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3.6 EVOLUÇÃO HISTÓRICA

3.6.2 A segunda mudança de paradigma: o novo olhar das ciências sociais

3.6.2.1 A consolidação do desenho urbano como campo disciplinar

O desenho urbano surge e se consolida como campo disciplinar específico, distinto do urbanismo, entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1970. Com a mudança de paradigma e o direcionamento do planejamento urbano às ciências sociais, abre-se um espaço em relação à teoria e prática propositiva para a forma urbana.

O desenho urbano também preencheu uma lacuna profissional. Após o fracasso percebido nos esquemas de renovação urbana do pós-guerra, arquitetos e planejadores urbanos perderam o interesse em imaginar a

forma futura do ambiente urbano, criando uma lacuna profissional que precisava ser preenchida. Havia a necessidade de um grupo de profissionais capazes de imaginar o futuro da cidade de novas formas, para além do lote individual, que era a principal preocupação do empreendedor privado, e em um nível mais concreto do que os mapas de larga escala e diagramas dos planejadores urbanos e regionais (TIBBALDS, 1988 apud MADANIPOUR, 2006, p. 177, tradução nossa).

Arquitetos, no Brasil e no exterior, passam por uma “crise de identidade”, divididos entre a herança modernista e o planejamento urbano emergente a partir das ciências sociais.

Forma-se uma quantidade razoável de “planejadores urbanos” que, se oriundos das escolas de arquitetura, abandonaram o ferramental básico de sua profissão e buscaram nas ciências sociais, principalmente na economia e na sociologia, novos instrumentos para intervir no tecido urbano, sem, entretanto, abandonar os preconceitos e o formalismo do movimento moderno da arquitetura (GASTAL, 1984, p. 74).

Nos anos 1970, houve no Brasil uma transição da busca por referências francesas para as referências anglo-saxônicas (GASTAL, 1984, p. 74). Nos Estados Unidos, é notável o movimento de consolidação do desenho urbano como “subcampo distinto do planejamento” (SHIRVANI, 1985, p. 3), pois havia o interesse, por parte dos intelectuais do país, em “criar uma versão pragmática e americanizada para a construção das cidades sob a rubrica evocativa do desenho urbano” (SOJA, 2009, p. 255, tradução nossa) e em buscar a qualidade na forma urbana distante dos preceitos modernistas (MOUDON, 2003, p. 362).

A Universidade de Harvard esteve entre as pioneiras em criar um programa acadêmico em desenho urbano, em 1960. Distintamente do Brasil, nos Estados Unidos o desenho urbano é ofertado tanto como um programa de graduação específico, quanto uma área de concentração da graduação em arquitetura ou em planejamento urbano (BARNETT, 1982, p.12-13).

Harvard foi também palco de uma conferência em 195622, em que o termo

“urban design” foi adotado como substituto ao “civic design”, como expressão do rompimento com os preceitos do movimento City Beautiful e do movimento modernista, presentes no período anterior, e sua ênfase na elaboração de edifícios públicos e nos planos de cidade “final”, buscando a inserção no processo contínuo de planejamento, como já se começava a preconizar (BARNETT, 2009, p. 105). _______________

Essa opção também reflete o desmonte do Estado centralizador e fortalecido, capaz de construir e gerir suas próprias instituições, suplantando pelo Estado neoliberal, com a crescente dominação das funções e atividades de bem-estar social pelo setor privado (CUTHBERT, 2003, p.6).

A Conferência de Harvard ocorreu em um período de otimismo e confiança, no auge da economia fordista, em que se tornava possível pensar em soluções para os “problemas remanescentes da metrópole moderna, tais como a necessidade de domar a voraz [...] expansão suburbana e insuflar o renascimento nas áreas mais pobres do centro da cidade” (SOJA, 2009, p. 255). Os programas de renovação urbana encontraram naquele momento amplas oportunidades de concretização de grandes intervenções, ligando sua prática ao recém-criado campo disciplinar do desenho urbano, e trazendo a ela algumas implicações:

Um efeito negativo, claro, é que a forte associação do desenho urbano com programas de renovação urbana contaminou e continua a confundir o pensamento de muitos sobre os métodos e potenciais do campo. Um erro comum é ver o desenho urbano como a chamada arquitetura de grande escala. Não se pode negar que, em qualquer cidade, é possível que haja vários projetos grandes públicos, privados ou em parceria público-privada que podem ser citados como “desenho urbano”, mas é importante reconhecer que estes grandes projetos não são o único foco do desenho urbano (SHIRVANI, 1985, p. 3, tradução nossa).

Havia também nessa Conferência um forte espírito congregador de arquitetos, paisagistas, planejadores urbanos. José Luis Sert – idealizador da conferência – preconizava, na ocasião, o desenho urbano como “ramo do planejamento urbano, mas com uma profunda herança e perspectiva arquitetônica” (SOJA, 2009, p. 255). Para ele, o desenho urbano era a parte mais criativa e artística do planejamento urbano, pois trabalha um desígnio à forma (KRIEGER; SAUNDERS, 2009, p. 3-4).

Contudo, o otimismo presente nessa Conferência se dissolveu com a crise econômica dos anos 1960 e a explosão do crescimento urbano na década de 1970 – contexto que transformou as cidades e exigiu intervenções imediatas em busca da retomada do crescimento econômico e da tranquilidade social (SOJA, 2009, p. 256). Isso acarretou uma configuração disciplinar do desenho urbano distante da proposta original de Sert, voltando-se à arquitetura e “afastando-se cada vez mais das correntes do planejamento urbano e regional” (SOJA, 2009, p. 256). Embora o desenho urbano se valha da reflexão analítica de outras disciplinas – como a

psicologia, a antropologia e a ecologia (KOHLSDORF, 1985, p.42) – não atinge o status de um campo interdisciplinar semelhante ao do planejamento urbano.

A difusão da produção intelectual sobre desenho urbano em países anglo- saxões influenciou os novos rumos tomados nos trabalhos de arquitetos brasileiros desde a década de 1970, com forte apelo crítico ao pensamento e prática modernistas (MALTA, 1984, p. 52). Os anos 1980 foram pródigos em resultados desse processo, com destaque para os Seminários sobre desenho urbano no Brasil (SEDUR), realizados em 1982, 1984 e 1986, e a publicação do livro de Vicente del Rio em 1990. Essas obras, ainda hoje, são consideradas as principais referências brasileiras do quadro teórico específico sobre desenho urbano, já que a produção intelectual brasileira não acompanhou a profícua produção estrangeira sobre o tema.

O organizador do SEDUR, Benamy Turkienicz, destacou, à época, a importância dos anais dos eventos ante a escassez de referências brasileiras sobre o tema. Turkienicz destaca, ainda, que o sucesso do II SEDUR é parcialmente devido ao comprometimento dos participantes em relação à convocatória do seminário:

[...] em não confundir desenho urbano com planejamento urbano e em colocar em evidência a forma da cidade. Ficou bem clara a necessidade de explicitar que existia uma área disciplinar específica a ser debatida (TURKIENICZ, 1984a, p. 5).

Ao contrário dos Estados Unidos – onde algumas universidades optaram por tê-lo como currículo de graduação único, ou integrante dos cursos de arquitetura ou planejamento urbano – no Brasil, o desenho urbano somente integra-se ao curso de Arquitetura e Urbanismo. Dessa maneira, se mantém distante das ciências sociais e de sua tradição analítica, voltando-se à disciplina de Arquitetura e Urbanismo cuja essência é “normativa e prospectiva; em outras palavras, mais voltada diretamente para como as coisas deveriam ser do que para como as coisas são” (HOLANDA, 2000, p. 9-10, tradução nossa).

Ressalta-se, ainda, que alguns autores anglo-saxões, como Cuthbert (2011a) e Lang (2005), consideram a inexistência de um quadro teórico composto exclusivamente para o desenho urbano um fator que o subjuga às teorias do planejamento urbano e da arquitetura, e defendem a sua consolidação como campo autônomo, conforme exposto anteriormente na seção 3.5.

Marshall (2012, p.259-265) questiona a cientificidade do desenho urbano a partir de uma análise de obras “clássicas” desse campo, concluindo que não passam por um escrutínio sistematizado para serem corroboradas ou descartadas. O autor afirma que o desenho urbano é um campo de saber que não possui uma teoria sólida, e que, embora haja pesquisas que agreguem conhecimentos segundo procedimentos “científicos”, o conjunto da teoria que subsidia a prática do desenho urbano é algo indefinido, destituído de um grau completo de cientificidade. O autor conclui que há três possibilidades de enfrentamento desse campo: (i) como uma arte (não ciência), (ii) como uma prática iluminada pela ciência, (iii) ou como uma ciência – em sua visão, inconsistente.

Independentemente de constituir-se como uma ciência, uma arte ou uma prática esclarecida cientificamente, é possível apresentar a definição de desenho urbano como um campo disciplinar de formação e atuação dos “arquitetos e urbanistas” brasileiros, cujo objeto é o desígnio sobre a forma urbana por meio de um processo consciente.