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4.1- A FIGURA DE PELÁGIO E O PELAGIANISMO

No fim da primeira década do séc. V d.C., Agostinho será forçado a voltar a falar sobre a faculdade da vontade e os assuntos em torno dela. Apesar das várias considerações, e do avanço que pudemos acompanhar nos capítulos precedentes, uma nova corrente herética, possibilitará que Agostinho faça novas considerações sobre a faculdade da vontade. O homem por detrás dessa nova heresia ficou conhecido como Pelágio, e a escola derivada de suas reflexões será conhecida como pelagianismo.

A figura de Pelágio está envolta em alguns mistérios. As informações que temos deste importante autor, que representa todos os pensadores e correntes de pensamento que propõem uma auto-suficiência humana e que tem um grande otimismo com respeito ao ser humano, são desencontradas, e, muitas vezes, meras hipóteses. De acordo com alguns autores, Pelágio nasceu na Grã-Bretanha dirigindo-se à Itália na mesma época que Agostinho, na primeira metade da década de 80 do séc. IV d.C., permanecendo em Roma por vários anos318.

Iremos nos deter com maiores detalhes sobre as doutrinas de Pelágio, o que possibilitará fazer uma contraposição entre ele e Agostinho. Por agora, pode-se dizer que, a auto-suficiência humana, a que nos referimos acima, se deve à visão pelagiana sobre o significado de liberdade. A liberdade, para o autor bretão, é poder agir através de seu próprio querer e vontade. É poder agir com esforço próprio, seguindo os desígnios de Deus, explicitados em seus mandamentos. Cada homem é o responsável último por seus próprios

318 Como nos sugere BROWN (2005), pp. 424-425: ―Sabemos muito pouco sobre Pelágio. Como Agostinho, ele vinha de uma província: havia saído da Grã-Bretanha para Roma exatamente na mesma época em que Agostinho pôs os pés na Itália pela primeira vez, em busca de sua sorte. Mas enquanto Agostinho havia retornado à terra natal depois de apenas quatro anos, Pelágio permanecera em Roma‖. Também LAVENDER, E. Evolución del pensamiento pelagiano. Un movimiento ascético de finales del siglo IV em Roma. Trad. M.

A. Eguílaz. in: AVGVSTINVS, n° 40, 1995, (179-186), p.180 nos oferece algumas informações a esse respeito: ―Aparentemente Pelagio había venido a Roma cursar los estudios de derecho. Dado que venía de una prestigiosa familia británica, quizás al servicio del gobierno romano, Pelagio fue bien recibido entre las proeminentes familias cristianas de Roma‖.

méritos e salvação. Cristo não passaria de um grande exemplo, seguido por aqueles homens que seguem às leis de Deus, com sua própria vontade319. Os homens são capazes de praticar obras de justiça, tal qual Cristo teria praticado.

Um dos aspectos mais interessantes da visão de Pelágio, é que ele se julgava intérprete das Epístolas de Paulo. E, como todo intérprete, colocava-se em uma posição de verdadeiro comentador de Paulo320. A luta entre Agostinho e Pelágio fora uma luta entre intérpretes das Epístolas de Paulo. Em linhas gerais, pode-se afirmar que, para Pelágio, as Cartas de Paulo são uma unidade literária, sendo que, a Carta aos Romanos, tem como objetivo principal explicitar o mistério da salvação universal321. Será nesta carta que Pelágio buscará fundamentação para sua visão de graça, que será identificada com o conhecimento da verdade, explicitada por Paulo, para que, cada homem, com suas próprias forças, pudesse seguir a lei de Deus, a fim de conseguir a salvação eterna322.

O ambiente do pelagianismo é o final do séc. IV d.C. Período de grandes conflitos teológicos e sociais, dentro e fora da Igreja Católica. Nesse momento, os cristãos estão debatendo entre si o ―melhor‖ tipo de vida para um cristão, com grande ênfase no ideal de vida ascético323. Sem dúvida alguma, Pelágio também está atrás do ―melhor‖ estilo de vida

319 PLINVAL, Georges de. L’heure est-elle venue de redécouvrir Pélage? in. Revue des Études Augustinienne, V. XIX, n° 1-2, 1973, (pp. 158-162), p.158: ―Cela étant, quel est le fond de la doctrine de Pelage? C‘est assurément l‘idée de Liberte, étant bien entendu qu‘il ne s‘agit d‘um ‗laisser-aller‘, d‘une liberte indifférente ou indifférenciée, mais du droit suprême accordé à l‘homme de se diriger volontairement selon la loi de Dieu, de se determiner par son propre mérite et de se sanctifier [...] Cette Liberte est une force que nous possédons de naissance par notre statut d‘homme et d‘être raisonnable, mais qui se trouve orientée et activée en nous par la Loi de Dieu et par l‘exemple de Christ‖.

320 Como relata. BROWN (2005), p. 426: ―Pelágio se havia juntado a esses homens em discussões sobre São Paulo. Tais discussões tinham constituído as bases de suas Exposições das cartas de São Paulo, a fonte mais segura de suas idéias teológicas [...]‖.

321 Como nos atenta em seu minucioso estudo sobre as primeiras reações agostinianas contra Pelágio MARTINETTO, Giovanni. Les premières réactions antiaugustiniennes de Pélage. in. Revue des Études Augustinienne, V. XVII, n° 1-2, 1971, pp. 83- 117, p. 90: ―[...] il est utile de rappeler que Pélage consirère l‘Epître comme une unité littéraire qui a um contenu et um but bien determines. S. Paul écrit aux Romains em leur révélant en toute clarté le mystère du salut universel [...]‖.

322 MARTINETTO (1971), pp. 91-92: ―[...] et il veut leur inspirer un sens inspirer un sens profond de la grâce, qui est, à ses yeux, la connaissance fondamentale, condition préalable et nécessaire pour n‘importe quel progrès dans la science et l avie christienne‖.

323 Como constata LAVENDER (1995), p.179, neste interessante artigo sobre os movimentos ascéticos neste período ―El ambiente teológico romano a finales del s. IV era muy complejo. Uno de los muchos temas debatidos era el de las prácticas ascéticas de la comunidad cristiana. Por mediación de Atanasio y otros personajes, los ascetas del desierto se habían convertido em una fuente de fascinación y de controversia‖.

cristão. Não se pode deixar de perceber uma extrema coerência e honestidade na visão que Pelágio tinha sobre o cristianismo. O pensador bretão acreditava, piamente, após os estudos de autores anteriores, que sua visão estava de acordo com a tradição da Igreja e de seus pensadores, tais como, Lactâncio, Hilário, Ambrósio e João Crisóstomo324. A sua moral era extremamente exigente, o que colocava em questão o tipo de vida da elite do império romano325. Na busca por esse ideal de vida, Pelágio irá defender a perfeita constituição do ser humano, com sua vontade em perfeito estado, pois, só assim, o homem seria capaz de atingir a perfeição326.

Para Pelágio, a graça seria a possibilidade de levar a vida sem pecado, e este seria o ideal de vida ascético do autor bretão327. Pelágio não concede importância à noção de pecado original, que justificaria a natureza decaída do ser humano. Tal noção lhe parecia confusa e infundada, pois, impossibilitaria o homem atingir o ideal de perfeição ascética328. Para Pelágio, é o próprio Deus quem possibilita o homem levar uma vida sem pecado, criando-o e mantendo-o com tal aptidão ao longo da história humana329.

324 LAVENDER (1995), p.181: ―[...] y estaba convencido de que estaba de acuerdo con la tradición ortodoxa de la Iglesia. Indubidablemente, su seguridad veniá del hecho de que había investigado los escritos de las autoridades de la Iglesia anteriores a él, y habia encontrado las respuestas necessarias‖.

325 DIDIER, J.C. Sant Augustin et le baptême des enfants. in. Revue des Études Augustinienne, V. II, n° 1-2, 1956, (pp. 109-129), p.118: ―Elle (Pélage) profita de ce large appel à l‘ascétisme, à la virginité, au monachisme que toute une élite chrétienne entendait dans les dernières annés du IV° siècle, en contraste avec l‘attitude des masses dont le christianisme, désormais officiellement favorisé par l‘Empire, demeure souvent superficiel, accommodant avec le siècle et peu dégagé des vieilles formes païennes‖.

326 BROWN (2005), p. 427: ―Pelágio nunca duvidou, nem por um momento, de que a perfeição fosse obrigatória; seu Deus era, acima de tudo, um Deus que ordenava obediência sem questionamento. Fazia os homens executarem suas ordens e condenaria ao fogo do inferno qualquer um que não cumprisse uma só dentre elas. Mas o que Pelágio estava interessado em defender, com fervor especial, era que a natureza humana fora criada para que se atingisse tal perfeição‖.

327 LAVENDER (1995), p.179: ―Para Pelagio, la humanidad, por la gracia de la creación, redención y revelación, había recibido la possibilidad de vivir libre de pecado. Por Cristo la voluntad humna tenía la possibilidad de liberarse de las pasiones de la carne. Pero esto solo podia ocurrir merced a la estricta observancia de las prácticas ascéticas fomentadas por Pelagio‖.

328 BROWN (2005), pp. 427-428 ―Pelágio não tinha paciência com a confusão que parecia imperar a respeito da capacidade da natureza humana. Ele e seus adeptos escreviam para homens ‗que queriam mudar para melhor‘. Pelágio recusava-se a considerar que essa capacidade de auto-aperfeiçoamento tivesse sido irreversivelmente prejudicada; a idéia de um ‗pecado original‘, capaz de tornar os homens incapazes de não pecar ainda mais, parecia-lhe totalmente absurda‖.

329 MARTINETTO (1971), p. 94: ―[...] que l‘homme possède lê pouvoir de ne pas pécher, pouvoir que Dieu a inséré dans sa nature et qu‘il maintient et enrichit par une progressive ‗dispensatio‘‖.

Para o adversário de Agostinho, um Deus justo só pode ser um Deus que possibilita aos homens exercerem o mérito de suas ações, visando uma vida santa e justa. Isso só se realizaria se cada indivíduo pudesse exercer uma livre decisão330. Deus, como ele deduz de sua leitura de Paulo, ofereceu o conhecimento da lei aos homens e a capacidade de cumprirem a lei, por causa de sua livre escolha.

Historicamente, especula-se que Pelágio escreveu seus primeiros escritos em Roma, antes de 410. Na capital do Império Romano vai fazendo seguidores e admiradores. Talvez, seu grande fiel interprete e divulgador tenha sido outro personagem interessante da antiguidade tardia, seu nome: Celéstio331, estudante de direito em Roma, onde, provavelmente, ouviu in loco as pregações de Pelágio.

Muitas ideias que veremos Agostinho combater, referentes aos pelagianos, são de Celéstio. Realmente, o antigo estudante de direito assimilará e acrescentará ideias aos pensamentos de Pelágio. Celéstio não mais abandonará os ideais e o homem Pelágio. Tanto é assim que, Celéstio foi para a Africa quando Pelágio para lá se dirigiu.

Mal havia ajudado a derrotar a heresia Donatista332, Agostinho toma conhecimento de uma nova heresia que se contraporia às suas ideias, já expressas nas obras Confessiones e De Diversis Quaestionibus Ad Simplicinum, idéias que mostram a dependência da vontade humana em relação à graça divina. Essas idéias eram o pelagianismo, que

330 MARTINETTO (1971), p. 95: ―Dieu est just à l‘egard de tous les hommes et il donne à chacun ce qu‘il mérite selon as réponse libre, celle-ci n‘engage que la destinée de celui qui reponde. Dans sa justice, Dieu offre à tous les hommes les mêmes chances fondamentales et par conséquent il adapte son appel aux difficultés et aux circonstances de vie d‘un chacun‖.

331 Sobre a figura de Celéstio BROWN (2005), p. 427: ―A formação jurídica produzia debatedores habilidosos e excelentes especialistas em tática; levava os jovens sérios a se preocuparem sinceramente com os problemas da responsabilidade e da liberdade e, o que não é de se surpreender, a se intrigarem com o Deus do Velho Testamento, cuja justiça, em Seus castigos coletivos e Seu ‗endurecimento‘ deliberado do coração dos indivíduos, estava longe de ser óbvia. Celéstio, um desses jovens: rapaz de família nobre, cedo se impressionou com Pelágio; abandonou o mundo e escreveu cartas urgentes Sobre o mosteiro a seus pais‖.

332 Por motivo metodológico, deixamos o estudo sobre os donatistas para uma outra oportunidade. Nossa intenção, depois de haver estudado o pensamento de Agostinho em sua pós-conversão ao cristianismo (386-388) na dissertação REIS (2006), ―O problema da virtude no jovem Agostinho: evolução ou revolução?‖ e com o estudo da fase final de Agostinho com esta tese sobre o período anti-pelagiano (412-430), é nos deter em outras fases de seu pensamento, e, dentre elas, o período da polêmica donatista.

Agostinho se depara pela primeira vez através das cartas do conde Marcelino333, cristão fervoroso, comissário imperial no norte da África do imperador Honorato, presidente da conferência entre católicos e donatistas em 411, e amigo no qual Agostinho dedicou inúmeras obras. Marcelino será a fonte de informações da região central do império romano ao bispo africano334.

Mal sabia Agostinho que ele precisaria despender todo seu esforço para enfrentar a nova heresia que estava em seu início. Haveria de enfrentar nomes de grande gênio.

Pelágio, Celéstio e Juliano de Eclano se mostrarão duros adversários, que, ao enfrentarem Agostinho, ajudaram a firmar o nome do futuro doutor da Igreja, que ficará conhecido como Doutor da Graça.