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O clamor das ruas e o desapreço pelo procedimento

CAPÍTULO 4. OUVIR A VOZ DAS RUAS CONTRA A CORRUPÇÃO: A difícil

4.3 Entre direito e política: as incoerências e riscos de uma Constituinte Exclusiva

4.3.1 O clamor das ruas e o desapreço pelo procedimento

O primeiro aspecto que chama a atenção na proposta refere-se à incompatibilidade interna de uma Constituinte que pretende ser, a um só tempo, soberana e temática. É própria da definição do Poder Constituinte originário a ausência de limitação jurídica, uma vez que representa rompimento com a ordem normativa e institucional existente para elaborar uma nova ordem. Seu caráter é intrinsecamente revolucionário, fruto de um descontentamento com todo o ordenamento em vigor que “não mais corresponde às vontades democraticamente construídas, das pessoas, grupos sociais diversos e movimentos sociais (MAGALHÃES,

2014b, p.48). Dele nascerá uma nova Constituição que, ao fundar-se, provoca um corte na história institucional de uma comunidade que nunca constitui, para usar os termos de Derrida, “um momento inscrito no tecido homogêneo de uma história, pois ela o rasga por uma decisão” (DERRIDA, 2007, p.24). O poder constituinte originário é, pois, instituidor e performativo, se manifesta, soberanamente, como uma palavra de ordem que cria o novo em oposição ao antigo: ele quer fazer existir aquilo que ele anuncia mediante uma promessa (COSTA JUNIOR; GALUPPO, 2009). Trata-se de um poder rebelde à qualquer tipo de limitação legal, seja pelo Parlamento, Judiciário, Executivo ou mesmo pelas cláusulas pétreas da Constituição positiva. Ele, então, não se subordina ao passado, ele é, antes, deslocamento para o futuro (HABERMAS, 2003; LUHMANN, 1996, p.15; CATTONI DE OLIVEIRA, 2009; 2010; COSTA JUNIOR, GALUPPO, 2009).

Desse modo, um poder que se legitima por alguma “vontade popular expressa” não pode ser limitado por um tema, pois esse mesmo poder deixaria de ser soberano. Intrínseca à proposta, há, portanto, uma contradição performativa. “A teoria constitucional não conseguiria explicar uma constituinte parcial”, na medida em que um poder constituinte “não deve seu fundamento de validade a nenhuma força que não a si próprio e a soberania popular que o impulsionou” de modo que “ninguém pode convocar um poder constituinte e estabelecer previamente qual é a agenda desse poder constituinte. O poder constituinte não tem agenda pré-fixada” (BARROSO, 2011).

Impor um determinado tema assim como estabelecer regras a priori significa crer que ele se deriva de uma ordem, quando, na realidade, ele busca originar uma.A própria limitação política que se pretenda impor com base numa suposta democracia é uma mera casualidade. Nada impede, pois que o tema seja ampliado e que as normas estabelecidas naquela Assembleia soberana se tornem a nova Constituição, pois são os próprios constituintes que definem o limite e a abrangência do seu trabalho. Uma ampliação desse tipo poderia facilmente atingir ou mesmo mitigar direitos fundamentais ou normas de organização estrutural do Estado brasileiro, pois não se subordinaria às cláusulas pétreas da Constituição em vigência. Do mesmo modo, as decisões dessa Assembleia, ainda que colocassem em risco normas conquistadas nos diversos percursos e narrativas de reconhecimento que a Constituição de 1988 preserva em seu texto, não poderiam ser objeto nem mesmo de apreciação por um controle jurisdicional ou político de constitucionalidade, pois, do contrário, repetimos, a Constituinte deixaria de ser originária, isto é, soberana. De fato, há exemplos claros de assembleias convocadas para funções restritas que ampliaram e passaram a atuar fora dos limites de sua alegação: o caso mais emblemático é o da Convenção da Filadélfia,

que, embora convocada para aperfeiçoar o sistema da confederação, terminou apresentando um projeto de Constituição que convertia a confederação em uma federação unificada (COSTA; ARAÚJO, 2015, p.224).

De forma a desconstituir essa contradição entre exclusividade e soberania, não há outra saída senão respeitar a diferença, que persiste ao longo da história do constitucionalismo moderno e que nos foi legada como fundamento do quadro constitucional brasileiro, entre Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado: ou se rompe com o ordenamento jurídico por inteiro, pois esse já se esgotou e não mais corresponde às expectativas normativas da sociedade, exigindo, assim, uma nova fundação constitucional integralmente renovada – nesse caso, o povo deixou de enxergar na Constituição as suas mais importantes aspirações –; ou se respeita as regras da Constituição positiva, seus ritos e procedimentos de alteração, entendendo que, embora contenha falhas e insuficiências em seu conteúdo, essas podem ser superadas e preenchidas, ao longo do tempo, por meio da aprovação de emendas seguindo o devido processo legal. Essa distinção é importante, na medida em que consiste na própria revelação do compromisso teórico e prático com a supremacia da Constituição, o que faz com que a garantia da compatibilidade entre a ordem institucional e a ordem normativa seja percebida como uma necessidade de subordinação da política ao direito, não o contrário.

A supremacia constitucional é, pois, resultado do seu próprio ato de fundação. Ao atribuir a si mesma a primazia do ordenamento jurídico e das decisões políticas, a Constituição coloca todo o direito assim como toda a política numa situação de problematicidade e de contingência, tornando-se um marco incontornável para prática de ambos (LUHMANN, 1996, p.7). É nesse sentido que ela prevê sua própria modificabilidade limitando-a juridicamente, sobretudo mediante disposições procedimentais(LUHMANN, 1996, p.15). A proposta de uma Constituinte Exclusiva esbarra nesses limites formais estabelecidos no ato fundador do documento constitucional, pois instaura um procedimento excepcional não previsto de reforma do seu texto – número de turnos, votações em um órgão legislativo diferente do Congresso nacional, quórum distinto e simplificado de deliberação. Nessa hipótese, reforma e fundação do texto se confundiria de tal modo que a Constituição, sem poder afirmar sua prevalência e sua rigidez, seria minada por dentro. Abre-se, com isso, um precedente profundamente perigoso da possibilidade de se alterar seu texto ou mesmo descumprir seus ritos, programas ou compromissos, bastando recorrer a uma suposta soberania popular, num processo de colonização do direito pela política.

As normas constitucionais que regulam o processo legislativo de reforma constitucional possuem, como toda norma jurídica, uma dupla dimensão de validade: elas se endereçam aos seus destinatários, tanto como limites coercitivos para aqueles que atuam de forma estratégica ou, ao menos, visando tão-somente à satisfação dos seus próprios interesses, quanto como uma garantia do exercício de liberdades comunicativas àqueles que agem por respeito às normas democraticamente estabelecidas. O processo legislativo de reforma constitucional não está à disposição de maiorias políticas que pretendem subvertê-lo; ele é, ao mesmo tempo, um limite às deliberações majoritárias, verdadeira garantia constitucional aos direitos fundamentais das minorias, bem como condição sine qua non para a formação legítima, no processo democrático, de maiorias e de minorias políticas sempre mutáveis (PAIXÃO et al, 2013).

O respeito ao procedimento estabelecido originariamente na Constituição não é um mero apego à forma, nem um esforço de impedir transformações profundas no jogo político, muito menos, de manter uma elite no controle do poder, como acreditam alguns defensores da Constituinte Exclusiva. Trata-se, na verdade, de um pré-comprometimento a que se submete um povo, quando atribui a si certos direitos e procedimentos acima dos órgãos ordinários de decisão política de modo a proteger o projeto constitucional – e o seu sentido performativo destinado a produzir uma comunidade política de cidadãos livres e iguais, que se determinam a si mesmos (HABERMAS, 2013, p.176) – contra aquelas inconsistências temporais e as metas de longo prazo que são constantemente minadas por maiorias ávidas por maximizar os seus interesses imediatos: nas democracias constitucionais, o povo, através de um procedimento constitucional rígido, restringe seu próprio poder de decisão, objetivando

perpetuar a sua liberdade de decidir104 (VIEIRA, 1997, p.54-55; ELSTER, 2002). É nesse

sentido que as Constituições podem ser autorrestritivas de uma maneira que engendre possibilidades. Esse “paradoxe politique” (RICOEUR, 1957) é o que faz com que o direito seja ao mesmo tempo limitação do poder, mas também condição de possibilidade do seu exercício não violento.

104 Na dissertação de mestrado (COSTA JUNIOR, 2011), toquei nesse ponto: apropriando-se de uma passagem

da obra “Odisséia”, Elster (1993) procura elaborar uma metáfora para fundamentar sua tese a respeito da legitimidade dos limites do poder de reforma de uma Constituição na perspectiva do constitucionalismo democrático. A metáfora criada por Elster apoia-se na estratégia que Ulisses concebeu para conseguir prosseguir a sua rota passando pela ilha das Sereias sem que ele e sua tripulação fossem arruinados pelo seu encantamento. Homero narra que Ulisses tinha plena consciência de que, ao percorrer seu destino, seria atraído pelo canto demasiado irresistível das sereias, o que conduziria sua embarcação ao naufrágio. Em razão disso, ele toma as medidas necessárias para resistir a este canto: determina aos seus marinheiros que tapem seus ouvidos com cera e que o amarrem no mastro do seu próprio navio, não o soltando em hipótese alguma ainda que ele o ordenasse. Tomadas as devidas providências, Ulisses consegue passar ao largo dos rochedos, ouvir o canto das sereias, sem, no entanto, a ele sucumbir. Nesse mesmo sentido, o pré-comprometimento de Ulisses, que limitou o poder de sua vontade no futuro para evitar a morte, poderia ser comparado àquele a que se submete o povo, quando atribui a si normas constitucionais fundamentais, e limita seu poder de reforma vindouro, para evitar que, vítima de suas próprias paixões e fraquezas momentâneas, possa pôr em risco a sua própria existência enquanto corpo político (ELSTER, 1993).

Ao limitar o poder de reforma por meio de um rito rigoroso, a Constituição impede que uma maioria reescreva suas normas fundamentais à sua própria vontade, ao mesmo tempo em que a habilita a agir politicamente segundo suas promessas (OST, 2005b), funcionando como garantia contra o enfraquecimento de um núcleo jurídico-político essencial para a autodeterminação dos cidadãos na construção continuada de sua vida política. Além da proteção da estrutura central do poder contra uma total ruptura, tal limitação busca impedir que mudanças constitucionais “normais” gerem uma erosão dos princípios e compromissos básicos capazes de fomentar o exercício da própria democracia (COSTA JUNIOR, 2011). Do contrário, sem nunca podermos estabelecer processos rígidos de tomadas de decisões políticas de maiorias, estaríamos fadados a pensar qualquer reforma como uma determinação sem entraves, no qual o poder político passa ser concebido como manifestações pontuais e imediatas de uma vontade ilimitada que se coloca, inclusive, acima de qualquer direito.

Sem dúvida, uma modificação radical da ordem constitucional brasileira continua sempre possível, tratar-se-ia então de abolir a Constituição em vigência e se elaborar a nova num processo profundamente democrático e com ampla visibilidade. O problema, contudo, é fazer a reforma política em descumprimento do devido processo legislativo, sem a clareza necessária de que um ato como esse constitui ruptura institucional e não transformação normativa. Autorizar a Convocação de uma Assembleia soberana para realizar com exclusividade tal reforma é, portanto, reconhecer, sob o simulacro de uma ordem constitucional, a legitimidade de um instituto de exceção, um “poder constituinte de segundo grau absolutamente privado da competência para fazê-lo em razão do fim a que se vincula” (CERQUEIRA, 2003, p. 147).

A atual ordem constitucional, é preciso lembrar, não impede uma reforma política desse tipo nos quadros normativos, seja por meio de emendas constitucionais seja por criação de normas infraconstitucionais. Não há obstáculos nas regras do processo legislativo instituído constitucionalmente para uma transformação profunda das normas que disciplinam o jogo político e para a ampliação de canais de comunicação democráticas. Uma reforma política por meio desse processo constitucionalmente autorizado poderia ser realizada sem maiores ameaças ao conjunto amplo de direitos e garantias fundamentais, tendo em vista os limites materiais da Constituição, as cláusulas pétreas. Os maiores empecilhos para uma reforma desse tipo, hoje, no Brasil, seriam de ordem política, no que diz respeito à representação do atual Congresso, não de ordem jurídica. Entretanto, tais impedimentos poderiam ser sanados por uma ampla participação democrática em torno da questão e da cobrança para que a pauta seja debatida institucionalmente. Se existe hoje um grande

consenso popular em torno de uma proposta concreta e factível de transformação do poder e das instituições, como acreditam os defensores da Assembleia exclusiva e soberana, isso pode ser consubstanciado mesmo contra a vontade dos políticos que integram hoje o Parlamento. A aprovação da lei de ficha limpa (DOIN, 2012) e a própria positivação de um amplo rol de direitos fundamentais na Constituição de 1988 – em meio a um dos Congressos mais conservadores da história do Brasil (BARBOSA, 2016; PAIXÃO, 2002; 2006) – ilustram, dentre outros exemplos, a força da mobilização popular, ainda que em situações adversas, na fundamentação e ampliação de direitos.

4.3.2. A Constituição como obstáculo no marco de um constitucionalismo do atraso: a