pesquisa e extensão) que sustentam a universidade brasileira.
É a vigência de um sistema de avaliação de desempenho calcado na produção científica de pesquisadores e professores, à semelhança da Gratificação de Estímulo à Docência (GED)6, adotada nas universidades federais brasileiras: ganha mais quem publica mais. Esta medida que, grosso modo, desconsidera as distinções entre áreas, temas e objetos de estudo, termina por incentivar uma produção calcada na quantificação, relegando-se a qualidade. (TARGINO, 2005, p.10, grifo nosso).
É essa a realidade das Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras onde,
de modo incisivo, observa-se a incorporação da ideia americanizada (publish or
perish) de se fazer ciência, pela qual o volume de produções, mesmo a despeito do
real impacto que elas produzem no campo, é sinônimo de maior empenho,
qualidade e distinção. Nesse contexto, empregando uma análise bourdiesiana, é
impensado que a algum autor/pesquisador do campo seja permitida a não
conformação às regras vigentes e impostas sob pena de sua exclusão do próprio
campo. Aqui se entende autor por “[...] alguém que possui uma capacidade especial
– a de publicar o implícito, o tácito – alguém que realiza um verdadeiro trabalho de
criação.” (BOURDIEU, 2011a, p.102). Essa criação não se restringe à redação de
produtos científicos, mas estende-se à compreensão do campo, à ratificação da
crença que o sustenta e ao entendimento dos jogos linguísiticos engendrados pelos
agentes que compõem o campo. (BOURDIEU, 2011b). Sendo assim, acredita-se
que a busca pela legitimidade individual do agente, mas, sobretudo pela legitimidade
6
Dispositivo aprovado no Brasil em 1988 e revisado na LEI No 11.087, DE 4 DE JANEIRO DE 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/Lei/L11087.htm>. Acesso em: 08 out. 2015.