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PARTE II – O CONTEXTO

6. A cooperativa

6.2. A construção da Economia Solidária no Brasil

No Brasil, a história da economia solidária e do cooperativismo tem início no final do século XIX com a fundação de cooperativas de consumo em Campinas, Ouro Preto e Rio de Janeiro. Destaca-se também a fundação, em 1902, de uma cooperativa de crédito em Nova Petrópolis (RS) que existe até hoje, a Cooperural. Entretanto, a mais notável co- operativa desta época é a Cooperativa de Consumo dos Empregados da Viação Férrea (Coopfer), fundada em 1913 em Santa Maria (RS), e que cresceu até a década de1960, chegando a contar com 18 mil cooperados. A cooperativa criou uma caixa de pecúlios, montou hospital próprio, desenvolveu escolas primárias, secundária e técnica, criou ofici- nas que abrangiam os mais variados ramos de produção e serviços e, construiu, ainda, um parque industrial de apoio. Podemos observar, como nos mostra Singer (2002), que o coo- perativismo chegou ao Brasil trazido pela imigração européia. Seu crescimento nas cida- des e no campo se deu a partir de modalidades de cooperativas diferenciadas. No campo, destaca-se o surgimento de cooperativas agrícolas e de crédito. No meio urbano, percebe- se o maior número de cooperativas de consumo. Com a chegada de grandes redes de su- permercados, a maioria das cooperativas de consumo veio à falência. Já as cooperativas agrícolas, boa parte, expandiram economicamente, mas deixaram de lado vários dos prin- cípios cooperativistas. A autogestão cedeu lugar à heterogestão, com a contratação, pela cooperativa, de assalariados que passaram a gerir os rumos e a tomarem as principais deci- sões pela cooperativa. Essas grandes cooperativas agrícolas “se transformaram em grandes empreendimentos agroindustriais e comerciais” (Singer, 2002:122) e deixaram de lado a possibilidade de transformação das relações de produção a partir de uma prática econômi- ca democrática e solidária em prol da lucratividade de seus associados.

A partir de 1964 o cooperativismo sofreu seguidos golpes, sendo submetido ao centralismo estatal e perdendo incentivos fiscais e liberdades conquistadas na década de 1930 – quando obteve vantagens e liberdades para a constituição e funcionamento de coo- perativas, consagrando, ainda, suas postulações doutrinárias. Em 1971, o decreto-lei 5.764/71 é instituído e passa a regular o funcionamento das cooperativas. Com a Constitu- ição de 1988, cessa a intervenção do Estado, todavia mantém-se a lei de 71 em vigor. En-

tre as décadas de 1960 e 1980, o cooperativismo que se fortaleceu foi apenas o cooperati- vismo agrícola mais voltado ao agronegócio. O cooperativismo popular, aquele organiza- do por trabalhadores mais vulneráveis, praticamente não existiu, por conta das diversas dificuldades dos trabalhadores em encontrarem, no cooperativismo, uma alternativa viável de inserção econômica.

No entanto, seria um erro pensar apenas no cooperativismo tradicional como pre- cursor da economia solidária no Brasil. O cooperativismo é uma experiência européia tra- zida por imigrantes europeus para o país que, de acordo com as necessidades locais, foi se adaptando ao nosso ambiente. Mas, fora do cooperativismo e além do contexto de imigra- ção, na história do Brasil, se desenvolveram diversas experiências de caráter associacionis- ta cujas características da economia solidária se acharam presentes. Bons exemplos disso são as comunidades quilombolas, algumas existentes até hoje, onde o modo de organiza- ção da produção, da distribuição e do consumo nos remete às aldeias owenistas. Também podemos destacar as missões fundadas pelos jesuítas, as formas de organização indígenas, as experiências de comunidades como a de Canudos etc. De fato, várias dessas experiên- cias não traziam consigo alguns dos elementos caros à economia solidária, como a prática da autogestão, no entanto as formas de sociabilidade construídas se aproximam muito da- quelas das organizações populares que hoje dão origem a Empreendimentos de Economia Solidária. Não somente nessas experiências mais afastadas encontramos o germe da eco- nomia solidária, mas também no meio urbano, onde algumas experiências, ao longo da história do Brasil, se mostram como importantes precursores de modos de produção soli- dárias. O grande exemplo encontrado em nosso país é o mutirão, em que as pessoas se organizam coletivamente em prol de um objetivo comum e, com isso, todos são beneficia- dos. Essa miríade de experiências pode ser denominada como “economia popular” e é a partir da restituição de sua história e importância, que devemos compreender o fenômeno da economia solidária no Brasil. De acordo com França Filho e Laville:

A base fundamental para tais iniciativas é a solidariedade preexistente nos grupos sociais. Elas representam um prolongamento das solidariedades ordinárias, que se praticam no quotidiano da vida no interior dos grupos primários. A economia popular alimenta-se, por- tanto, das práticas reciprocitárias tecidas no quotidiano dos grupos comunitários, base para a produção e desenvolvimento de atividades econômicas (França Filho & Laville, 2004: 178-9).

Podemos afirmar, então, que a Economia Solidária no Brasil surge tendo como grande referencial, o cooperativismo, trazido a partir da experiência européia, e como base social de constituição, as experiências de economia popular existentes no país. De fato, como podemos perceber, a economia solidária no Brasil se diferencia da economia solidá- ria na França, muitas vezes, por conta de modos de sociabilidade engendrados nas relações comunitárias em que os atores sociais estão inscritos. Essa sociabilidade primária permeia as organizações solidárias e dá uma cara distinta a esse fenômeno. E dentro de um misto de sociabilidades primária e secundária – esta existente por conta da relação que se estabe- lece entre empreendimentos, mercado e Estado – temos o que hoje conhecemos como e- conomia solidária, chamada por alguns autores de economia popular e solidária.

A emergência, nas décadas de 1980 e 90, sobretudo nesta última, da economia so- lidária no Brasil, conta com a participação não somente dos Empreendimentos de Econo- mia Solidária, mas também de Organizações Não-Governamentais (ONGs), da Igreja, dos movimentos populares, de sindicatos, de universidades, de governos municipais e de redes de colaboração mútua (Singer, 2002a). Destaca-se, ainda, a criação, em 2003, de uma Se- cretaria Nacional de Economia Solidária, no âmbito do governo federal, a formação de Fóruns Estaduais e do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, além do Conselho Nacio- nal, constituído em 2006, que vêm trabalhando para o fortalecimento da Economia Solidá- ria no Brasil.

Todo esse contexto nos ajuda a entender os caminhos que a economia solidária vem percorrendo. A partir desse panorama geral, podemos definir alguns elementos que caracterizam o atual fenômeno da economia solidária:

• A formação de redes entre empreendimentos, apoiadores e gestores, em que se des- tacam as redes de incubadoras, a rede Unitrabalho, no seio das Universidades; os fóruns estaduais; a Rede de Sócio-Economia Solidária; as redes de comércio justo; a ANTEAG (Associação Nacional de Trabalhadores das Empresas Autogeridas) etc. Essas redes são importantes para articular ações, mobilizar recursos, ampliar o leque de apoios e trocar experiências a fim de fortalecer a economia solidária a par- tir da interação de todos os atores envolvidos.

• A mistura entre os tipos de sociabilidade primária e secundária é também uma ca- racterística presente nas experiências econômicas solidárias. De um lado, as rela- ções reciprocitárias estão bastantes presentes nos Empreendimentos de Economia

Solidária, por outro, as relações que são estabelecidas com mercado e Estado mos- tram que o movimento de economia solidária vem se expandindo para além das fronteiras ditadas pelas relações baseadas única e exclusivamente em dinâmicas próprias da vida comunitária.

• As experiências de economia solidária se destacam por apresentar, em seu seio, a pluralidade de princípios econômicos, através da hibridação entre economia mer- cantil (pela venda de produtos e serviços), não-mercantil (através de acordos ou subsídios conseguidos na esfera estatal) e não-monetária (pelas relações de proxi- midade, de doação, de ajuda mútua e de solidariedade), tentando articular as lógi- cas existentes em cada tipo de organização econômica.

• Mostram, em decorrência disso, uma finalidade multidimensional que, a partir de uma noção ampliada de riqueza, busca objetivos não-monetários para satisfazerem e responderem às necessidades não só de seus participantes mas do conjunto da so- ciedade em geral. A economia solidária busca mobilizar os atores em prol de uma convivência comum, sustentável, pacífica, de qualidade, inclusiva, democrática e participativa, promovendo, para isso, ações que englobem os campos social, políti- co, cultural, ambiental e econômico.

• Nesse sentido, a prática da autogestão mostra-se como elemento essencial na ca- racterização da economia solidária, pois é a partir de uma prática democrática de gestão dos empreendimentos que os indivíduos se consolidam enquanto sujeitos políticos, lutam pela conquista do bem-estar em suas múltiplas dimensões e vão se diferenciar das práticas solidárias e/ou relações de proximidades tradicionais que muitas vezes também se caracterizam pela verticalização dos laços sociais.

• Além disso, é importante notar que, nos empreendimentos vistos como solidários, um dos desafios principais é o da “afirmação de um agir no espaço público” (Fran- ça Filho e Laville, 2004: 188), ampliando os espaços de discussão e a esfera de a- ção dos indivíduos participantes da economia solidária para além de seu empreen- dimento ou sua comunidade, o que permite o enfrentamento de problemas tidos como públicos ou gerais.

Essas características formam aquilo que denominamos de economia solidária. Suas modalidades e práticas podem tomar diversas formas: cooperativas de trabalho, de consu-

mo, de produção e de crédito, associações, clubes de troca, empresas autogeridas, grupos informais, redes diversas etc.

No Brasil, de acordo com o mapeamento realizado em 2005 pela Secretaria Nacio- nal de Economia Solidária (SENAES), em parceria com o Fórum Brasileiro, a economia solidária está assim caracterizada:

• Foram mapeados 14.954 Empreendimentos Econômicos Solidários, dos quais 44% localizados na região Nordeste, 13% na região Norte, 14% no Sudeste, 17% no Sul e 12% na região Centro-Oeste.

• Esses empreendimentos estão organizados, em sua maioria, sob a forma de associ- ação (54%), 33% são grupos informais, 11% são cooperativas e 2% são outras formas de organização.

• Dentre os principais motivos para a criação do empreendimento, destaca-se a pro- cura por uma alternativa ao desemprego, que representa a motivação da criação de 45% dos empreendimentos mapeados.

• São mais de 1 milhão e 250 mil trabalhadores e trabalhadoras envolvidas com a economia solidária, sendo 36% mulheres e 64% homens. Nos empreendimentos com até 10 participantes, destaca-se o número de mulheres, sendo elas 63% do to- tal. Já nos empreendimentos maiores, acima de 21 sócios cresce o número de ho- mens: mais de 60%.

• Metade (50%) atua exclusivamente na área rural, outros 33% são tipicamente ur- banos e 17% atuam tanto na área rural quanto no campo.

• Quanto às atividades desenvolvidas, 42% atuam no ramo da produção agropecuá- ria, pesca e extrativismo, 42% no de alimentos e bebidas, 13,9% no artesanato e cerca de 2% no ramo de coleta e reciclagem de materiais.

• Esses empreendimentos movimentam cerca de 500 milhões de reais mensalmente, através da comercialização de seus produtos e serviços.

• O ramo da reciclagem movimenta, em média, R$ 9.098,15 mensalmente, através da venda de seus produtos.

• Dentre os empreendimentos que informaram a remuneração dos sócios (59% dos empreendimentos entrevistados), 50% apresentam remuneração de até meio salário mínimo (R$ 175,00), 26,1% de meio a um salário mínimo (R$ 350,00) e, em escala decrescente, 23,9% remuneração de mais de um salário mínimo.

• Os empreendimentos, em sua maioria, realizam a comercialização em suas comu- nidades e municípios, 56% e 50% respectivamente, apenas 7% comercializam na- cionalmente e 2% em outros países, sendo a comercialização a maior dificuldade encontrada por esses empreendimentos: 61% dos empreendimentos declaram en- contrar dificuldades na comercialização.

• Quanto à ação em redes e movimentos sociais, 59,4% afirmam participar de mo- vimentos sociais e populares e 42,2% de redes e fóruns de economia solidária. • Além disso, foram identificados 1.120 entidades de apoio, assessoria e fomento à

economia solidária, com destaque àquelas que atuam no campo da formação (39,5%) e de mobilização e articulação (34,7%).

Após esse panorama geral a respeito da economia solidária no Brasil, podemos comparar com a sua situação no Distrito Federal, a fim de contextualizar as cooperativas de catadores de materiais recicláveis.