• Nenhum resultado encontrado

Capítulo II – Da margem ao centro: a re-mercantilização do descartável em Boca de

2.3 Performance e auto mise-en-scène

Erving Goffman, em “A representação do eu na vida cotidiana” (2002), investiga a estrutura dos encontros sociais utilizando como metáfora a representação teatral. Na visão do autor, o indivíduo encena papéis sociais nos diversos contextos ou “palcos” em que se insere, ganhando os contornos de “ator” e “personagem” (ibid., p. 231). Ambos, personagem e ator, seriam acionados de acordo com a contingência dos palcos cotidianos.

87

Para Gilles Deleuze, o Outrem é uma estrutura do campo perceptivo. É a expressão de um mundo possível: “Que Outrem, propriamente falando, não seja ninguém, nem você, nem eu, significa que ele é uma estrutura, estrutura que se encontra efetuada somente por termos variáveis nos diferentes mundos de percepção – eu para você no seu, você para mim no meu. Nem mesmo basta ver em outrem uma estrutura particular ou específica do mundo perceptivo em geral; de fato, é uma estrutura que funda e assegura todo o funcionamento deste mundo em seu conjunto. É que as noções necessárias à descrição deste mundo – forma-fundo, perfis-unidade de objeto, profundidade-comprimento, horizonte-foco – permaneceriam vazias e inaplicáveis se Outrem não estivesse aí, exprimindo mundos possíveis (...)” (DELEUZE, 1988, p. 267).

88

Destacamos ainda a importância da compreensão dos contextos históricos em que se encontram os documentários que analisamos, especialmente no que diz respeito aos discursos ecológicos. O filme “Boca de Lixo” foi feito em uma época em que os discursos acerca da reciclagem, por exemplo, eram incipientes, diferentemente de “Lixo Extraordinário”, cuja noção de reciclagem é fundamental para a rede de sentidos do filme.

82

A noção de performance89 em Goffman é usada para se referir “a toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência” (ibid., p. 29). Percebe-se, portanto, que a ideia de performance estaria ligada à atuação, à produção de presença90 e atualização de um “eu” virtual91.

Na construção de suas performances, os performers lançam mão de um conjunto de táticas e estratégias a fim de preservarem a autoimagem. Goffman nomeia esse conjunto de face-work, que pode ser aplicado tanto em interações imediatas quanto em interações mediadas, como é o caso das performances nos documentários. Como nos explica Baltar, a partir desse jogo de projeções e das estratégias de gerenciamento da face92 são constituídos os processos de consolidação dos papéis sociais, que por sua vez, são partilhados socialmente e ganham determinados contornos, ou seja, são construídas expectativas acerca da forma como os papéis devem ser representados.

A performance condensa, a um só tempo, a dimensão da atuação (constitutiva do jogo de projeções nas relações “face a face”) e uma afirmação da “realidade” dessa atuação. Acaba-se, assim, dissociando a performance de uma oposição entre verdadeiro e falso, colocando em evidência um jogo de avaliações e correlações de projeções de uma autoimagem (face), a um só tempo, de caráter moral e social. (BALTAR, 2010, p. 223).

Desse modo, a junção da dimensão da atuação ou representação com a afirmação de uma realidade remete-nos à discussão presente na seção anterior, quando ressaltamos que a representação e a realidade social são indissociáveis. As performances não são julgadas

89

É importante destacar que na tradução brasileira do texto de Goffman a palavra representação substituiu o termo performance, assim como ator substituiu o termo performer. Performance e performer eram os termos empregados no texto original The presentation of self in everyday life (1956).

90

Hans Ulrich Gumbrecht, no livro Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir (2010), define a palavra ‘presença’ como “uma relação espacial com o mundo e seus objetos. Uma coisa ‘presente’ deve ser tangível por mãos humanas - o que implica, inversamente, que pode ter impacto imediato em corpos humanos”. O termo ‘produção’ se refere ao “ato de ‘trazer para diante’ um objeto no espaço” (p. 13). Gumbrecht completa: “Em outras palavras, falar de ‘produção de presença’ implica que o efeito de tangibilidade (espacial) surgido com os meios de comunicação está sujeito, no espaço, a movimentos de maior ou menor proximidade e de maior ou menor intensidade. Pode ser mais ou menos banal observar que qualquer forma de comunicação implica tal produção de presença; que qualquer forma de comunicação, com seus elementos materiais, ‘tocará’ os corpos das pessoas que estão em comunicação de modos específicos e variados - mas não deixa de ser verdade que isso havia sido obliterado (ou progressivamente esquecido) pelo edifício teórico do Ocidente desde que o

cogito cartesiano fez a ontologia da existência humana depender exclusivamente dos movimentos do pensamento

humano” (p. 38-39).

91

Devo essa reflexão à minha orientadora, Ana Lúcia Enne, que há alguns anos, durante uma conversa informal, me explicou a sua crítica à apropriação do conceito de Goffman para a língua portuguesa. Para ela, a ideia de presentificação e atualização do “eu” estariam mais próximas do pensamento de Goffman do que a ideia de “representação do eu”.

92

“Face é uma imagem do eu delineada em termos de aprovação dos atributos sociais – podendo ser uma imagem que outros possam compartilhar, quando, por exemplo, o sujeito mostra-se de uma boa maneira” (GOFFMAN apud BALTAR, 2007, p. 30).

83

apenas por serem sinceras e/ou cínicas, segundo o desempenho do performer. Envolvem também os julgamentos morais que estão relacionados às expectativas sociais sobre determinada performance.

Partimos, então, para a seguinte questão: como pensar a noção de performance no âmbito do documentário? Baltar nos traz alguns esclarecimentos sobre essa associação.

O conceito de performance, embora ocasionalmente utilizado no campo do documentário, ainda é pouco teorizado, sobretudo no tocante às suas implicações para o processo de constituição do personagem. O vocabulário corrente na revisão teórica do campo dos últimos dez anos já inclui, sem embaraços, termos como “atores sociais” para designar os sujeitos que são alvo do interesse do documentário, ou como “narrativa”, para dar conta dos procedimentos estéticos articulados no âmbito do discurso fílmico. No entanto, com menos recorrência, utiliza-se o termo

performance, que parece ainda estar atavicamente vinculado à noção de ficção e de

atuação, portanto, aparentemente contrário ao que compõe a expectativa social, historicamente construída, do domínio do documentário. (BALTAR, 2010, p. 219).

Historicamente, o documentário baseia-se em “discursos do real”, daí a dificuldade de se aplicar a ideia de performance, que é frequentemente associada à ficção. Contudo, se pensarmos que toda e qualquer narrativa é uma ficção, inclusive a documental, transpõe-se essa barreira no que diz respeito ao documentário. Segundo Baltar, a dimensão da performance aliada ao documentário desloca a abordagem, que sai da dualidade entre verdade e mentira e “faz incorporar, no encontro instaurado pela experiência documental, a noção de que há uma ordem de atuação presente em qualquer interação social” (ibid., p. 223). Assim, mesmo quando são representados e se representam através de “discursos de sobriedade” (NICHOLLS, 1997), os sujeitos ‘documentados’ performam diante das câmeras e estabelecem diferentes interações com o diretor e o espectador imaginado. Comolli denomina essa performance do sujeito filmado de auto mise-en-scène.

Em Ver e poder (2008), Jean-Louis Comolli analisa o cinema a partir de uma pedagogia do não-visível, indo de encontro à lógica da espetacularização que permeia as produções audiovisuais. Para o autor, o espectador é o “verdadeiro sujeito do cinema”, pois tem o poder e o gozo de ver. O autor afirma que o espetáculo, como já previa Guy Debord, se generalizou, engendrando uma grande preocupação moderna: o cuidado com a imagem. Segundo ele, tal preocupação é “uma consciência de que poderia haver uma imagem de si a ser produzida, a mostrar, a oferecer ou a esconder, afinal, a colocar em cena” (ibid., p. 53). Desse modo, os sujeitos filmados “estariam em condições de gerir o conteúdo de suas intervenções”.

84

“mais ou menos guiada pelo desejo, mais ou menos marcada pelo medo e pela violência”. Os sujeitos filmados, segundo o autor, teriam a capacidade “de colocar em cena, de produzir a mise-en-scène de si mesmos: dominar esse medo, brincar com ele” (ibid., ibid.). Para o autor, a sociedade seria constituída por diferentes mise-en-scènes, que se atravessam, se sobrepõem, se confundem e se diferenciam. Nesse cruzamento de mise-en-scènes, os sujeitos fabulariam as suas próprias mise-en-scènes. No ato de filmar o outro, haveria, portanto, um embate entre mise-en-scènes93, onde a representação seria o terceiro elemento constituinte da relação com o outro, produzindo a diferença e a identidade.

Simultaneamente, ocorre “a invenção do espectador como sujeito do cinema, sujeito do filme e sujeito da experiência vivida que é a projeção de um filme” (ibid., p. 97). Segundo Comolli, o filme passa não só na tela do cinema, mas também na tela mental de cada espectador, de cada subjetividade ali presente. “No cinema não há público, mas uma coleção de espectadores singulares, subjetivados”, diz o autor.

Comolli alega que “a potência do cinema estava em conferir um efeito de real à ilusão, um efeito de presença à ausência, um efeito de atualidade ao passado” (ibid., p. 102). Nesse sentido, retomando parte da discussão das seções anteriores, pode-se pensar que a representação substitui uma “ausência” e atualiza uma presença, deixando escapar o acidente, o silêncio, a surpresa ou o grito, que seria o lugar do “outro” na narrativa, para Guimarães e Lima, ou o lugar do “real”, para Comolli.

O combate principal não é, de agora em diante, entre representações antagônicas (capitalismo/comunismo, por exemplo), mas entre o que continua ligado à

representação (políticas da relação entre cidadãos, por meio da delegação de poder,

cujas modalidades são apenas variantes do princípio democrático) e o que sai da

representação para ir em direção à mediatização da informação-mercadoria e do sujeito-consumidor – que, em linhas gerais, é a lógica de uma

não-declarada-como-tal ditadura do mercado. (COMOLLI, 2008, p. 103 - grifos do autor)

A mediatização da informação-mercadoria e do sujeito consumidor seria impulsionada pelas forças do mercado. Isso levaria ao “abandono do sistema de representação”, caracterizado por processos de aceleração da circulação da informação, da mercadoria, do consumo, da renúncia à experiência, dentre outros.

Compreendemos que os documentários, em nossa pesquisa, constroem diferentes projetos de mercantilização a partir das distintas práticas discursivas de construção de

93

Para Comolli, a especificidade do documentário é exatamente o confronto entre a relação com o outro e a noção de mise-en-scène, que seria a contradição fundamental de sua prática. É precisamente na escolha da pessoa a ser filmada que intervém o medo, o desejo e a ambivalência.

85

personagem. Este “embaralhar” das fronteiras, que faz com que percebamos o sujeito somente quando este se torna (e performa como) mercadoria, é uma falácia, pois, como afirma Comolli, “no mercado, a mercadoria faz tufo para se tornar desejável, mas sabemos que isso é apenas um fingimento: é ela que nos deseja, indistintamente, indiferentemente” (COMOLLI, 2008, p. 105).