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A concepção histórico-cultural sobre desenvolvimento e aprendizagem

CAPÍTULO II A criança em desenvolvimento: a relação entre desenvolvimento e

2.1. A concepção histórico-cultural sobre desenvolvimento e aprendizagem

Vigotski (1988a) divide as teorias que explicam a relação entre desenvolvimento e aprendizagem em três categorias fundamentais.

A primeira categoria parte do pressuposto da independência entre os processos de aprendizagem e desenvolvimento. Segundo tal concepção, “a aprendizagem utiliza os resultados do desenvolvimento, em vez de se adiantar ao seu curso e de mudar sua direção” (p.103). Vigotski chama a atenção para o quanto as investigações conduzidas por pesquisadores desse grupo teórico, do qual Piaget é o principal representante, desconsideram a escola como local privilegiado de desenvolvimento infantil, pois partem do pressuposto de que o processo de desenvolvimento é independente do que a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

criança aprende na escola. Dessa forma, busca-se compreender o desenvolvimento infantil de forma pura, independente dos conhecimentos, da experiência e da cultura da criança.

Segundo tais teorias, a escola só pode fazer seu trabalho depois que a criança atingir determinado nível de maturação:

O desenvolvimento deve atingir uma determinada etapa, com a consequente maturação de determinadas funções, antes de a escola fazer a criança adquirir determinados conhecimentos e hábitos. O curso do desenvolvimento precede sempre o da aprendizagem. A

aprendizagem segue o desenvolvimento. Semelhante concepção não

permite sequer colocar o problema do papel que podem desempenhar, no desenvolvimento, a aprendizagem e a maturação das funções ativadas no curso da aprendizagem. O desenvolvimento e a maturação destas funções representam um pressuposto e não um resultado da aprendizagem. (VIGOTSKI, 1988a, p. 104, grifos meus)

O segundo grupo teórico afirma, por outro lado, que aprendizagem é desenvolvimento. Segundo Vigotski, esse grupo parece ser, num primeiro momento, mais avançado que o primeiro, ao qual faz oposição. Mas uma análise mais profunda deste grupo teórico demonstra que as duas concepções têm muito em comum. Para tal concepção, da qual James é um dos representantes, o indivíduo é compreendido simplesmente como um “conjunto vivo de hábitos” e o desenvolvimento é reduzido a “uma simples acumulação de reações” (p.105). Um dos pressupostos centrais desse grupo teórico é considerar “as leis do desenvolvimento como leis naturais que o ensino deve dar conta” (p.105) e é nesse aspecto que se assemelha ao primeiro grupo. Diferencia-se por partir de uma total identificação do processo de desenvolvimento e aprendizagem, não os distinguindo. Tal concepção pode ser identificada como ambientalista e autores como Watson e Skinner posteriormente irão aprofundá-la.

Sobre a compreensão ambientalista, Vigotski (1996) destaca as soluções equivocadas que vêm sendo dadas à questão do papel do meio no processo de desenvolvimento. Segundo o autor, de forma geral, o meio é considerado como algo externo à criança, como uma circunstância do desenvolvimento que influencia o desenvolvimento infantil. Dessa forma, ele é compreendido apenas em sua dimensão biológica: “Não se pode aplicar à teoria do desenvolvimento infantil a mesma

concepção de meio que se formou na biologia no que diz respeito à evolução das espécies animais”29 (p.264, tradução minha).

O terceiro grupo teórico busca conciliar as concepções apresentadas anteriormente, fazendo com que coexistam. Trata-se de uma concepção dualista de desenvolvimento, que considera a existência, por um lado, do processo de maturação que depende do desenvolvimento neurológico e, por outro, da aprendizagem considerada em si mesma como processo de desenvolvimento. Koffka é um dos representantes desse grupo. Vigotski (1988a) resume as novidades dessa teoria em três pontos: conciliam-se dois pontos de vista antes considerados contraditórios; considera- se a questão da interdependência de dois processos fundamentais; amplia-se o papel da aprendizagem no desenvolvimento infantil. Porém, para Koffka, o desenvolvimento continua expressando um âmbito mais amplo do que a aprendizagem:

A relação entre ambos os processos pode representar-se esquematicamente por meio de dois círculos concêntricos; o pequeno representa o processo de aprendizagem e o maior, o do desenvolvimento, que se estende para além da aprendizagem. (VIGOTSKI, 1988a, p.109)

Vigotski procura uma nova solução para o problema da relação desenvolvimento e aprendizagem que supere as concepções maturacionistas e ambientalistas presentes nas teorias analisadas.

O primeiro aspecto a ser realçado da concepção de desenvolvimento da Psicologia Histórico-Cultural é a compreensão de que a criança não é um adulto em miniatura30. Há uma constituição infantil específica, tanto física como psicológica, que diferencia adultos e crianças não apenas quantitativamente, mas principalmente qualitativamente. Além disso, o desenvolvimento infantil não é linear, causado por acumulações sucessivas. Há metamorfoses, revoluções radicais no processo de desenvolvimento pelas quais passa a criança, que irão garantir sua passagem de ser biológico para ser cultural. Essas metamorfoses não são produzidas biologicamente pelo curso natural do desenvolvimento, mas sim pela inserção da criança no mundo histórico-cultural:

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29 Original: “No se puede aplicar a la teoria del desarrollo infantil la misma concepción del médio que se ha formado en la biologia respecto a la evolución de las especies animales”.

30

Deve-se ressaltar que a compreensão de que a criança não é um adulto em miniatura não está presente apenas em Vigotski e não foi uma criação sua. Tal concepção está presente em teorias do desenvolvimento anteriores à Psicologia Histórico-Cultural.

Uma vez integrada num ambiente adequado, a criança sofre rápidas transformações e alterações: esse é um processo surpreendentemente rápido, porque o ambiente sociocultural pré-existente estimula na criança as formas necessárias de adaptação, há muito tempo criadas nos adultos que a rodeiam. (VIGOTSKI & LURIA, 1993, p.180)

Quando dizemos que a criança não está madura, realizamos uma comparação com o adulto e tomamos o desenvolvimento deste como parâmetro, esquecendo-nos das diferenças qualitativas entre o desenvolvimento infantil e adulto, e focando-nos apenas nas diferenças quantitativas.

Vigotski, em sua obra, utiliza várias vezes o termo maturação do desenvolvimento, mas, para ele, o desenvolvimento cultural sobrepõe-se aos processos de crescimento e de maturação orgânica.

Ao estudar o desenvolvimento cultural do homem, o autor não nega a permanência e importância das funções naturais (ou elementares) no desenvolvimento humano, mas afirma que não são essas funções que explicam a complexidade das funções especificamente humanas.

A tese fundamental, que conseguimos estabelecer ao analisar as funções psíquicas superiores, é o reconhecimento da base natural das formas culturais de comportamento. A cultura não cria nada, apenas modifica as atitudes naturais em concordância com os objetivos do homem. (1995, p. 152, tradução minha)31

Para esta perspectiva teórica, a Psicologia enquanto ciência precisa sair do “cativeiro da biologia” e passar ao terreno da Psicologia histórica humana (VIGOTSKI, 1995, p.132). Portanto, a maturação, compreendida como maturação biológica, não nos ajuda a compreender e a explicar o desenvolvimento humano. Para o autor, a gênese das funções psicológicas superiores é o que interessa à Psicologia humana.

Nesse sentido, deve-se ressaltar que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores ocorre a partir de mediações culturais. No caso das discussões sobre a produção do fracasso escolar, tal compreensão desloca o foco das “dificuldades da

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31 Original: La tesis fundamental, que conseguimos establecer al analizar las funciones psíquicas superiores, es el reconecimento de la base natural de las formas culturales del comportamiento. La cultura no crea nada, tan sólo modifica las aptitudes naturales en concordancia con los objetivos del hombre. (2001, p. 152)

aprendizagem” do nível individual para o social e coloca o problema da qualidade das mediações culturais presentes na vida da criança (FACCI, EIDT & TULESKI, 2006).

Verifica-se que as causas do atraso mental não podem ser explicadas somente a partir de anamneses, entrevistas e testagens psicométricas, ou seja, com instrumentos que buscam as causas do não aprender na criança e em sua família, mas essa análise deve ser ampliada para a atividade de ensino e de aprendizagem, especialmente no que se refere à qualidade do conteúdo ministrado, à relação professor-aluno, à metodologia de ensino, à adequação de currículo, ao sistema de avaliação adotado, em suma, ao acesso da criança ao mundo dos instrumentos e signos culturais. (p. 111)

Nessa perspectiva, a escola tem papel central no desenvolvimento de seus estudantes, na medida em que cria condições para que se apropriem dos conhecimentos acumulados pela humanidade através de mediações culturais planejadas e intencionais. Cabe à educação escolar ampliar o desenvolvimento do estudante, ou seja, a escola, a partir da organização adequada do ensino, pode produzir desenvolvimento. Segundo Vigotski, "o único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento" (1988a, p. 114, grifos meus).

Assim, os conteúdos escolares devem ser organizados de maneira a formar na criança aquilo que ainda não está formado, elevando-a a níveis superiores de desenvolvimento. Cabe ao ensino orientado produzir na criança neoformações psíquicas, isto é, produzir novas necessidades e motivos que irão paulatinamente modificando a atividade principal dos alunos e reestruturando os processos psíquicos particulares (DAVIDOV, 1988).

Tal concepção de desenvolvimento reconfigura o papel da maturação no processo de aprendizagem e dá à educação escolar um papel central no desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Num sentido oposto ao que vemos nas teorias analisadas por Vigotski, não cabe à escola esperar que a criança amadureça. Ao contrário, é seu dever criar condições para que a maturação efetive-se.

Nessa perspectiva, tem fundamental importância o conceito de Zona de Desenvolvimento Próximo32. Vigotski divide o desenvolvimento humano em dois níveis: o Nível de Desenvolvimento Real33 e a Zona de Desenvolvimento Próximo. O primeiro nível refere-se ao desenvolvimento das funções psicológicas da criança que já se realizou, ou seja, às capacidades intelectuais consolidadas pela criança. Nesse nível, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

32 Zona de Desenvolvimento Proximal ou Zona de Desenvolvimento Potencial em algumas traduções. 33 Ou Nível de Desenvolvimento Efetivo.

estão as tarefas e problemas que a criança consegue realizar sozinha, sem a ajuda de outras pessoas.

Se ingenuamente perguntarmos o que é nível de desenvolvimento real, ou, formulando de forma mais simples, o que revela a solução de problemas pela criança de forma mais independente, a resposta mais comum seria que o nível de desenvolvimento real de uma criança define funções que já amadureceram, ou seja, os produtos finais do desenvolvimento. (VIGOTSKI, 1988b, p.97)

Mas esse nível não é suficiente para compreender a dinâmica do desenvolvimento. Vigotski demonstra que, em pesquisas com crianças de mesmo Nível de Desenvolvimento Real, varia enormemente o nível de desenvolvimento quando a criança é orientada ou ajudada por um adulto ou criança mais experiente, ou ainda quando imita colegas mais velhos. Essa diferença de desempenho na mesma tarefa, sem e com ajuda, Vigotski nomeou de Zona de Desenvolvimento Próximo. Esse nível de desenvolvimento refere-se às funções psicológicas que estão em processo de desenvolvimento. É a distância entre aquilo que a criança faz sozinha e o que ela é capaz de fazer com a intervenção de um adulto. Nesse sentido, expressa a potencialidade para aprender, pois caracteriza o desenvolvimento mental prospectivamente.

A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentes em estado embrionário. (...) Assim, a zona de desenvolvimento proximal permite-nos delinear o futuro imediato da criança e seu estado dinâmico de desenvolvimento, propiciando o acesso não somente ao que foi atingido através do desenvolvimento, como também àquilo que está em processo de maturação. (1988b, p.97-98)

Vigotski (1988b) entende que a aprendizagem e o desenvolvimento são processos diferentes, mas o processo de aprendizagem devidamente organizado resulta em desenvolvimento mental: “[...] o processo de desenvolvimento progride de forma mais lenta e atrás do processo de aprendizagem; desta sequenciação resultam, então, as zonas de desenvolvimento proximal.” (p.102).

Embora tenha avançado na compreensão dialética e histórica acerca das relações entre o desenvolvimento e a aprendizagem, Vigotski apenas esboçou uma

sistematização sobre a periodização do desenvolvimento humano. São outros autores da psicologia histórico-cultural que, partindo dos mesmos pressupostos teórico- metodológicos, debruçam-se mais profundamente sobre o tema, entre eles Leontiev, Elkonin e Davidov.

Vigotski (1996), em um texto intitulado O problema da idade34, escrito em 1932, avalia que a periodização do desenvolvimento é uma questão central para a Psicologia Histórico-Cultural. Aponta, também, que ainda não foram reveladas as leis de trânsito de um período para o outro e que o problema das forças motrizes do desenvolvimento não está solucionado. Segundo o autor, a periodização pedagógica não tem as devidas bases teóricas e não está em condições de responder a uma série de problemas práticos essenciais.

Veremos, agora, como os autores da Psicologia Histórico-Cultural na ex-URSS resolvem o problema da periodização.