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A CONFIGURAÇÃO FAMILIAR E OS RITOS DE SOLIDARIEDADE

4 A VILA

4.1 A CONFIGURAÇÃO FAMILIAR E OS RITOS DE SOLIDARIEDADE

Podemos elaborar algumas considerações sobre o papel dos ritos cotidianos pelo prisma das contribuições de Elias (2004), em suas reflexões acerca do conceito de organizações, ou ainda, na ideia de que as respostas às transformações sociais se encontram nas interações sociais e que elas, portanto, têm a capacidade de desencadear mudanças estruturais. Ainda, e talvez aqui o ponto fundamental da contribuição de Elias para esta reflexão esteja em sua perspectiva processual da interação humana, ou seja, a impossibilidade de conceber um indivíduo fora do espaço social, ou seja, atomizado e autônomo frente ao mundo social no qual ele se encontra. Isto significa serem humanos interdependentes, e portanto, nesta condição, só podem ser compreendidos se os olhares forem direcionados em suas relações com o meio, o grupo e o outro.

Esta perspectiva reforça a ideia já esboçada em capítulos anteriores, de que todo ser humano é dotado de algum grau de individualidade e autonomia, mas que seu processo de reconfiguração da realidade em que se insere depende também das

relações que faz entre o “eu” e o “outro”.

Estas relações de interdependência, segundo o autor, estão contidas na maneira com que os indivíduos veem o mundo ao redor. Partindo da ideia comum a este trabalho de que toda a relação humana também está pautada nas relações de dominação e poder, Elias nos indica que essas relações são parte de um processo de cooperação que tem como principal elo de ligação a luta por recursos escassos, sejam eles de natureza financeira, sexual, afetiva etc. Ainda, estes laços não se restringem apenas ao que poderíamos chamar de núcleo familiar, no sentido burguês, mas a um conjunto de relações familiares que extrapolam este conceito, na medida em que estas mesmas relações de cooperação e interdependência tornam-se mais evidentes e necessárias, principalmente em ambientes hostis, em que a coesão de grupo faz-se ainda mais necessária.

Estrutura e configuração permeiam a obra de Elias, sobretudo em A Sociedade

dos Indivíduos (1994). Também partindo do ponto comum dos teóricos que compõem

este trabalho, a grande discussão em pauta em seus apontamentos é a crítica aos pólos de oposição indivíduo x sociedade, como já esboçamos anteriormente. É preciso ainda algumas palavras sobre esta questão, principalmente nos movimentos que este capítulo se propõe a fazer. Primeiro porque não seria razoável afirmar um indivíduo (ou sociedade) estável, que possa de alguma maneira gerar um arquétipo possível de ser replicado como conceito, no campo da sociologia. Como espero estar caminhando para demonstrar, cada uma das configurações possíveis entre o “eu” e o “outro” formam subjetividades e estruturas sociais absolutamente distintas. De fato, a única forma de considerarmos “indivíduo”, “sociedade” de maneira puramente autônoma seria apenas por pura abstração. Esta ideia de uma sociedade sem contornos muito bem definidos é o caminho que Elias percorre.

A estrutura e a configuração do controle comportamental de um indivíduo dependem da estrutura das relações entre os indivíduos. A base de todos os mal-entendidos no tocante à relação entre indivíduo e sociedade reside no fato de que, embora a sociedade, as relações entre as pessoas, tenha uma estrutura e regularidade de tipo especial, que não podem ser compreendidas em termos do indivíduo isolado, ela não possui um corpo, uma “substância” externa aos indivíduos. Essas idéias podem ser fáceis ou difíceis de apreender, mas os fatos a que se referem são bastante simples: cada pessoa só é capaz de dizer “eu” se e porque pode, ao mesmo tempo, dizer “nós”. Até mesmo a idéia “eu sou”, e mais ainda a idéia “eu penso”, pressupõe a existência de outras pessoas e um convívio com elas — em suma, um grupo, uma sociedade (ELIAS, 1994, p. 48).

É importante ressaltar que, guardando as devidas diferenças temporais e teóricas dos autores que balizam este trabalho, o tema da interpenetração e o esgotamento dos dualismos envolvendo indivíduo e sociedade ancoram todos eles. De um ponto extremo da crítica ao indivíduo que Foucault faz, até as ponderações sobre uma possível autonomia como vemos em Elias e Bourdieu, todos eles partem deste axioma comum, a saber, de que não há, para além da abstração, possibilidade de se conceber um indivíduo fora de seu meio. Mesmo se pensarmos no conceito de

habitus, um conceito de herança aristotélica (hexis), as semelhanças entre os autores

(e aqui sobretudo em Elias e Bourdieu), são facilmente observáveis.

Por “configuração”, Elias pretendeu expressar a ideia de que os seres humanos são interdependentes e apenas podem ser entendidos como tal; as suas vidas desenrolam-se e são moldadas por processos dinâmicos próprios em constante fluxo, passando por mudanças de ordens diversas. Por outras palavras, configuração pode designar -se pelas redes formadas por seres humanos interdependentes.” (AREIAS; MARQUES, 2016, p. 4).

Elias(1987) coloca a relação entre indivíduo e sociedade em um patamar mais dinâmico, ligada ao próprio processo de interdependência entre os indivíduos, o que não ocorre em Bourdieu, já que o habitus tem um viés de classe, e portanto, com a sua ideia de campo. É ainda importante relembrar, que o conceito de classe para Bourdieu possui um caráter mais expandido, não apenas restrito à sua condição econômica. De todo modo, é seguro afirmar que em todos os autores há uma preocupação sistemática no sentido da crítica à sociologia clássica e das dualidades que dela decorrem. Desta forma, acredito que as noções de configuração trazidas por Elias (1987) conseguem contribuir com este debate, trazendo ao conjunto importantes reflexões, principalmente quando pensamos em operações que envolvem as micro- relações.

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