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A Constituição como obstáculo no marco de um constitucionalismo do atraso: a

CAPÍTULO 4. OUVIR A VOZ DAS RUAS CONTRA A CORRUPÇÃO: A difícil

4.3 Entre direito e política: as incoerências e riscos de uma Constituinte Exclusiva

4.3.2. A Constituição como obstáculo no marco de um constitucionalismo do atraso: a

O segundo aspecto que chama a atenção na defesa da Constituinte Exclusiva diz respeito ao argumento segundo o qual a atual Constituição brasileira não manifestaria adequadamente a soberania popular (CATTONI DE OLIVEIRA; GOMES, 2015). Tendo sido criada num contexto demasiado próximo do Regime autoritário por um Congresso conservador e com pouca representatividade de setores populares, ela expressaria mais uma solução pactuada e um compromisso com a manutenção dos interesses das elites, o que teria possibilitado a continuidade normativa de uma estrutura de poder autoritário e o bloqueio de “reformas de vanguardas em matéria de direitos” (GARGARELLA, 2014, p. 16). Como consequência disso, o exercício da soberania popular estaria aprisionado na normatividade constitucional vigente que não teria operado uma verdadeira transição para a democracia, necessitando, assim, de uma nova Constituinte para romper, definitivamente, com aquela “transição conservadora sem ruptura” (PNMS, 2013, p.7) e sepultar, de uma vez por todas, as regras “existentes hoje e que mantém a lógica da ditadura” (PNMS, 2013, p.7).

Essa narrativa que expressa um sentimento de fracasso em relação ao processo de constitucionalização de 1988, como modo de construção da imagem pejorativa de uma “Constituição inacabada” (DIEHL, 2014, p.82), reproduz aquela mesma ideologia do atraso dominante, entre nós, no imaginário popular e na tradição do pensamento social. A transição é aqui percebida sempre como um processo linear, uma “reforma pelo alto” “capitaneada e dirigida pelas elites” (TATEMOTO; VASCONCELOS, 2014, p. 44) e a Constituição como “um poder instituído corrompido, corrupto” (DIEHL, 2014, p.82), operando num espaço público permeado pelo interesse privado e marcado pela letargia do povo nas decisões fundamentais da sua vida política. Como parte de uma tradição que remonta às origens do

Brasil, “a invasão do público pelo privado” materializa-se, segundo essa perspectiva, no terreno das instituições públicas e da criação da Constituição, “mediantea açambarcagem da sociedade política e do Estado pela classe senhorial” (LAVALLE, 2004, p.1113). Essa leitura teológico-política da falta do povo soberano, nas palavras de Marcelo Cattoni (2011, p.20), reifica “a história constitucional brasileira ao impedir, com consequências deslegitimizantes, o reconhecimento de lutas da cidadania por direitos, que constituem internamente o processo político de aprendizado social com o Direito”.

Esses discursos interagem com o da singularidade brasileira – ou mesmo latino- americana – para justificar a visão de nossa história de direitos como frustração, permeada sempre por transações políticas que levam a soluções de compromissos, uma mudança na permanência. Um bom exemplo dessa leitura é a narrativa que retoma as raízes da nossa história, tal como aquela construída por Roberto Amaral (2001) – como parte de uma tradição extremamente poderosa do pensamento social, em geral, e jurídico, em especial – para relevar a urgência da reforma política no Brasil e, ao mesmo tempo, apresentar a Constituição de 1988 como uma promessa frustrada:

Sem povo, fizemos a Independência (engenho e arte de uma diplomacia corrupta e perdulária com o erário), fizemos a Abolição tardia (obra de um gabinete anticrônico e graça de uma Regente interina); sem opinião pública e sem campanha republicana, sem apelo republicano e sem o concurso do Partido Republicano, fizemos a República, obra de oficiais do exército e meia dúzia de intelectuais fluminenses. Sem povo e sem ruptura, sem mesmo mudança do mando. Sem qualquer mudança social. Sem opinião pública, sem vida partidária. [...] [O povo] quase sempre serve de massa-de-manobra da mesma burguesia, que, de crise em crise, vai-se conservando no mando político, mantendo o mesmo governo, em que pese a sucessão dos governantes.

Do Fico às ‘diretas-já’. [...] A crise constitucional [portanto] nasce com o País, e até hoje estamos à espera de uma ordem constitucional estável (AMARAL, 2001, p.43).

Sempre como continuidade, nunca ou raríssimas vezes como ruptura, essa narrativa pesa sobre nosso presente como uma fatalidade irreversível (RICOEUR, 2000b): “a tendência às constituições pactuadas e a reafirmação dessa inclinação no processo de elaboração da Constituição de 1988” (PAIXÃO, 2014, p. 456). Assim como em outros momentos históricos como a Independência, a Proclamação da República ou mesmo a institucionalização dos

direitos sociais105, a transição da ditadura para a democracia expressaria mais uma vez a

105 Muitos trabalhos, hoje em dia, buscam superar essa leitura continuísta, retomando esses momentos

fundadores da experiência jurídica e imprimindo-lhes uma nova significação. Os exemplos são os trabalhos de David Gomes (2011), Adamo Dias Alves (2015), Cattoni de Oliveira (2009; 2010), Rodrigo Badaró Carvalho (2015), Cristiano Paixão (2002; 2006; 2011), Leonardo Barbosa (2016), Gustavo Siqueira (2011), dentre outros. A crítica a esse “discurso do mesmo” na historiografia geral ou na ciência política pode ser vista também em

sonolência do povo soberano, o que implicou numa impossibilidade da manifestação do Poder Constituinte em sua plenitude. Nessa leitura, a Constituinte Exclusiva resolveria esse problema da fundação ao possibilitar que o povo brasileiro, enfim, conduza um processo verdadeiramente democrático num sentido diferente da sua participação na história da institucionalização dos direitos, em geral, e na transição democrática, em especial.

Essas objeções à Constituição de 1988 traduzem uma leitura continuísta, determinista e pouco sensível à complexidade e tensões constitutivas intrínsecas ao processo de transição para a Democracia no Brasil. A crítica a esse enfoque parece consistir “dans le soin à raconter autrement les histoires du passé, à les raconter aussi du point de vue de l’autre – l’autre, mon

ami ou mon adversaire106” (RICOEUR, 1995, p. 79).Inicialmente, a elaboração dessa nova

Constituição seguiria a tônica de um processo elitizado, uma vez mais sem participação popular: Sarney enviara um comunicado ao Congresso Nacional acerca do tema; o Congresso elaborara uma emenda à Constituição de 1967, permitindo que a próxima legislatura pudesse atuar também como Congresso Constituinte; a esse Congresso caberia, sobretudo, deliberar sobre um anteprojeto de Constituição produzido previamente por uma comissão de notáveis (CATTONI DE OLIVEIRA; GOMES, 2015,187) No entanto, não foi esse o caminho que acabou sendo percorrido. Um dos primeiros atos dos constituintes reunidos a partir de fevereiro de 1987 foi deliberar por não trabalhar apenas no anteprojeto dos notáveis, formulando um regime interno que organizasse com autonomia os trabalhos da Assembleia Constituinte, o que fez com que um processo pensado para ser extremamente excludente fosse forçado a abrir ao diálogo com a sociedade civil, resultando no processo constituinte mais democrático da história constitucional brasileira, com a apresentação de mais de 1000 emendas populares para serem analisadas (CATTONI DE OLIVEIRA; GOMES, 2015, 188). A partir de um processo desorganizado, descentralizado e em alguns momentos efetivamente caótico, aquele Congresso investido em Assembleia Constituinte acabou por produzir um texto consistente, moderno e – principalmente – aberto ao futuro (PAIXÃO, 2006, p.5).Por tudo isso,

A Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 representou uma ruptura profunda na tradição jurídica brasileira e atingiu diretamente os pilares do autoritarismo constitucional, apostando num processo em tudo oposto ao trabalho de elaboração de atos institucionais e constituições pelos “notáveis” (isoladamente ou em comissão) do período ditatorial. Não se partiu de um texto-base. Não havia uma

autores como José Carlos Reis (2005; 2006), Jessé Souza (2006; 2009; 2012; 2015) e Gurza Lavalle (2004), dentre outros.

106 “no cuidado em contar também as outras histórias do passado, em contá-las também do ponto de vista do

força política hegemônica na Assembleia Constituinte. Mesmo o Centrão revelou-se não mais que uma ampla coalizão de veto. Não havia, enfim, um projeto oficial a ser traduzido pela nova Constituição, mas diversos projetos políticos e ideológicos fragmentários a articular, mediados por uma forte exigência de cidadania, entendida principalmente como direito à participação ativa na vida política do país (BARBOSA, 2016, p. 365).

Ora, narrativas como essa se recusam a compreender a transição apenas sob a perspectiva das elites políticas e econômicas e abrem, assim, caminho para sua percepção como um processo marcado por contradições e divergências, constitutivas da própria esfera política, com idas e vindas, em meio a avanços e limites no que concerne à produção do direito. Não há dúvidas de que muitas dificuldades permearam o processo constituinte. Ele não se deu em condições ideais. Durante o processo, por exemplo, houve intensa pressão do governo sobre a assembleia, como testemunha o pronunciamento de Sarney em cadeia nacional de rádio e televisão, acusando os constituintes de promoverem ingovernabilidade (BARBOSA, 2016, p.358). Além disso, nenhuma proposta de plebiscito ou referendo propondo alguma consulta popular foi aprovada durante os trabalhos da Constituinte. No entanto, apesar de tudo isso, a Constituição que se fundou em 1988, em torno de uma grande mobilização da sociedade civil, expressa não apenas a conformação com os interesses dos donos do poder, mas a tensão das diversas forças atuantes que contribuíram para a elaboração de normas que consubstanciam interesses distintos e às vezes divergentes, próprios de um espaço público heterogêneo e democrático. Desse modo, ela é marcada por uma pluralidade interna, continuidades e descontinuidades, valorizações e transvalorizações, enfim, por vários extratos semânticos de sentido e por um paralelogramo de forças políticas e sociais, que ora convergem, ora se distanciam, e também, por uma sincronicidade assincrônica, em que isoladamente nenhuma das forças políticas, ainda mais se as tratarmos erroneamente como macro-sujeitos, tinha total controle e a conduziu sozinha (CATTONI DE OLIVEIRA, 2010, p. 209). Como ato de fundação posto e revelado em plena “luz do dia” (ARENDT, 1990, p.204), o processo constituinte de 1988 não absorveu todas as pautas populares – o que seria, de certo modo, impossível –, mas positivou grande parte delas a partir de um rol abrangente de direitos e garantias fundamentais que possibilitaram disputas políticas e exigências jurídicas nos últimos 27 anos.

Logo, esse rearranjo do passado, consistindo em contá-lo também da perspectiva do outro assume uma importância decisiva ao se tratar de um acontecimento fundador (RICOEUR, 1985, p.332; 1997, p. 4) da história jurídica brasileira, o que abre caminho à crítica aos argumentos que sustentam a Constituinte Exclusiva, mais precisamente as

incongruências no que concerne à compreensão da atual Constituição como um obstáculo, um limite à soberania popular. Esses argumentos parecem não dar conta do fato de que é exatamente essa Constituição que tem possibilitado, desde o fim da década de 1980, o avanço da democracia participativa e da atuação dos movimentos sociais tanto no âmbito da sociedade em geral quanto no âmbito institucional dos Poderes Legislativo, Executivo e também Judiciário (CATTONI DE OLIVEIRA, GOMES; 2015, p.188) A Constituição de 1988 representou e continua representando a condição e não somente o limite do exercício da soberania popular no Brasil, funcionando ao mesmo tempo como dever ser normativo que resiste às mais diversas investidas reacionárias de uma “realidade” fundada num imaginário profundamente autoritário (CHAUÍ, 1995; 2001); e como projeto aberto a uma prática hermenêutica continuada no tempo (RICOEUR, 1985) que pôde ser vista, ao longo dos anos que se sucederam à fundação até os dias de hoje, na disputa de sentidos e na reinterpretação de normas pelas lutas sociais por reconhecimento (HONNETH, 2003; 2007; RICOEUR, 2004; 2006):

No contexto presente, a força social que ainda possui algumas pautas racistas, sexistas e homofóbicas, para além dos velhos discursos de crítica aos direitos humanos e de defesa de uma ordem econômica liberal extremamente desigual, poderia fatalmente dar origem a uma nova Constituição que viesse a ser caracteriza da p elo abandono das conquistas expressas, após árduos combates, na Constituição de 1988. O que tem protegido os movimentos que se opõem a essas pautas e a esses discursos são exatamente tais conquistas (CATTONI DE OLIVEIRA; GOMES, 2015, p.188).

Acreditar que seria possível evitar esse risco limitando a atuação da possível Constituinte por meio de um poder genuinamente democrático e por um tema definido previamente é demasiado arriscado. Primeiramente, porque se sustenta na falsa crença de que se vivia no final de junho de 2013 ou mesmo se vive hoje em dia, um período mais propício à insurreição de forças progressistas e populares que conduza a um processo de avanços em termos de direitos e de reformas da esfera pública no Brasil do que o contexto vivenciado na fundação constitucional. Sustentado nos dados e interpretação das jornadas de junho e suas implicações que a presente pesquisa buscou apresentar, levaríamos a concluir o contrário. Embora inicialmente tenha sido marcada por demandas populares e também pela heterogeneidade de pautas e vozes, o movimento parece ter aberto o caminho para a polarização política que se veria nas eleições de 2014 e o fortalecimento (e mesmo radicalização) da ideologia conservadora e da direita no país (CHAUÍ, 2013;GIROTTO

NETO, 2014, ARANTES, 2014). Instituir uma Assembleia num contexto como tal é abrir a possibilidade concreta de retrocessos.

Em segundo lugar, porque subestima o potencial revolucionário do próprio processo de constitucionalização brasileira e sua abertura para o futuro. Ao transformar o ato fundador em um projeto constituinte que tem continuidade por meio das sucessivas gerações, a Constituição de 1988 não é uma obra acabada, mas em permanente construção, possuindo mecanismos formais para tanto. Nesses 27 anos, foram aprovadas muitas emendas sobre

temas variados e diversas reformas na estrutura estatal107. Ao todo até julho de 2016, já foram

promulgadas 92 emendas constitucionais pelas regras previstas no artigo 60. A quantidade de emendas aprovadas e a profundidade das modificações introduzidas no texto provam, na pior das hipóteses, que o rito previsto no artigo 60 para a reforma da Constituição não é um obstáculo intransponível e um risco sério para a criação de novos direitos, para a transformação dos quadros estatais e tampouco para a “governabilidade” (BARBOSA, 2016, p. 327). Nesses anos, o que se viu, ao contrário, foi o maior período de estabilidade institucional de toda a história republicana, um aumento progressivo de canais de participação, uma maior efetividade normativa e uma luta cada vez mais acirrada contra a corrupção:

Talvez não seja apenas coincidência que ao processo constituinte com maior participação popular da história brasileira tenha correspondido a Constituição, até o momento, mais bem-sucedida do ponto de vista institucional e, por que não dizer, mesmo com todos os problemas a mais bem-sucedida do ponto de vista da garantia de direitos à população (BARBOSA, 2016, p.367-368).

Sendo assim, ainda que permeada de problemas e limites, a Constituição de 1988 vem abrindo caminho, como processo que continua sendo aperfeiçoado e ressignificado, para o aprofundamento da democracia no Brasil. Nesse sentido, em junho de 2013, o que a grande maioria de cartazes e vozes, especialmente as bandeiras populares de lutas por reconhecimento e redistribuição, anunciava não era o esgotamento do atual projeto constitucional, mas sim sua radicalização.Tratava-se da exigência não da revogação da Constituição, mas do seu cumprimento. A tarefa é, portanto, a de assumir o projeto

107 “Em 1995, iniciou-se o governo de Fernando Henrique Cardoso. Ao longo de oito anos de mandato, foram

aprovadas 35 emendas constitucionais, algumas das quais trataram de temas delicados. A participação de capital estrangeiro na exploração de recursos minerais, a quebra do monopólio estatal sobre as telecomunicações e o petróleo, a reforma administrativa, a reforma previdenciária, a reeleição, a instituição da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), a Desvinculação de Recursos da União (DRU), e assim por diante. No governo Lula, até o fim de 2008, dezessete emendas constitucionais foram aprovadas. Também foram feitos ajustes na Previdência e no sistema tributário, além de uma extensa reforma do Poder Judiciário” (BARBOSA, 2016, p.326-327).

constitucional que temos, reavivando seus símbolos, suas promessas não cumpridas e, portanto, a sua capacidade de transformar o rumo das coisas (COSTA JUNIOR, 2011, p.88) na concretização sempre presente de uma “democracia sem espera” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2011). De modo a superar tempos de crise, o caminho adequado parece apontar para uma necessidade de uma compreensão e uma apropriação cada vez maior pelos próprios cidadãos do valor e do papel central da Constituição atual, das narrativas políticas e jurídicas que ela pretende imprimir no tempo de nossa comunidade histórica (COSTA JUNIOR, 2011, p.88). Certamente, a crítica precisa e deve manter-se ativa, as lutas sociais e políticas precisam e devem manter-se constantes: todavia, é importante que crítica e lutas operem no interior da Constituição, não contra ela; valendo-se das proteções que a Constituição estabelece exatamente para permitir a crítica e as lutas, não arriscando abrir mão dessas proteções (CATTONI DE OLIVEIRA; GOMES, 2015, p.2016).