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Capítulo II – Da margem ao centro: a re-mercantilização do descartável em Boca de

2.4 A construção da empatia e da “dor do outro”

Esta seção será dedicada à reflexão sobre as ideias de empatia e “dor do outro”, de Lynn Hunt (2009) e Susan Sontag (2005), respectivamente. Interessa-nos entender como as representações do universo do descartável dialogam com tais construções culturais em suas produções de sentido, utilizando-as estrategicamente. Quando se torna interessante lançar a carta da empatia? E quando é interessante descartá-la?94

Lynn Hunt (2009) aborda o processo de configuração da noção de direitos humanos. Segundo a autora, os direitos humanos surgem apoiados num “conjunto de pressuposições sobre a autonomia individual” (ibid., p. 25), durante o processo histórico da modernidade. Uma dessas pressuposições seria a capacidade dos indivíduos de se perceberem como semelhantes, ou seja, a capacidade de sentir empatia pelo outro.

Para ter direitos humanos, as pessoas deviam ser vistas como indivíduos separados que eram capazes de exercer um julgamento moral independente; como dizia Blackstone, os direitos do homem acompanhavam o indivíduo “considerado como um agente livre, dotado de discernimento para distinguir o bem do mal”. Mas, para que se tornassem membros de uma comunidade política baseada naqueles julgamentos morais independentes, esses indivíduos autônomos tinham de ser capazes de sentir empatia pelos outros. Todo mundo teria direitos somente se todo mundo pudesse ser visto, de um modo essencial, como semelhante. A igualdade não era apenas um conceito abstrato ou um slogan político. Tinha de ser internalizada de alguma forma. (HUNT, 2009, p. 25-26).

De acordo com Hunt, a empatia seria uma capacidade do indivíduo de sentir-se semelhante e reconhecer o outro como semelhante. Essa capacidade seria uma condição fundamental para o surgimento dos direitos humanos. Somente com o reconhecimento do outro como um ser semelhante é que seria possível abrir caminhos para a ideia de que todos têm direitos inalienáveis e iguais apenas por pertencerem à categoria de seres humanos.

É interessante notar que por volta do mesmo período em que foram confeccionadas a Declaração da Independência dos EUA (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do

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No caso dos filmes analisados nesta dissertação, cabe também questionar: a empatia é de quem para quem? Os filmes pretendem estabelecer redes de empatia com que tipo de espectador?

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Cidadão (1789), documentos que tinham como finalidade ratificar as ideias de igualdade e semelhança entre todos os seres humanos, fixam-se também os sentidos acerca da marginalidade e do perigo que determinados tipos de indivíduos ofereciam à sociedade, como os loucos, os presos, os pobres e os doentes, processo mencionado no primeiro capítulo desta dissertação. Portanto, a noção de igualdade e semelhança entre os indivíduos serviu também como forma de se mascararem as desigualdades que esse mesmo processo engendrou95.

Hunt ressalta que a autonomia e a empatia são construções culturais, que se desenvolveram ao longo do processo histórico da modernidade, mobilizando ideias como a vergonha e o decoro corporal.

A autonomia e a empatia são práticas culturais e não apenas ideias e, portanto, são incorporadas de forma bastante literal, isto é, têm dimensões tanto físicas como emocionais. A autonomia individual depende de uma percepção crescente da separação e do caráter sagrado dos corpos humanos: o seu corpo é seu, e o meu corpo é meu, e devemos ambos respeitar as fronteiras entre os corpos um do outro96. A empatia depende do reconhecimento de que outros sentem e pensam como fazemos, de que nossos sentimentos interiores são semelhantes de um modo essencial. Para ser autônoma, uma pessoa tem de estar legitimamente separada e protegida na sua separação; mas, para fazer com que os direitos acompanhem essa separação corporal, a individualidade de uma pessoa deve ser apreciada de forma mais emocional. Os direitos humanos dependem tanto do domínio de si mesmo como do reconhecimento de que todos os outros são igualmente senhores de si. É o desenvolvimento incompleto dessa última condição que dá origem a todas as desigualdades de direitos que nos têm preocupado ao longo de toda a história. (HUNT, 2009, p. 27-28).

Todo o processo de separação e autocontrole dos corpos que se desenvolveu durante a modernidade, já comentado em nosso primeiro capítulo, contribuiu para a configuração e introjeção da empatia pelos indivíduos. No caso das representações midiáticas acerca do descartável, entende-se que a construção da empatia é necessária para o estabelecimento do “contrato de leitura” e pode ser vista como uma das estratégias melodramáticas utilizadas para a manutenção desse contrato, fazendo com que o espectador crie uma relação de semelhança e se coloque no lugar do outro ali representado. Por outro lado, a frase de Susan Sontag em

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A nossa crítica se associa à crítica de Marx sobre os direitos humanos. Marx considerava que tais direitos conferiam liberdade ao capital, não ao indivíduo, além de estarem dirigidos a um sujeito específico: o proprietário burguês. Ressaltamos que os direitos humanos constituem uma arena de embates de suma importância na contemporaneidade, que não deve ser desconsiderada de modo algum, dados os processos desiguais sobre os quais se ergueram as sociedades contemporâneas.

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Nota-se que o processo da autonomia individual, assim como o de empatia, se deram de modos desiguais e ainda hoje são motivos de diversas lutas, dentre estas, a do feminismo e das questões de gênero. A Marcha das Vadias (SlutWalk), por exemplo, tem como uma das principais estratégias discursivas afirmar, repetidamente, a expressão “Meu corpo, minhas regras”, uma vez que o corpo feminino foi construído, historicamente, como inferior ao masculino. Desse processo resultam diversas formas de agressão à mulher e àqueles que não se enquadram na heteronormatividade dos corpos. Ao afirmarem “Meu corpo, minhas regras”, as “vadias” chamam a atenção para a autonomia (e o respeito) dos corpos, especialmente o corpo da mulher.

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“Diante da dor dos outros” (2005) – “Nosso fracasso é de empatia” – pode nos apontar outras direções.

Em seu ensaio, Sontag analisa as fotografias de guerra que abastecem o repertório de dor da vida cotidiana. A autora cita o livro Três guinéus, de Virginia Woolf, que foi escrito em resposta a um advogado que questionara como poderia ser evitada a guerra. Em sua resposta, Woolf sugere ao advogado que sejam analisadas as imagens de guerra, aproximando os seus distantes universos através do horror e da repugnância causadas pelas fotografias.

Olhem, dizem as fotos, é assim. É isto o que a guerra faz. E mais isso, também isso a guerra faz. A guerra dilacera, despedaça. A guerra esfrangalha, eviscera. A guerra calcina. A guerra esquarteja. A guerra devasta. Não sofrer com essas fotos, não sentir repugnância diante delas, não lutar para abolir o que causa esse morticínio, essa carnificina – para Woolf, essas seriam reações de um monstro moral. Nosso fracasso é de imaginação, de empatia: não conseguimos reter na mente essa realidade. (SONTAG, 2005, p. 13)

A autora se apoia no papel pedagógico que as fotografias e, de modo mais amplo, as mídias, possuiriam por exibir os horrores da guerra para que as pessoas sentissem compaixão pelo outro e se contrariassem com as ações bélicas. Sontag afirma que “por longo tempo algumas pessoas acreditaram que, se o horror pudesse ser apresentado de forma bastante nítida, a maioria das pessoas finalmente apreenderia a indignidade e a insanidade da guerra” (ibid., p. 17).

Todavia, Sontag ressalta que os múltiplos usos e apropriações das fotografias de guerra nem sempre geraram sentimentos de repugnância e horror.

De fato, há muitos usos para as inúmeras oportunidades oferecidas pela vida moderna de ver – a distância, por meio da fotografia – a dor de outras pessoas. Fotos de uma atrocidade podem suscitar reações opostas. Um apelo em favor da paz. Um clamor de vingança. Ou apenas a atordoada consciência, continuamente reabastecida por informações fotográficas, de que coisas terríveis acontecem. (SONTAG, 2005, p. 16)

Pode-se afirmar que a “dor do outro” é um dos elementos que atravessam as representações midiáticas do descartável analisadas nesta dissertação. Percebe-se que há uma tentativa por parte dos documentários de retratar o sofrimento do outro, mostrando as condições precárias de vida e as sagacidades que os sujeitos utilizam para lidarem com o contexto adverso do lixo. A representação da dor do outro, associada à capacidade de sentir-se semelhante ao outro e compartilhar do seu sofrimento, que Lynn Hunt chama de empatia, constituem importantes estratégias discursivas para esses documentários, convocando um imaginário melodramático.

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e do imaginário melodramático. O melodrama, matriz popular vinculada ao excesso e pautada em sensações e sentimentos, estaria vinculado à valorização da vida privada e do cotidiano na modernidade, “em que as instâncias da intimidade e da moral parecem cada vez mais centrais como reguladoras da vida social” (2007, p. 87), constituindo uma “pedagogia moralizante”.

Segundo a autora, o melodrama movimenta relações internas da narrativa audiovisual e entre obra e público guiadas pelo pathos, “vínculos empáticos configurados por temáticas que envolvem polaridades entre bem e mal, virtude e vilania, instâncias moralizantes que serão articuladas esteticamente num modo exacerbado, o qual carrega as estratégias que convidam à mobilização sentimental” (ibid., p. 89). Dessa forma, estruturar uma narrativa baseada no excesso sugere, mais do que a identificação, o engajamento do espectador, fundamental para a articulação das mise-en-scènes e para a eficácia da pedagogia moralizante.

O documental e o melodrama parecem universos distantes, porém, de acordo com a autora,

Os modos de organização da narrativa em torno do excessivo, talvez sejam as maneiras mais eficazes de fazer o público fluir e fruir com a narrativa. Tais ideias – fluir e fruir – são fundamentais na construção da subjetividade moderna. É central, nesse contexto, a dimensão espetacular para alimentar os desejos de circulação e consumo do sujeito moderno. (BALTAR, 2007, p. 92).

A simbolização exacerbada, um dos elementos presentes nos documentários e que deriva da matriz popular do excesso, articula um efeito de “presentificação” dos elementos da narrativa. Associada à obviedade, ambas funcionariam como mecanismos de antecipação. Estes três elementos – simbolização exacerbada, obviedade e antecipação – indicariam a presença do imaginário melodramático nos documentários.

Dessa forma, a utilização de estratégias do universo do melodrama pelos documentários, como o close no rosto que chora e as próprias lágrimas (e mesmo a ausência destas em uma cena carregada de tensão), seria importante para o estabelecimento de um contrato de leitura com o público. Entendemos que a representação da dor do outro constrói uma relação de empatia, sendo utilizadas nas representações do descartável como estratégias para promover o engajamento sensório-sentimental do espectador, convocando-o à compaixão e à fruição.