• Nenhum resultado encontrado

A constituição brasileira e a universalização da saúde

A Constituição da República Federativa do Brasil foi promulgada no dia 05 de outubro de 1988, sendo fruto de exaustivos debates entre diversos atores sociais e políticos. No campo da saúde, esta Constituição representa o resultado de lutas de mais de vinte anos, que culminam na garantia de direitos sociais e na universalização de alguns direitos como atributos de cidadania e, simultanea- mente, dever do Estado brasileiro. São diversos os fatores que concorrem para o teor social desta Constituição, dentre os quais se destacam os seguintes:

Em primeiro lugar, a Constituição representa a tentativa de correção dos ex- cessos e descaminhos provocados pelo regime militar, garantindo um amplo catá- logo de direitos individuais e coletivos intangíveis pelo Estado e uma série de ins- trumentos processuais para sua efetivação. Estes direitos encontram -se vinculados ao princípio constitucional da dignidade humana16, que é previsto logo no artigo

16 De acordo com a perspectiva de Fátima Henriques, “o primeiro passo está em reconhecer que a promo- ção, a proteção e a recuperação da saúde são consectários da dignidade da pessoa humana e objetivos

1º da Carta Magna, in verbis: “A República Federativa do Brasil [...] constitui -se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III — a digni- dade da pessoa humana” (Brasil, 1988). Por serem compreendidos como inerentes à própria personalidade do cidadão, tais direitos devem ser plenamente garantidos e efetivados pelo Estado. A dignidade da pessoa humana se apresenta, ao mesmo tempo, como um limite e tarefa dos poderes estatais, e é por meio dela que as ações públicas passam a se pautar.

Um outro fator refere -se à própria intenção de formular uma Constituição que atue como redutora de diferenças sociais, políticas, econômicas e culturais. A nova Constituição deveria ser um instrumento de emancipação social, com o intuito de buscar a igualdade concreta entre as pessoas, de modo a tensionar o tradicional principio da isonomia17. Justii ca -se, assim, o fato de Ulysses Gui-

marães tê -la apelidado de Constituição Cidadã18. Não caberia mais a associação

entre saúde e situação empregatícia, pois a Constituição deveria promover a igualdade concreta de todos por meio da universalização dos direitos e, em particular, dos serviços de saúde.

Um terceiro elemento se refere à participação da sociedade civil, dos gru- pos sociais e políticos e dos diversos grupos de pressão. Uma vez que o processo de abertura democrática do Estado brasileiro adveio antes da própria Constitui- ção, foi possível a expressiva participação de uma pluralidade de atores no pro- cesso de sua formulação. Portanto, em virtude da ampla presença de diversos seguimentos da sociedade civil e do Estado, uma característica marcante deste momento histórico é o pluralismo.

A ideia de pluralismo já foi tratada por mim em outras oportunidades (Asensi, 2005a, 2005b). Em tais ocasiões, realizei uma diferenciação entre a noção de pluralismo jurídico, consagrada no campo da sociologia do direito, e o que se denominou pluralismo no processo político -decisório, que poderia ser

constitucionais fundamentais, de modo que não é dado aos poderes constituídos decidir se devem ou não concretizá -los ou quando deverão fazê -lo” (Henriques, 2008, p. 858). Para uma análise aprofundada das características, signii cados e pressupostos relativos ao princípio da dignidade da pessoa humana, ver Ana Paula de Barcellos (2002).

17 O princípio da isonomia preconiza que todos são iguais perante a lei. Traduz, assim, uma igualdade formal. Diversas tradições do pensamento jurídico questionam essa ideia. A título de exemplo, a corrente marxista sustenta que a ideia de igualdade perante a lei não bastaria para promover a igualdade concreta, material ou, ainda, substantiva. O Estado não reconhece e não intervém no conl ito, já que todos são iguais perante a lei. Assim, o formalismo da lei por si só não garante a igualdade entre os homens. 18 Na avaliação de Cássio Casagrande, a Constituição seria cidadã “não apenas porque consagra um amplo

sistema de direitos fundamentais e de procedimentos judiciais para sua defesa, mas sobretudo porque retira do âmbito privado e leva à esfera pública questões que eram tratadas apenas como direitos indi- viduais entre particulares” (Casagrande, 2008, p. 51). Aqui reside, na perspectiva de Giselle Cittadino (1999), o caráter comunitário da Constituição de 1988.

associado ao campo da ciência política. Segundo Boaventura de Sousa Santos “existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que no mesmo espaço ge- opolítico vigoram (oi cialmente ou não) mais de uma ordem jurídica” (Santos, 1980, p. 109). Por outro lado, pude evidenciar que a noção de pluralismo no processo político -decisório traz consigo três elementos:

a) são os fatores sociais que incIdem na produção jurídica a partir de rela- ções de poder;

b) o campo da produção jurídica envolve o embate e o conl ito, o que pode levar a contradições dentro de um mesmo ordenamento;

c) a função partidária é realizar uma composição de interesses (tanto de intelectuais orgânicos quanto de grupos de pressão) para que os conl itos sejam minimizados e que seja estabelecido um consenso.

Deste modo, o pluralismo no processo p o lítico -decisório representa a forma por meio da qual as relações de poder se manifestam tendo em vista a minimi- zação de conl itos e a consequente satisfação de interesses por vezes contraditó- rios. Assim, ao passo que o pluralismo jurídico signii ca a emergência de outros centros de poder que realizam sua própria produção de direito [fora do Estado], o pluralismo no processo político -decisório representa um passo adiante: a forma que estes centros procuram, por meio do embate e do conl ito de ideias, inserir na norma estatal sua norma particular.

Assim, a produção de direitos realizada fora do Estado retorna a seu âm- bito, na medida em que possui uma pretensão universalizante, de modo que direitos vivos se tornem direitos fundamentais19. Este retorno ao Estado pode ocor-

rer tanto diretamente (por meio de um legislador, por exemplo) quanto indi- retamente (por meio de grupos de pressão, intelectuais orgânicos etc.). Neste sentido, a Constituição de 1988 adotou, em seu texto, consensos que são fruto de embates e conl itos entre os diversos atores sociais estatais e não -estatais. No campo da saúde, recebeu destaque o projeto da reforma sanitária e a bandeira da universalização.

Da mesma forma, nota -se que as condições de aprovação de uma lei es- tão diretamente ligadas à sua capacidade de comportar os diversos interesses, principalmente dos parlamentares e dos mais variados grupos de pressão. Ou seja, para uma norma passar por todos os procedimentos de sua formulação e ser aprovada de maneira efetiva, tem que necessariamente conter elementos

19 As rel exões sobre direitos fundamentais têm recebido no Brasil atenção especial, razão pela qual a fun- damentalidade destes direitos tem sido discutida, inclusive, no âmbito das relações privadas. A esse respeito, ver Sarmento (2004).

que tragam para si a aprovação dos que a fazem. Isto implica reconhecer que o alargamento da abrangência da lei é um elemento estruturante da democracia pluralista, justamente porque esta lei só poderá dar conta dos interesses se for a partir da abrangência semântica. A pluralidade traz consigo a incapacidade de formar homogenias legais, propiciando leis e artigos com redação cada vez mais aberta e heterogênea20.

Neste sentido, o fato do direito à saúde ser assegurado na Constituição não signii ca que ainda não faltem instâncias, espaços, leis, regulamentos e diretrizes que otimizem e operacionalizem sua concretização. O direito à saúde e seus princípios correlatos, à época da promulgação da Constituição, consistiam em verdadeiras texturas abertas que ainda necessitavam de regulamentação. Ten- do em vista a abrangência semântica e o alcance do direito à saúde, é preciso considerar as normas regulamentadoras posteriores à Constituição, tais como as leis que implementam o SUS, as instâncias de participação e as normas ope- racionais. Tais normas buscam, em múltiplos aspectos, construir arcabouços jurídico -institucionais para sua efetivação.

O Sistema Único de Saúde, regulamentado pela Lei 8.080/90, reai rma os ideais do movimento da reforma sanitária, principalmente no tocante à descentralização, participação e integralidade. Este sistema seria único porque organizaria

o setor público federal, estadual e municipal, bem como os serviços privados que i rmarem convênios ou contratos, garantindo -se a gestão da rede de ser- viços, de forma a impedir desperdícios e superposições. É a melhor forma de assegurar que programas de saúde publica e de assistência médico -hospitalar se dirijam a toda a população, garantindo melhor acesso aos mais pobres (Cordeiro, 1991, p. 149)

20 Vejamos um exemplo paradigmático: no processo de formulação da Constituição de 1988 havia um debate sobre quando seria o descanso semanal remunerado e sobre qual seria o texto constitucional dei nitivo. O grupo da esquerda defendia que este deveria ser obrigatoriamente aos domingos, ao passo que o grupo da centro -direita (denominado “centrão”) defendia que este deveria ser convencionado entre trabalhador e empregador, ou seja, deveria ser l exível. Ao i nal dos debates e da votação, observa -se que a lei, para ser aprovada, deveria conter elementos que atendessem ambas as posições. Neste sentido, com a aprovação do art. 7º, XV, a redação i nal consagrou que o descanso semanal remunerado seria

preferencialmente aos domingos. Com isso, a norma do descanso semanal não foi tão obrigatória, nem tão

l exível. Buscou -se, simultaneamente, com o objetivo de comportar os diversos interesses, amenizar a obrigatoriedade defendida pelos esquerdistas e enrijecer a l exibilidade defendida pelos centro -direitistas. Este exemplo nos fornece elementos relevantes do contexto democrático -pluralista contemporâneo. O alargamento da abrangência da lei é um elemento estruturante da democracia pluralista, justamente porque esta lei só poderá dar conta dos interesses por meio da abrangência semântica.

Assim, este processo de concretização do conteúdo dos direitos sociais, conforme Giselle Cittadino, “envolve necessariamente um alargamento do cír- culo de intérpretes [...], na medida em que devem tomar parte do processo hermenêutico todas as forças políticas da comunidade” (Cittadino, 2003, p. 23). Em outras palavras, a ampliação da comunidade de intérpretes da Cons- tituição — acepção inaugurada por Peter Häberle (1997) — está intimamente relacionada ao processo de democratização da hermenêutica constitucional “e, nesta perspectiva, exige uma cidadania ativa que, por esta via, concretiza ou realiza a Constituição” (Idem, p. 24). Com isso, faz -se necessária a participação de atores não -estatais tanto na produção quanto na interpretação do direito, que foi institucionalizada, no caso do direito à saúde, com a Lei 8.142/90 por meio dos Conselhos e Conferências de Saúde.

Importante, aqui, é a ideia de que o direito à saúde é um direito funda- mental assegurado na Constituição de 1988 sendo, então, um direito univer- sal21. A responsabilidade para satisfazer este direito, segundo a Constituição

de 1988, é de titularidade de todas as esferas de poder político (União, Esta- dos, Distrito Federal e Municípios). Deste modo, na análise de Hewerstton Humenhuk, todas estas esferas devem proteger e promover a saúde de forma gratuita, pois o investimento do Estado em recursos públicos “não visa ex- plorar economicamente essa atividade, mas visa prestar um serviço público básico ao direito fundamental da dignidade da pessoa humana” (Humenhuk, 2004, p. 31).