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4.2- A CONCEPÇÃO DE VONTADE NO PELAGIANISMO

Passaremos a analisar a faculdade de vontade no pensamento pelagiano e as questões periféricas. Nós nos deteremos nas próprias obras de Agostinho, que, por sua grande honestidade intelectual, nos oferece uma completa descrição do pensamento de Pelágio, Celéstio e Juliano. Além do mais, o que nos resta das obras de Pelágio, Celéstio e Juliano são trechos, muitas vezes, encontrados nas obras que Agostinho escreveu para combatê-los. Nossa ideia é fazer um contraponto entre o pensamento de Agostinho e dos pelagianos.

333 McNARAMA (1958), pp. 134-137, nos oferece as seguintes informações sobre Marcelino: ―Marcellinus was well-educated, cultured, and a fervent Christian. […] Because of his integrity Marcellinus was appointed president of the great conference of 411 which, it was hoped, would end the strife between Donatists and Catholics. […] He (Augustine) dedicated several of the most beautiful and powerful of his works to Marcellinus. These were the monumental De Civitate Dei, and the De Peccatorum Meritis and the De Spiritu et Littera. At his request Augustine also composed the De trinitate and his books on Genesis […] (the donatists) accused him (Marcellinus) falsely of a plot in which he had no part and had him thrown into prison.

[…] He (Augustine) continued to make every effort to save him, but when he seemed most hopeful of effecting his release he learned that the Count Marinus had had (sic) him put to death suddenly on September 13, 413‖. Por uma fatalidade, acabou sendo acusado injustamente de traição e sentenciado à morte em 413, em meio aos apelos em vão de Agostinho a favor do amigo.

334 Sobre as fontes de informação que Agostinho recebia sobre o centro do império, na época anterior e posterior ao ataque dos bárbaros à Roma em 410 BROWN (2005), p. 428 afirma; ―Suas informações dependiam de cartas do conde Marcelino, sua fonte costumeira, na época, com respeito às queixas e perplexidades dos refugiados romanos‖.

A polêmica pelagiana tem início, para Agostinho, com a carta que Marcelino lhe envia, pedindo socorro contra a nova heresia, que ganhara força em Roma. A carta, hoje perdida, será respondida por Agostinho através de uma obra chamada De Peccatorum meritis et remissione et de baptismo parvulorum, que passaremos a denominar De Pecc.

Nessa obra, começa a reação agostiniana contra o pelagianismo.

4.2.1 AS PRIMEIRAS REMISSÕES AO PELAGIANISMO: DE PECCATORUM MERITIS ET REMISSSIONE ET DE BAPTISMO PARVULORUM (412) E O DE SPIRITU ET LITTERA (412)

As primeiras obras de Agostinho contra o pelagianismo são marcadas pelas suas primeiras respostas à nova heresia. Agostinho ainda tem receio de atacar frontalmente a figura de Pelágio, provavelmente, por ter boas referências da intelectualidade do monge bretão. As nossas primeiras menções às posições de Pelágio e do pelagianismo ocorrerão com as duas primeiras obras do período antipelagiano (412-430): O De peccatorum meriti et emissione et de baptismo parvulorum (412) e o De Spiritu et Littera (412). A primeira obra foi incentivada pela carta de Marcelino, a segunda foi escrita como complementação da primeira.

Iniciando a análise pelo De Pecc., Agostinho afirma que os pelagianos335 interpretam a ―morte‖ no trecho de Paulo: ―Pois como o pecado entrou no mundo por um só homem e, através do pecado, a morte [...]‖ (Rm 5, 12), como sendo a morte da alma, através de uma imitação do ato do pecado de Adão, e não a morte do corpo. Isso significa que o pecado não é transmitido aos descendentes de Adão. As graves consequências que podem ser percebidas, nesta primeira constatação, é que o pecado original (―originalem peccatum‖)336, amplamente difundido por Agostinho337, é visto como algo totalmente infundado. Cada homem teria uma natureza inocente, no instante do seu nascimento.

335 Cf. De Pecc. I, 9, 9.

336 De acordo com SAGE (1962), p.233: ―L‘expression « peché originel » apparaît pour la première fois dans le De Peccatorum meritis avec une nouvelle acception qui répond à une nouvelle conception du péché que nous contractons d‘Adam‖.

337 E que, na visão de Agostinho, está totalmente de acordo com a tradição da Igreja Universal, que sempre administrou o batismo infantil. Cf., por exemplo, De Pecc. III, 1, 1.

Assim, os pelagianos interpretarão as escrituras, e tomarão passagens que, aparentemente, corroborem com suas posições338. Na visão pelagiana, o batismo infantil é algo desnecessário para extirpar um ―pecado original‖. Por isso, para os pelagianos, Adão é um mero exemplo de pecador339.

Sobre os que negam o pecado original e tomam a vontade como auto-suficiente, pode dizer Agostinho: ―Existem, pois, quem presume tanto as forças do livre arbítrio da vontade humana, que, para não haver pecado, não é necessário a ajuda divina, uma vez que é concedido à nossa própria natureza o arbítrio da vontade livre340‖. De uma só vez, os pelagianos rejeitam o pecado original, a natureza decaída do ser humano, a fraqueza da vontade, a necessidade do batismo infantil e a graça divina, como socorro à faculdade da vontade. Tais posições serão uma constante ao longo de todo pelagianismo. Para Agostinho, estes homens se tornariam seus grandes adversários até o final de sua vida.

Agostinho se colocará na posição de porta voz do cristianismo católico contra esse, no seu entender, cristianismo distorcido. Apesar de tecer alguns elogios à figura de Pelágio, como sendo um varão santo, cristão e de grande virtude341, não poupará críticas a esta nova heresia.

No Livro III do De Pecc., Agostinho explanará algumas visões de Pelágio sobre as questões relacionadas à vontade. Nesse Livro, Agostinho fala pela primeira vez o nome de Pelágio abertamente342. Na visão dos pelagianos, caso o pecado de Adão tivesse como consequência a queda para todos os homens, que não cometeram o pecado, propriamente dito, a salvação de Cristo, também, seria para todos os homens da terra, inclusive para os que não crêem, o que não levaria em conta o mérito do próprio indivíduo. Como a moral

338 Como é enfatizado por SAGE (1962), p. 239: ―Dans leur conviction de l‘innocense des enfants, qui procédait à la fois de leur opinion sur l‘origine des âmes et de leur conception unilatérale du peché, ils s‘accrochaient à tous les textes qui pouvaient s‘interpréter ou qu‘ils interprétaient comme une négation du péché originel‖.

339 Cf. De Pecc. I, 15, 19.

340 De Pecc. II, 2, 2: ―Sunt enim quidam tantum praesumentes de libero humanae voluntatis arbitrio, ut ad non peccandum nec adiuvandos nos divinitus opinentur semel ipsi naturae nostrae concesso liberae voluntatis arbítrio‖.

341 Cf. De Pecc. III, 1, 1.

342 Cf. De Pecc. III, 1,1.

pelagiana prega, justamente, o contrário, isto é, a salvação por esforço pessoal, Pelágio recusa, veementemente, a noção de pecado original343.

Na obra De Spiritu et Littera, a única remissão que por hora faremos, diz respeito à posição pelagiana ante a lei. Os pelagianos partem do pressuposto que a vontade humana faz aquilo que deseja por ela ser totalmente auto-suficiente. Nesse sentido, quando Deus concede a Lei aos homens, através da revelação, os homens são capazes de cumpri-la, bastando-lhes o querer344. Em outras palavras, pode-se afirmar que o homem se justifica perante Deus, através do uso do livre arbítrio, ao cumprir a lei. Para os pelagianos, Deus concede a lei, e o homem, através da vontade, tem a capacidade de cumprir, se quiser.

O marco do debate entre Agostinho e os pelagianos que mais nos interessa, é sobre a visão que ambos têm sobre a vontade. Pelas poucas linhas colocadas até agora, é possivel notar que a posição do pelagianismo é totalmente antagônica à posição de Agostinho, que vimos nas Confessiones e no De Diversis quaestionibus ad Simplicianum. Os pelagianos têm uma confiança extrema na vontade, pois, através dela, o homem é capaz de cumprir a lei de Deus. Tal visão impede os pelagianos de afirmarem a existência de um pecado original, e, portanto, de uma natureza decaída, dado que, uma das consequências do pecado original é a queda da vontade e sua incapacidade de se voltar para o Sumo Bem. Em resumo, a vontade para os pelagianos é uma faculdade capaz de cumprir todos os seus desejos, não sendo limitada por nada exterior a ela. Se isso soa parecidíssimo com o Agostinho do primeiro Livro do De Libero Arbitrio, motivo pelo qual, os próprios pelagianos, tomaram-no como referência, não podemos afirmar que tal percepção está de todo equivocada. O próprio Agostinho fará a ressalva de que ele tratara, naquela parte da obra, a vontade em seu estado natural. A visão pelagiana sobre a vontade é semelhante à noção de vontade antes da queda dos primeiros pais, que Agostinho concebe. A grande diferença entre pelagianos e Agostinho é que entre eles há o trágico evento do pecado original e sua consequência à faculdade da vontade.

343 Cf. De Pecc. III, 2, 2.

344 Cf. De Spir. et Litt. VIII, 13.

4.2.2 – AS NOÇÕES DE PELÁGIO NO DE NATURA ET GRATIA