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A condição da mulher em Medeia e Gota d’água

2.3. Do enunciatário

3.6.3. A condição da mulher em Medeia e Gota d’água

Antes de iniciar a discussão a respeito da condição de Medeia e Joana na sociedade, faremos a leitura da clássica letra da canção “Mulheres de Atenas” 23, cuja reflexão recai sobre a mulher grega:

Mulheres de Atenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas Quando amadas, se perfumam

Se banham com leite, se arrumam Suas melenas

Quando fustigadas não choram Se ajoelham, pedem, imploram Mais duras penas

Cadenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas Quando eles embarcam, soldados

Elas tecem longos bordados Mil quarentenas

E quando eles voltam, sedentos Querem arrancar violentos Carícias plenas

Obscenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas Quando eles se entopem de vinho

Costumam buscar o carinho De outras falenas

Mas no fim da noite, aos pedaços Quase sempre voltam pros braços De suas pequenas

Helenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas Elas não têm gosto ou vontade

Nem defeito nem qualidade Têm medo apenas

Não têm sonhos, só têm presságios O seu homem, mares, naufrágios Lindas sirenas

23 Seria reducionista não lembrar que a canção “Mulheres de Atenas” pode ser lida como uma metáfora

das condições a que a sociedade brasileira era submetida no período da ditadura militar, no entanto, não enveredaremos por esse percurso de análise, já que chamamos esse texto ao trabalho para discutir, especialmente, a questão da condição feminina na Grécia antiga.

Morenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Temem por seus maridos, heróis e amantes de Atenas As jovens viúvas marcadas

E as gestantes abandonadas Não fazem cenas

Vestem-se de negro, se encolhem Se conformam e se recolhem As suas novenas

Serenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas (BOAL et BUARQUE, 2007, p. 233).

A chave para a compreensão de “Mulheres de Atenas” é a ironia. Consoante Luiz Fiorin (1989, p. 56), “[q]uando se afirma no enunciado e nega-se na enunciação, estabelece-se a figura que a retórica denominou antífrase ou ironia”. Em “Mulheres de Atenas”, o sujeito da enunciação afirma sua admiração pela mulher submissa e resignada no enunciado, porém, na enunciação, fica evidente que ele crê no contrário. Há um desnível entre aquilo que é dito e aquilo que se quer dizer, e é aí que se instala definitivamente a ironia em “Mulheres de Atenas”, recurso linguístico que, se bem percebido pelo leitor, orienta a leitura do texto num sentido oposto ao do enunciado.

O trecho responsável pela ironia do texto é justamente o primeiro verso do refrão “Mirem-se no exemplo”, pois, durante toda a letra da canção, o eu lírico apenas descreve as mulheres de Atenas. Quando ele propõe ao enunciatário – projetado como a figura da mulher moderna – espelhar-se nas atenienses, instaura-se, de fato, a ironia, já que o sujeito da enunciação não faz, jamais, apologia ao machismo e à submissão feminina.

Se considerarmos que um sujeito de plenitude poderá ser definido conjuntamente pelo querer-fazer, dever-fazer, poder-fazer etc. (BERTRAND, 2003, p. 312), a legítima mulher de Atenas representa a anti-plenitude, o sujeito-nulo, visto que suas definições modais são totalmente negativas. Ela é aquela que não-crê, não-deve,

não-quer, não-sabe e não-pode. Há uma vacuidade de modalidades, já que, segundo o

texto, as mulheres são totalmente condicionadas pelas modalidades masculinas. É o

crer, o dever, o querer, o saber e o poder do homem que definem essas mulheres em

sua essência, elas não apresentam vontade própria – “Não têm gosto nem vontade/ Nem defeito, nem qualidade/ Têm medo apenas” –.

Na época em que “Mulheres de Atenas” foi composta por Augusto Boal e Chico Buarque, houve uma onda de manifestações feministas, já que muitos compreenderam apenas o sentido literal da canção, ignorando a existência da ironia velada no enunciado. De fato, essa é uma leitura possível, já que, se tomarmos unicamente a letra da canção como objeto de análise, essa negação do enunciado não é tão evidente, afinal, não há um contexto, como num romance ou numa peça de teatro, que nos indique essa possibilidade de leitura.

O que nos conduz a pensar na possibilidade da antífrase é o conhecimento da obra total de Chico Buarque. Se pensarmos na totalidade da obra do autor, a identificação do poeta com a marginalidade é relevante. Figuras que descortinam a miséria e as diversas subcondições humanas compõem um ethos preocupado com a crítica social, que denuncia o sistema opressor ao dar voz àqueles que não têm voz. Se conduzirmos a leitura nessa direção, podemos afirmar que “Mulheres de Atenas” é uma canção irônica.

Nesse sentido, quem é orgulho e raça de Atenas? As mulheres ou os homens? No refrão – “Mirem-se no exemplo/ Daquelas mulheres de Atenas/ Vivem pros seus maridos/ Orgulho e raça de Atenas” –, há uma ambiguidade instalada não apenas no plano do conteúdo, mas também no da expressão, que torna dúbio o referente do fragmento orgulho e raça de Atenas. Ele se refere às mulheres ou aos seus maridos? Será que essas figuras femininas que estão sempre dispostas a amar, esperar, cuidar e perdoar não são tangíveis de admiração? Não seriam elas o orgulho e a raça, o poder e a força, os bravos guerreiros, os heróis e amantes de Atenas?

É interessante perceber que, no plano da expressão, todos os vocábulos que rimam com Atenas pertencem ao campo semântico feminino – malenas, duras penas,

cadenas, mil quarentenas, carícias plenas, obscenas, falenas, pequenas, Helenas, medo apenas, sirenas, morenas, cenas, novenas, serenas – como se, de fato, as mulheres

representassem Atenas. Assim pode ser entendido, também, o título Mulheres de Atenas. Ao voltar o olhar para a tragédia grega de Eurípides, torna-se evidente que Medeia jamais se mirou nas mulheres de Atenas. Ela representa a estrangeira: aquela que é estranha à sociedade em que vive, estranha aos costumes e ao povo grego. Ela nunca conseguiu ser como as mulheres de Corinto, não tinha apenas presságios, mas sonhava e lutava para que suas vontades se concretizassem. Medeia lutou para ficar ao lado de Jasão, mas foi traída. Ela não se encolhe, não se conforma, não se recolhe. Honrando Circe, a maga que transformou os companheiros de Odisseu em porcos, e

Hécate, a deusa da magia, mulheres descendentes do rei Sol, raça a que pertence, Medeia dá vazão à sua paixão desregrada e exacerbada, que passa a ser dirigida unicamente ao desejo de vingança, alcançado com o assassinato dos próprios filhos.

O tocante na obra euripidiana não é, destarte, apenas a questão da mulher estrangeira, mas também a questão da mulher relacionada à magia e a poderes sobrenaturais. São esses dois aspectos que fazem de Medeia uma figura feminina tão singular em relação às demais mulheres de Corinto. Joana, a Medeia reinventada no subúrbio carioca, também não deixa de trazer problematizações a respeito do posicionamento da mulher na sociedade, entretanto, consoante Diana Toneto, ela

(...) tem mais do que a simples questão da mulher para reclamar. Ela não é apenas a que sofre e chora pelo marido. Acreditamos que Joana possa ser vista como representante do próprio povo. É por isso que ela pode fazer de Gota d’água (a canção) um hino desesperado do povo brasileiro contra a ditadura militar (...). (TONETO, 2003, p. 8).

A possibilidade de pensar Joana como a metáfora do povo, segmento social abandonado à própria sorte, dá-se graças às exigências da própria obra literária. É o texto, a partir de sua coerência e poder de mimese, que evoca a analogia entre as personagens e as classes sociais, elemento da realidade. Quando realizamos uma análise exclusivamente histórica em torno do texto dito literário, estamos subestimando-o, visto que a verdadeira obra de arte jamais se presta a servir, unicamente, de bandeira a determinada reivindicação ou luta social.

Como já afirmamos anteriormente, o que torna determinada produção cultural obra de arte não é o plano de conteúdo, mas, sobretudo, o plano da expressão textual. Muito se perderia, no entanto, se ignorássemos a relação entre a arte e o mundo. Desde Platão, a arte é considerada cópia imperfeita da realidade que nos circunda, já que, como diria o crítico Alfredo Bosi, a literatura, graças ao seu poder imagético, “é um modo de presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós.” (BOSI, 2004, p. 19). A linguagem poética é, consoante Bosi, aquela que coloca em presença algo em ausência; ela indica os seres e objetos do mundo, bem como os evoca. A verdade da poesia é a verdade humana, que reflete, interpreta e projeta aspectos do homem, afinal, como acredita Lima, “não há nada mais humano do que a poesia” (LIMA, 1992, p. 13).

Cabe a nós, críticos literários, não deixar as várias leituras e perspectivas de um texto tornarem-se rivais, já que a obra literária sempre produz um sentido que conduz ao

humano, e, na busca incessante desse sentido, devemos, a partir daquilo que o texto incita, encontrar correspondentes na realidade e no homem. Segundo Tzvetan Todorov, em Literatura em Perigo:

Ao dar forma a um objeto, um acontecimento ou um caráter, o escritor não faz a imposição de uma tese, mas incita o leitor a formulá-la: em vez de impor, ele propõe, deixando, portanto, seu leitor livre ao mesmo em tempo que o incita a se tornar mais ativo. Lançando mão do uso evocativo das palavras, do recurso às histórias, aos exemplos e aos casos singulares, a obra literária produz um tremor de sentidos, abala nosso aparelho de interpretação simbólica, desperta nossa capacidade de associação e provoca um movimento cujas ondas de choque prosseguem por muito tempo depois do contato inicial. (TODOROV, 2009, p. 78).

Pensar Joana além de suas paixões singulares de mulher traída e abandonada, entendendo-a como metáfora do povo brasileiro, não é subjugar a condição de beleza e verdade do texto, já que é a própria obra que propõe essa possibilidade de leitura, a qual, de acordo com nossa bagagem e conhecimento de mundo, podemos acatar ou não.

Foi ao acaso que Chico Buarque e Paulo Pontes escolheram uma figura feminina para representar o povo brasileiro? Eurípides, por mera coincidência, elegeu a mulher para representar o estrangeiro? Ora, a mulher era estrangeira em solo ateniense, cujos valores eram delineados e engendrados por homens em favor dos homens. As mulheres de Atenas não tinham direitos, voz, tampouco escolha. É essa a condição do estrangeiro: submeter-se às regras do outro.

Ao reinventar, no Brasil do século XX, o drama grego da estrangeira abandonada, Gota d’água desloca a questão que, em Eurípides, era puramente social, para o âmbito também econômico – da luta de classes – cerne dos problemas da sociedade brasileira. E nessa luta, quem representará o povo, segmento que tem como missão submeter-se ao mais forte, é Joana, figura feminina que carrega o fardo de ser povo e mulher.

Ambos tentam conquistar um lugar na sociedade, mas são sempre oprimidos e moldados pelo sistema. A seguinte fala de Joana deixa à mostra a similaridade entre a mulher e o povo:

Mulher é embrulho feito pra esperar, sempre esperar... Que ele venha jantar ou não, que feche a cara ou faça graça, que te ache bonita ou te ache feia, mãe, criança, puta, santa madona A mulher é uma espécie de poltrona que assume a forma da vontade alheia

(BUARQUE et PONTES, 1998, p. 60).

Outra analogia referente entre mulher e povo encontra-se em relação aos elementos passionais. Joana é aquela que grita, sofre, sangra e não é indiferente ao próprio drama. O povo também é passional, intenso em sua dor e em sua alegria. Percebemos essa similitude na resposta de Joana a Jasão, quando esse afirma que o motivo da separação foi, para ele, a busca de sossego e tranquilidade, situações impossíveis ao lado de Joana, que é fogo, inferno e intensidade.

(...) Só que essa ansiedade que você diz Não é coisa minha, não, é do infeliz do teu povo, ele sim, que vive aos trancos, pendurado na quina dos barrancos Seu povo é que é urgente, força cega coração aos pulos, ele carrega um vulcão amarrado pelo umbigo Ele então não tem tempo, nem amigo, nem futuro (...)

É seu povo que vive de repente porque não sabe o que vem pela frente Então ele costura a fantasia

e sai, fazendo fé na loteria,

se apinhando e se esgoelando no estádio, bebendo no gargalo, pondo o rádio, sua própria tragédia, a todo volume, morrendo por amor e por ciúme, matando por um maço de cigarro e se atirando debaixo de carro (...) (BUARQUE et PONTES, 1998, p. 12).

É interessante pensar como a leitura de Gota d’água condiciona uma leitura diferente de Medeia. As próprias semelhanças e diferenças observadas entre as duas peças sensibilizam a percepção do leitor para novos detalhes e sensações apreendidos na leitura. Essa resignificação mútua torna o discurso literário inesgotável de sentido e faz da literatura, como acredita Ezra Pound (2001, p. 33), novidade que permanece novidade.

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