• Nenhum resultado encontrado

Entre a tradição e o presente literário: Medeia e Gota d’água

2.3. Do enunciatário

3.6.1. Entre a tradição e o presente literário: Medeia e Gota d’água

Após termos refletido a respeito das letras de canção escolhidas para o córpus de estudo, acreditamos ser conveniente pensar a respeito da personagem feminina Joana, de Gota d’água (1998), peça teatral escrita por Chico Buarque em parceria com Paulo Pontes, escritor, dramaturgo e um dos líderes do Centro Popular de Cultura (CPC) na década de 60. Anteriormente, afirmamos que muitas das letras de canção que fazem parte dos textos dramáticos de Chico Buarque poderiam, sem que houvesse prejuízo semântico, ser estudadas como um todo de sentido, já que foram enunciadas não apenas como parte integrante de peças teatrais, mas como signo-canção. No caso específico de “Gota d’água”, apesar de também ser conhecida como uma canção autônoma, optamos por analisar a letra da canção homônima dentro do texto dramático no qual ela se insere. Para justificar essa escolha, elencam-se dois motivos: 1) Fora do contexto em que foi produzido, o efeito de sentido de feminino de “Gota d’água” engendrado no momento da leitura perde-se parcialmente; 2) A peça Gota d’água22 dialoga com a Medeia (2002) de Eurípides, possibilitando-nos observar o processo de recriação da figura feminina clássica na modernidade.

Não realizaremos, porém, o estudo de toda a peça teatral, mas examinaremos a letra “Gota d’água” como integrante do texto dramático. Conforme a progressão da análise, evocaremos trechos da peça que possam auxiliar as nossas reflexões, bem como pontuaremos questões fundamentais do intertexto realizado com a Medeia clássica. Priorizaremos, destarte, uma leitura que enfoque a subjetividade das personagens femininas em ambas as peças, lançando luz em suas paixões e observando como a própria figura feminina mítica de Medeia foi recriada na tragédia carioca sob a forma da personagem Joana: a Medeia brasileira. Gota d’água e Medeia possibilitam uma diversidade de leituras e enfoques, e, como é impossível, neste trabalho, tratar de todos

22 É importante observar que o lançamento bem-sucedido da peça Orfeu da Conceição, escrita por

Vinicius de Moraes em 1954, a qual transpõe o mito clássico de Orfeu e Eurídice para o morro carioca, sem dúvida, influenciou na montagem de Gota d’água.

os aspectos elucidados em ambas as peças, optamos por concentrar-nos, de fato, nas questões relacionadas ao feminino, embora venha a ser inevitável, em determinados momentos, refletir sobre os aspectos históricos e sociais que emanam dos textos, visto que, muitas vezes, é a obra de arte em si que nos incita a lançar esse olhar.

Ezra Pound, em seu ABC da literatura, faz uma lista dos textos fundamentais que todo iniciante em literatura deveria conhecer. O modo particular como é ordenado esse conhecimento foi chamado por Pound de “paideuma” (2001, p. 161). Cada escritor possui uma memória coletiva e ordena-a de modo diferente. Uma obra literária, portanto, jamais será igual a outra, já que a forma de ordenar o arcabouço da tradição é subjetiva e individual, abarcando a possibilidade de uma criatividade infinita. Chico Buarque e Paulo Pontes possuem conhecimento da tradição literária e ordenam-no de modo singular. A maneira única de organizar o conhecimento histórico, cultural e artístico delineia o “paideuma” desses escritores.

Gota d’água mantém uma relação intertextual com a Medeia de Eurípides. Os

sujeitos da enunciação debruçaram-se sobre a tradição clássica, manipulando-a de modo a atualizá-la no presente. A tragédia carioca reinventa o mito de Medeia, revitalizando- o, pois os sujeitos da enunciação não retornam ao passado com a finalidade de conceber o mito tal qual era concebido na Grécia de Eurípides, mas com o propósito de enxergá- lo sob as lentes da modernidade. Eliot, ao discutir sobre o papel da tradição no ato de criação literária, afirma:

Se a única forma de tradição, de manipulá-la, consiste em seguir rigorosamente as pegadas da geração imediatamente anterior à nossa numa tímida e cega adesão a seus êxitos, a “tradição” positivamente deveria ser desestimulada. (ELIOT, 1968, p. 190).

A produção de Gota d’água pode ser entendida como “a descrição não apenas da produção literária de um dado período, mas também daquela parte da tradição literária que, para o período em questão, permaneceu viva ou foi revivida.” (CAMPOS, 2001, p. 12). A releitura realizada por Buarque e Pontes trouxe a tragédia da Medeia grega para a realidade do subúrbio carioca da década de 60, reinventando-a conforme os liames do período em questão. Não cabia refletir sobre o mito dos Argonautas exatamente como foi pensado por Eurípides, primeiro, porque não teria sentido uma releitura que não trouxesse aspectos novos; segundo, porque seria injusto com qualquer mito tratá-lo, no presente, ainda como no passado, já que o mito, permeado por toda a universalidade que lhe é intrínseca, apresenta um potencial sem igual para ser recriado no presente.

Borges inicia seu artigo Kafka e seus precursores da seguinte maneira:

Yo premedité alguna vez un examen de los precursores de Kafka. A este, al principio, lo pensé tan singular como el fénix de las alabanzas retóricas; a poco de frecuentarlo, creí reconocer su voz, o sus hábitos, en textos de diversas literaturas y de diversas épocas. (BORGES, 1980, p. 226).

A singularidade de Kafka não se deve a uma voz única, mas, ao contrário, ao modo como ele ordena um tecido uniforme costurado por diversas vozes retalhadas. O eco do passado ressoa, inevitavelmente, na fala do presente, ao passo que o discurso do presente também resignifica a tradição literária, como ensina-nos Eliot (1968, p. 190) ao dizer que “(...) o que ocorre quando uma nova obra de arte é criada é algo que simultaneamente aconteceu a todas as obras de arte que a precederam” ou ainda que “(...) o passado deve ser alterado pelo presente tanto quanto o presente é dirigido pelo passado.” (ELIOT, 1968, p. 191).

A tragédia grega de Eurípides passa-se em Corinto e trata da história de seres humanos de origem nobre. O mito que circunda toda a história de Jasão e Medeia é o do Velocino de Ouro: Jasão, para reivindicar o reinado de Ilocus, é incitado pelo tio que lhe usurpou o trono a partir para a Cólquida em busca do cobiçado Velo de Ouro que lá se encontrava. Jasão só conseguiu roubar o precioso objeto com a ajuda de Medeia, herdeira do Deus Sol e filha do rei Aetes, que, apaixonada por Jasão, matou o irmão Apsirto para ajudar o jovem argonauta a possuir o Velo de Ouro. De volta, o tio não restitui o trono a Jasão como combinado, e Medeia, com o uso da magia, trama a morte do tio. Refugiados, os estrangeiros chegam a Corinto, onde a peça, de fato, desenvolve- se.

Na releitura de Medeia, realizada por Buarque e Pontes, o que mais chama a atenção do leitor é o desfecho diferente do original. Após o assassinato dos filhos, Medeia é resgatada pelo carro de Sol e reconcilia-se com os deuses; enquanto Joana, em

Gota d’água, suicida-se por não encontrar a saída para seus problemas na sociedade

moderna. A diferença consiste no fato de que os deuses ainda existiam na Grécia de Eurípides, enquanto, no subúrbio carioca do século XX, Deus está morto e os seres humanos sentem-se desamparados e tornam-se responsáveis pelas próprias ações. O carro de Sol que resgatou a Medeia grega não estava lá para resgatar Joana e poupá-la do sofrimento. O povo é abandonado ao deus-dará. O Deus da sociedade moderna,

como afirmou Friedrich Nietzsche, em Gaia Ciência, cuja publicação chocou a sociedade do século XIX, está morto:

Os deuses também se decompõem! Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos! Como haveremos de nos consolar, nós, assassinos entre os assassinos! O que o mundo possui de mais sagrado e de mais poderoso sangrou sob o nosso punhal. (NIETZSCHE, 2002, p. 134).

A tese da morte de Deus foi o maior legado de Nietzsche à teoria existencialista desenvolvida por Sartre. Nessa mesma esteira, o filósofo francês chega à conclusão de que o homem está condenado a ser livre, pois, na ausência de um Deus para guiá-lo, ele deve criar o sentido da própria vida a partir das próprias escolhas, pelas quais ele será o único responsável. Os seres humanos, assim, passam a ser responsáveis pelos próprios atos. Joana não mata os filhos impunemente; ela deve morrer também. No século V a.C., ao contrário, os deuses estavam vivos no imaginário popular e estavam presentes em toda sua força mítica. A sociedade greco-romana acreditava que os erros não eram totalmente atribuídos ao homem, havia deuses sobre-humanos que influenciavam as ações terrenas com seus poderes, bem como julgavam os homens, atribuindo-lhes castigos ou recompensas. O filicídio cometido por Medeia, mesmo aos olhos do povo grego antigo, era um ato terrível, entretanto não é aos homens atribuído o poder de salvar ou condenar Medeia. Existem deuses, e são eles quem decidirão a sorte dos que estão na terra.

E havia uma razão para que Medeia fosse salva pelos deuses: não podemos nos esquecer de que o deus Sol era seu avô. Segundo Rosa, no prefácio de sua tradução de Medeia:

A descrição tão poderosa da paixão da vingança feita por Eurípedes detém-nos, num primeiro momento, nesse nível puramente humano. Mas uma análise mais acurada mostra-nos que por trás das decisões da princesa colquidiana está a necessidade mais urgente da reconciliação com o transcendente. Da sagrada raça de Hélio, Medeia derramara o sangue do próprio irmão para favorecer Jasão. A Erínia vingadora do sangue familiar derramado aguardava o momento oportuno para que a justiça fosse feita. Assim, muito mais que um simples ato de vingança, a morte dos filhos pelas mãos da própria mãe representa um reequilíbrio da ordem estabelecida. A salvação que ela obtém por meio do carro alado enviado pelo deus Hélio simboliza sua reintegração no universo sagrado, com o qual havia anteriormente rompido. (ROSA, 2002, p. 12).

Medeia, portanto, só se reconcilia com eles na cena final, pois o ato de matar os filhos com as próprias mãos simbolizou a entrega do sangue humano aos deuses, que se

sentem, a partir de então, vingados pela morte de Apsirto, motivo pelo qual perdoam Medeia pelas ofensas do passado e resgatam-na do sofrimento terreno.

Ao ser recriada no subúrbio carioca, a tragédia brasileira não mantém mais vínculos com a nobreza. Gota d’água ocupa-se da tragédia do povo brasileiro, quem, de fato, sofre a tragédia de todos os dias: a dificuldade em adquirir a casa própria, a fome que perturba e o dinheiro que nunca chega ao fim do mês. A peça projeta, sob o cenário da Vila do Meio-Dia, figuras genuínas do suburbano coração do Brasil: a Medeia brasileira não é mais a princesa estrangeira euripidiana, é a mulher do povo; Jasão deixa de ser o argonauta em busca de um trono para torna-se um sambista carioca que aspira à ascensão social; e Creonte perde seu sangue nobre de monarca para ganhar o perfil do “rolo-compressor” capitalista, que esmaga o povo para atingir seus objetivos. A esse respeito, Diana Toneto afirma que Gota d’água faz

(...) de Joana a representante do povo, de Jasão aquele que não tem relação de pertença com o povo e com a classe que nasceu e almeja, pela ascensão, tornar-se elite. Jasão assume a posição da classe média, classe que, como já dissemos, é normalmente destituída de ideologia para assumir a ideologia da classe dominante, no texto, representada por Creonte. (TONETO, 2003, p. 54).

Gota d’água possibilita, assim, uma leitura social, que se torna evidente quando

analisamos a relação entre as figuras e as personagens delineadas pelos sujeitos da enunciação. No entanto, examinaremos, de agora em diante, as questões subjetivas da peça, enfocando especificamente o drama de Joana. Sempre que necessário, retomaremos também a tragédia grega, visto que foi o texto-base utilizado para a reescrita da peça brasileira. Iniciaremos nossas discussões sobre o feminino a partir do samba “Gota d’água”, composto, no enredo da peça, por Jasão de Oliveira, e do belo fragmento do texto em que Joana “acerta as contas” com o homem que a abandonou. 3.6.2. O feminino em “Gota d’água”

GOTA D’ÁGUA Chico Buarque

Já lhe dei meu corpo, minha alegria Já estanquei meu sangue, quando fervia Olha a voz que me resta

Olha a veia que salta Olha a gota que falta Pro desfecho da festa

Por favor

Deixa em paz meu coração

Que ele é um pote até aqui de mágoa E qualquer desatenção

- faça não

Pode ser a Gota d’água (BUARQUE, 2007, p. 159).

“Gota d’água” torna-se rapidamente um samba de sucesso, que ajuda Jasão a ascender socialmente. Mas de quem é a gota d’água? Quem está refletido no espectro dessa gota que insiste em pingar a peça inteira? Como Jasão de Oliveira é o autor da canção, aquele que compôs o samba, podemos pensar, simplesmente, que ele fala da própria gota d’água: a pobreza, o trabalho duro, as exigências de Joana, a tensão da vida de casado. Ele queria samba, piada, risada, paz, refresco, calma, sossego e

tranquilidade; o inferno que era Joana e a vida ao lado dela são a gota d’água para

Jasão.

Se observarmos o fragmento abaixo, fica evidente que, antes de conhecer Joana, Jasão era “moleque, frouxo, perna bamba, barba rala, calça larga, bolso sem fundo”, “Não sabia nada de mulher nem de samba e tinha um puto dum medo de olhar pro mundo”. Foi Joana quem o iniciou na vida:

(...) Pois bem, você

vai escutar as contas que eu vou lhe fazer: te conheci moleque, frouxo, Perna bamba, barba rala, calça larga, bolso sem fundo Não sabia nada de mulher nem de samba E tinha um puto dum medo de olhar pro mundo As marcas do homem, uma a uma, Jasão, tu tirou todas de mim. O primeiro prato, o primeiro aplauso, a primeira inspiração, a primeira gravata, o primeiro sapato de duas cores, lembra? O primeiro cigarro, a primeira bebedeira, o primeiro filho, o primeiro violão, o primeiro sarro, o primeiro refrão e o primeiro estribilho. Te dei cada sinal de teu temperamento. Te dei matéria prima para teu tutano. E mesma essa ambição, que nesse momento se volta contra mim, eu te dei por engano. Fui eu, Jasão, você não se encontrou na rua Você andava tonto quando eu te encontrei Fabriquei energia que não era tua

pra iluminar uma estrada que eu te apontei E foi assim, enfim, que eu vi nascer do nada uma alma faminta, buliçosa,

uma alma de homem. E enquanto eu, enciumada dessa explosão, ao mesmo tempo, eu, vaidosa, orgulhosa de ti Jasão, era feliz,

eu era feliz, Jasão, feliz e iludida,

dos meus dez anos a mais de uma sobre-vida pra completar a vida que você não tinha é que eu tava desperdiçando meu alento, estava vestindo um boneco de farinha Assim que bateu um primeiro pé-de-vento, Assim que despontou um segundo horizonte, lá se foi meu homem-orgulho, minha obra completa, lá se foi pro acervo de Creonte... Certo, o que eu não tenho, Creonte tem de sobra Prestígio, posição... Teu samba vai tocar em tudo quanto é programa. Tenho certeza que a gota d´água não vai parar de pingar de boca em boca... Em troca pela gentileza vais engolir a filha, aquela mosca morta como engoliu meus dez anos. Esse é o teu preço, dez anos. Até que apareça uma outra porta que te leve direto pro inferno. Conheço a vida, rapaz. Só de ambição, sem amor, tua alma vai ficar torta, desgrenhada, aleijada, pestilenta... Aproveitador! Aproveitador!...

(BUARQUE et PONTES, 1998, p. 75-76).

Joana deu matéria prima para o tutano de Jasão; ela fabricou energia que não era

dele: competencializou-o para o sucesso. Graças a Joana, Jasão pôde entrar em conjunção com os objetos-valor de que necessitava para compor seu samba. Para que pudesse produzir energia para Jasão brilhar, Joana, no entanto, apagava-se cada vez mais, entrando em disjunção com a própria energia – “(...) fiz dos meus dez anos a mais uma sobre-vida pra completar a vida que você não tinha (...) estava desperdiçando meu alento (...)” – . A razão da dor de Joana é ter sido usada por um boneco de farinha, que se foi no primeiro pé de vento. O samba de Jasão foi feito com a matéria prima de Joana: o corpo, a alegria e o sangue fervente dessa mulher inflamada de paixão foram o combustível para que “Gota d’água” engrenasse.

Velada por trás da voz de Jasão, temos uma segunda voz, a de Joana, que expressa, em “Gota d’água”, o grito desesperado da mulher traída por seu homem-

orgulho. É a voz feminina encoberta por uma aparente voz masculina. A suspeita de que

a gota d’água de que fala a canção é a de Joana pode ser verificada não apenas no plano do conteúdo, mas também no da expressão, já que a letra da canção é permeada por uma tonalidade extremamente passional, bem como todas as falas dessa personagem na peça. Enquanto Joana concentra em si um misto de diversas paixões – amor, ódio, ciúme, inveja, despeito, vingança etc – que são percebidas por meio da linguagem passional e hiperbólica utilizada por ela, repleta de sentimento, exclamações, xingamentos, ironia e

dor; Jasão configura-se como sujeito tranquilo, racional e equilibrado, características percebidas por meio de sua linguagem contida, objetiva e quase superficial.

“Gota d’água” é construída com base em imagens extremamente passionais – “estanquei meu sangue quando fervia”, “veia que salta”, “pote até aqui de mágoa” –, que nos reportam à personagem Joana muito mais do que a Jasão, que tampouco tem voz, ao assumir sempre a ideologia de quem lhe interessa no momento e moldar a personalidade da forma que lhe é conveniente, tal qual um boneco de farinha.

Em Gota d’água, a linguagem do homem – Jasão, Creonte, vizinhos – tende ao

logos, enquanto a da mulher – Joana, vizinhas –, ao pathos. Se pensarmos que a tragédia ocorre pela variação exagerada do pathos e que são as personagens femininas, mais especificamente Joana, as responsáveis pelo tom passional da peça, elucida-se a ideia de que a mulher, nesse contexto, é a responsável pela tragédia. Fato que se comprova no filicídio da cena final.

Tanto na peça de Chico Buarque e Paulo Pontes, quanto na de Eurípides, as personagens femininas romperam contratos anteriores estáveis, para estabelecerem novos contratos com personagens masculinas, as quais competencializaram para que obtivessem o sucesso. Foi Medeia quem rompeu com os deuses, ao matar o irmão, também descendente do Deus-Sol, para ajudar Jasão a roubar o Velocino de Ouro. Foi Joana quem rompeu com sua vida tranquila para lançar-se aos braços do Jasão carioca, moldando-lhe cada sinal do temperamento e projetando-o para o mundo. Esses novos contratos, no entanto, foram bruscamente rompidos pelas personagens masculinas sem nenhum acordo.

Para que um contrato seja respeitado, é preciso que o conjunto de valores entre aqueles que o estabeleceram seja conforme. Em Gota d’água, Jasão não partilha mais dos valores de Joana: ele não suporta sua intensidade, suas paixões e sua condição de mulher do povo. Ele quer calma, tranquilidade e, acima de tudo, ascensão social. Essas crenças e desejos dissonantes dos de Joana levaram-no a romper o contrato com ela e a estabelecer um novo contrato com uma nova mulher. Da mesma forma, o Jasão argonauta passa a cultivar novos valores, que vão de encontro às crenças da Medeia grega. Ele a abandona e planeja casar-se com a filha do rei de Corinto, para deixar de ser um estrangeiro e tornar-se parte integrante da nobreza. A não aceitação dessas rupturas bruscas de contrato, realizadas sem o comum acordo entre os parceiros, leva ao final trágico de Medeia e de Gota d’água.

Documentos relacionados