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A Constituição de 1988 e a consolidação do Estado

No documento Tribunal do Júri e Soberania Popular (páginas 54-61)

2.3 O TRIBUNAL DO JÚRI NO BRASIL

2.3.6 A Constituição de 1988 e a consolidação do Estado

Surge em 1988 a “Constituição Cidadã”, conforme palavras do então Deputado Ulisses Guimarães55, na luta pela restauração da ordem democrática perdida com a ditadura

enquanto a de 1967 se chamava apenas Constituição do Brasil.” SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Melheiros, 2000. p.89.

55“Dissemos não ao stablishment, encarnado no velho do restelo, conclamando, na praia alvoroçada da partida,

Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Camões a permanecerem em casa, saboreando bacalhau e caldo verde, ao invés da aventura das Índias, do Brasil e dos Lusíadas, e amaldiçoando ‘O Primeiro que, no mundo, nas ondas velas quis em seco lenho’. Esta constituição terá cheiro de amanhã, não de mofo [...]. Senhoras e Senhores Constituintes. A Constituição, com as correções que faremos, será a guardiã da governabilidade. A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida são ingovernáveis. Governabilidade é abjurar o quanto antes uma carta constitucional amaldiçoada pela democracia e jurar uma constituição fruto da democracia e da parceria social. A injustiça social é a negação e a condenação do governo. A boca dos constituintes de 1987-1988 soprou o hálito oxigenado da governabilidade pela transferência e distribuição de recursos viáveis para os municípios, os securitários, o ensino, os aposentados, os trabalhadores, as domésticas e as donas-de-casa. Repito: essa será a Constituição cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros, vítimas da pior das discriminações: a miséria. Cidadão é o usuário de bens e serviços do desenvolvimento. Isso hoje não acontece com milhões de brasileiros, segregados nos guetos da perseguição social. Esta Constituição, o povo brasileiro me autoriza a proclamá-la, não ficará como bela estátua inacabada, mutilada ou profanada. O povo nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo. Viva a Constituição de 1988! Viva a vida que ela vai defender e semear!” GUIMARÃES, Ulysses. Trechos do discurso pronunciado pelo Deputado Ulysses Guimarães, na Sessão da Assembléia Nacional Constituinte, em 27 de julho de 1988. Fundação Ulysses Guimarães. Internet: http://www.fugpmdb.org.br/c_cidada.htm#Discurso. Acessado em: 29 de mar., 2007.

militar. No que concerne ao Júri, percebe-se que a atual Constituição reconheceu a instituição e lhe assegurou os princípios da soberania dos veredictos, plenitude de defesa, sigilo das votações e competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida56. O reconhecimento do Júri pela Constituição de 1988 significou o estabelecimento de novos contornos, divorciando-se daqueles estabelecidos pelas constituições de 1964 e 1969.

A prescrição constitucional do art. 1º, da Constituição de 1967 distancia-se bastante da atual constituição, uma vez que o parágrafo único, do também art. 1º, reza que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição.” Desse modo, não apenas o poder poderá ser exercido pelo povo através de representantes, como também diretamente, sem intermediários, como é o caso do Júri e de outros institutos de democracia semidireta. Também no seu preâmbulo, assim como em 1946, destaca-se a instituição de um Estado democrático e a proteção dos direitos sociais e individuais.

Além disso, a atual constituição não impede que o conselho de sentença seja composto por mais de sete membros, e, inclusive, em número par, como ocorre hoje nos Estados Unidos. Este também é o entendimento de Tourinho Filho, quando diz que “atualmente, nada impede que, na organização do Júri, o legislador ordinário estabeleça um número par de jurados. Doze, por exemplo. Nada impede, por outro lado, que o Tribunal Popular julgue outros crimes além dos dolosos contra a vida.”57

56Art. 5°, XXXVIII. É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a

plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Quanto à competência, conforme se vê nas palavras do referido processualista, não há impedimento para que esta seja ampliada para o julgamento de outros crimes, que não apenas os dolosos contra a vida, e, indo mais além, pode também abranger as questões cíveis, sobretudo aquelas que impliquem num grau maior de importância nas relações humanas e sociais, como o são, apenas para citar alguns exemplos, a liberdade de imprensa, a proteção do patrimônio público e da probidade administrativa, o meio ambiente e outras tantas questões que pela sua importância mereceriam um tratamento judicial que mais se aproximasse dos anseios e valores sociais. O fortalecimento do Júri está exatamente neste ponto, com a extensão da sua competência para outros delitos e também para as causas cíveis que tenham maior importância no convívio social.

Diante disso, conclui-se que com a Constituição de 1988 o Júri se reaproximou da sociedade e seus princípios elementares foram restabelecidos, trazendo um nítido fortalecimento da instituição, que hoje, apesar de todas as críticas sofridas, representa uma das mais importantes instituições democráticas brasileira, com a participação efetiva dos cidadãos na promoção da justiça.

3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO JÚRI

3.1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 apontou o Tribunal do Júri como expressão significativa dos direitos e garantias fundamentais, reconhecendo-o e indicando-lhe, expressamente, os seus fundamentos essenciais que formam a base axiológica da instituição do Júri no Brasil. O Júri é assim uma garantia constitucional, contribuindo decisivamente à garantia do devido processo legal, necessitando, como tal, ser materialmente efetivado, evitando-se, assim, relegar a instituição a uma mera garantia abstrata, sem realização concreta e prática.

O art. 5°, inciso XXXVIII, da Constituição Federal estabelece como princípios do Júri a soberania dos veredictos, a plenitude de defesa, o sigilo das votações e a

competência mínima para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Estes princípios,

em que pese a sua relevância ao desenvolvimento da instituição popular, nem sempre tiveram a mesma roupagem dispensada pela atual carta política, o que se constatou no decorrer da análise acerca da evolução do Júri nas Constituições brasileiras realizada no capítulo anterior.

Não obstante, mister se faz aprofundar-se na questão, voltando-se à primeira metade do século XX, momento em que o crescimento da ideologia antiliberal provocou a intensificação de movimentos populares que buscavam o restabelecimento de um equilíbrio entre as classes, já que com as políticas liberais o Estado acabou se distanciando da sociedade, sendo essa reaproximação ponto de partida para a eliminação o abismo social que separava a burguesia da classe operária. A partir daí, conforme está bem claro na Constituição de

Weimar58, emergem os direitos fundamentais da igualdade, quais sejam: os direitos econômicos, sociais, culturais e coletivos.

As conquistas promovidas pelas declarações francesa e americana efetivamente elevaram os direitos “naturais” dos homens à categoria de fundamento do Estado moderno. Acontece que os avanços impulsionados pelo liberalismo, atrelados a uma perspectiva individualista burguesa, não conseguiram universalizar os direitos civis e políticos. Em vez disso, cercearam o alcance dos direitos civis e limitaram os direitos políticos apenas a uma pequena parcela da sociedade ao instituir o sufrágio censitário.

Com o nascimento dos direitos sociais, tornou-se necessário proteger as instituições, o que acabou por impulsionar o surgimento das garantias institucionais. Não se tratam, contudo, de garantias dirigidas diretamente ao cidadão, já que se encarregam, prioritariamente, de proteger as instituições, e, somente indiretamente, acabam contribuindo para o fortalecimento da proteção aos direitos individuais.

Na lição de Paulo Bonavides “a garantia institucional não pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais providos de um componente institucional que os caracteriza.”59 Mais adiante, o constitucionalista arremata dizendo que “a garantia constitucional é uma garantia que disciplina e tutela o exercício dos

58A Constituição Alemã de 1919 trouxe em seu texto significativas mudanças na tradição liberal de tutela aos

direitos humanos ao introduzir no capítulo destinado aos direitos fundamentais a proteção aos direitos sociais, à educação e aos direitos econômicos, conforme se observa, respectivamente, nas seções II, IV e V, Parte II, da referida constituição.

direitos fundamentais, ao mesmo passo que rege, com proteção adequada, nos limites da Constituição, o funcionamento de todas as instituições existentes no Estado.”60

O art. 5°, inc. XXXVIII, da Constituição brasileira, é, portanto, uma garantia institucional, na medida em que a constituição garante a existência e eficácia do Tribunal do Júri, como também por significar, indiretamente, proteção da liberdade individual, já que seu processo diferenciado, caracterizado por uma defesa plena e por sua própria significância enquanto instituição popular e democrática consiste num evidente instrumento de proteção do indivíduo frente ao Estado.

A garantia institucional, portanto, tem por fim dispensar uma proteção especial às instituições, impedindo alteração legislativa destinada a suprimi-las ou a reduzir o seu conteúdo. Neste sentido é o posicionamento de Canotilho, para quem os direitos, liberdades e garantias são protegidos por meio de cláusula constitucional de irrevisibilidade pela sua aplicabilidade imediata.

A Constituição Brasileira de 1988 (art. 60.°/4/IV) estatui que ‘não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais’ [...]. Reportando-nos apenas à problemática deste trabalho – cláusulas de irrevisibilidade dos direitos, liberdades e garantias – parece hoje indiscutível que, dentre o núcleo essencial dos bens constitucionais, se contam os direitos, liberdades e garantias [...]. Em termos mais dogmáticos, dir-se-ia que os direitos fundamentais se moviam ou estavam dependentes de uma reserva de lei [...]. O que se pretende então com a formulação das constituições do pós-guerra ao estabelecerem a aplicabilidade imediata dos preceitos consagradores de direitos, liberdades e garantias? Fundamentalmente isto: reforçar a sua normatividade, tornando claro (1) a sua natureza de direito constitucional e, (2) mais do que isso, a sua força normativa autônoma, independentemente de uma lei concretizadora.61

Aprofundando-se na questão proposta por Canotilho, fica clara a necessidade de debruçar-se sobre um estudo mais aprofundado do Júri, trazendo à tona uma análise que

transcenda o seu caráter de garantia constitucional, abordando-se, também, a sua natureza de garantia institucional, o que impediria, portanto, alteração legislativa que afetasse seus princípios individualizados no art. 5°, inc. XXXVIII, da Constituição Federal. Isto não significa defender a sua intocabilidade, mas sim o estabelecimento de um núcleo de intangibilidade, impedindo-se, portanto, a existência de alteração legislativa de natureza material62.

Seguindo este mesmo raciocínio, Cristina Queiroz defende que “a responsabilidade pela concretização e especificação desses direitos compete, em primeira linha, ao legislador.”63Isto significa dizer que a prioridade da garantia institucional é proteger a própria instituição, restringindo a atuação legislativa destinada a suprimir ou inutilizar a plenitude dos princípios fundamentais da instituição. Preservar a instituição, portanto, é preservar-lhe o seu conteúdo, possibilitando, dessa maneira, o pleno desenvolvimento das atividades institucionais.

Por outro lado, ao se proteger a instituição contra a atividade legislativa restritiva, acaba-se viabilizando uma proteção, ainda que indireta, do próprio indivíduo. É assim que deve ser encarado o Júri, ou melhor, essa deve ser a perspectiva de estudo do art. 5°, inc. XXXVIII, da Constituição Federal, como garantia institucional que protege o Tribunal do Júri de emenda constitucional que lhe restrinja o seu conteúdo, salvo, contudo, alterações meramente lingüística e formal. Com a proteção integral do Júri, estará também assegurando o pleno exercício da democracia e protegendo o próprio direito à liberdade.

61CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudo Sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra editora, 2004.

pp. 140-146.

62“O ‘ter de respeitar’ ‘os direitos, liberdades e garantias’ não significa, consequentemente, que esteja vedada

toda e qualquer folga regulativa ao poder de revisão. Além de modificações formais na redacção das normas ou na formulação lingüística das regras e princípios, cabem ainda no espaço normativo do poder de revisão algumas alterações de natureza substantiva.” Idem, p. 141.

No documento Tribunal do Júri e Soberania Popular (páginas 54-61)