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A construção da escola pública de massas em Portugal

Sumário e texto da intervenção

1. A construção da escola pública de massas em Portugal

Com efeito, em Portugal, a instituição escolar pública começa a dar os primeiros passos com Marquês de Pombal em 1772 quando este cria as chamadas escolas de “ler, escrever e contar” para os filhos (rapazes) de artesãos urbanos, estando o ensino dos filhos (também homens) dos camponeses a cargo dos párocos (cf. Araújo, 1996:163), começando nesta altura

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Socióloga da Educação e da Cultura. Professora do Departamento de Ciências Sociais da Educação, Instituto de Educação da Universidade do Minho. Investigadora do CIED – Centro de Investigação em Educação da mesma Universidade e do EMIGRA – Grupo de Investigação em Migrações, Educação e Infância, Universidade autónoma de Barcelona. Coordenadora do Núcleo de Educação para os Direitos Humanos da mesma Universidade.

O presente texto resulta de um pedido do CEJ-Centro de Estudos Judiciários, no âmbito da realização de formação para magistrados e retoma algumas das reflexões que venho desenvolvendo acerca da

Minorias – que escolaridade? A escolarização de crianças e jovens ciganos: entre a inclusão- excludente e a integração subordinada

o interesse do Estado pela educação pública, nomeadamente no ensino das primeiras letras para sectores da população “não pertencentes às classes sociais de maior poder” (Ibid). As escolas para raparigas são criadas 18 anos mais tarde, em 1790, apenas entrando em funcionamento em 1815 (cf. Araújo, 1996)

No que diz respeito às minorias, no caso em concreto, aos ciganos, estes encontravam- se, não de lei, mas de facto, excluídos do sistema de ensino português até ao 25 de Abril de 1974, quer no que diz respeito aos ciganos nómadas pela obrigação legal de itinerância que os impossibilitava dessa frequência, quer aos semi-sedentários e sedentários pela exclusão a que eram votados pela sociedade maioritária (cf. Casa-Nova, 2008). Ou seja, as crianças ciganas, como regularidade, foram integradas na escola pública após o processo de sedentarização gradual que se acelerou pós 25 de Abril e as crianças e jovens com deficiência, apenas com a publicação do Decreto-lei 319/91, de 23 de Agosto, evidenciando a construção lenta da escola pública de massas, mesmo no que ao acesso formal diz respeito. Esta igualdade de acesso não se encontra ainda, de facto, conseguida dada as diferentes proveniências das crianças, seja em termos de classe, etnicidade, cultura, fenótipo ou deficiência e das representações sociais associadas a cada uma destas pertenças, das quais resulta tratamentos diferenciados ao nível dos processos sociais desenvolvidos na sala de aula. Como já na década de vinte do Século passado William Thomas referia, quando as pessoas definem as situações como reais, elas são reais nas suas consequências. Ou seja, aquela definição das situações, não sendo a realidade, são assumidas como reais pelo condicionamento das práticas a que dão origem.

A história recente tem evidenciado uma enorme dificuldade de a escola pública integrar (de forma emancipatória e não subalterna) as crianças e jovens ciganos, bem como uma dificuldade de os progenitores ciganos permitirem trajectórias escolares prolongadas, principalmente no que diz respeito às mulheres ciganas, por razões já muito descritas e reflectidas (Casa-Nova, 2002, 2006, 2008, 2009, 2012, Magano, 2010, Mendes, 2012).

Os estereótipos seculares negativos existentes na sociedade maioritária em relação à população cigana e presente numa memória cultural transmitida de geração em geração, fazem do povo cigano os estranhos próximos que se querem socialmente distantes (Casa-Nova, 2009) em todas as esferas do mundo social: escola, locais de trabalho, espaços habitacionais e de sociabilidade, etc. Esta atitude e prática seculares de rejeição socio-cutural deste “outro”, os ciganos, desenvolveram nestes estratégias defensivas face à sociedade maioritária e às instituições que dela fazem parte e que são estranhas para este grupo sociocultural dado funcionarem segundo regras que desconhecem uma vez que não fazem parte do seu universo cultural.

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No que à instituição escolar diz respeito, a não familiaridade (ou a familiaridade relativamente recente) com as regras e normas de comportamento exigidas pela escola, têm tido como consequência o uso de estratégias defensivas por parte das crianças, para quem a escola aparece como um local hostil, desconfortável, que as coloca longe do ambiente familiar estimulante e protector em que, maioritariamente, foram (e são) socializadas (cf. Casa-Nova, 2002, 2008). Este desconforto tem dado origem a um grande absentismo por parte das crianças e jovens ciganos, sem que da parte da escola exista uma preocupação em perceber as verdadeiras causas desse absentismo, sem a necessária dissociação entre causas relacionadas com o desconforto na sala de aula, doenças, problemas económicos, mudança de lugar, etc., e causas relacionadas, por exemplo, com ausência de preocupação dos progenitores com a escolarização dos seus filhos.

Associadas a estas causas, a existência de matrimónio em idades precoces dentro das famílias ciganas comparativamente com a sociedade maioritária, tem levado a decisões judiciais que, aparentemente, parecem negligenciar o Direito Humano fundamental de acesso e sucesso escolares, preconizado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Constituição da República Portuguesa e pela Lei de Bases do Sistema Educativo Português, apenas para citar alguns dos normativos legais enquadradores deste direito e que não podem deixar de ser tidos em consideração na tomada de decisões judiciais relativas à continuidade ou descontinuidade do percurso escolar destas crianças e jovens.

1.1. A oferta escolar diferenciada e hierarquizada

Importa também ter presente que as crianças e jovens ciganos, ao longo do seu processo de escolarização, passaram de sujeitos analfabetos a sujeitos escolarizados nas vias socialmente mais desprestigiadas e desprestigiantes, frequentando, maioritariamente por orientação dos/as professores/as, os chamados PCA-Percursos Escolares alternativos, CEF- Cursos de Educação e Formação, PIEF- Programa Integrado de Educação e Formação, vias essas que os deixam na situação em que primariamente se encontram, ou seja, de segregação sociocultural, de profunda desigualdade de oportunidades de e na vida. Neste tipo de escolarização, assiste-se, em última instância, ao sucesso do certificado, mas não ao sucesso das aprendizagens (Casa-Nova, 2008).

O problema não reside na diversificação das vias de ensino, mas no desnivelamento das mesmas, continuando a existir um currículo-padrão (que permanece inalterável) a partir do qual as outras vias são julgadas e hierarquizadas (Casa-Nova, 2013a), bem como a constituição de turmas apenas de crianças ciganas, consistindo numa discriminação negativa que pretende “normalizar” todas as outras turmas, “depurando-as” dos elementos “perturbadores” das práticas pedagógicas dos/as professores/as e da “normalidade” ficcionada atribuída aos alunos

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académico, constitui-se numa discriminação negativa travestida de uma intencionalidade positiva, duplamente penalizadora das crianças e jovens ciganos: negação da construção de relações interculturais e negação do acesso ao conhecimento científico.

Estas crianças e jovens ciganos constituem-se no que Bourdieu & Champagne (1999) designaram de “excluídos do interior” (aqueles que, encontrando-se dentro da escola, estão efectivamente excluídos do acesso ao conhecimento que confere poder e prestígio na sociedade) sendo que, dentro desta “exclusão”, é possível construir-se uma gradação onde os ciganos aparecem no nível mais baixo e profundo dessa exclusão, transformando-se a escola num lugar de inclusões-excludentes e de integrações subordinadas onde a preocupação reside na tentativa de normalização destas crianças e jovens com vista a uma integração harmoniosa na sociedade maioritária.

1.2. “Normalização” e “diferenciação”

E aqui, a ideia de norma é a ideia de um modelo ou padrão que, numa determinada sociedade, se convencionou considerar como o comportamento ideal a seguir, sendo adoptado e incorporado no quotidiano, transformando-se em automatismos de pensamento e de acção. Agir com normalidade será, portanto, agir de acordo com a norma social. O processo de socialização através da educação escolar é perspectivado como fundamental para produzir uma interiorização normativa homogénea, possibilitadora de uma certa previsibilidade comportamental, convertendo-se numa espécie de “segunda natureza”. Normalizar significa fazer agir (no sentido do constrangimento) de acordo com a norma pré-existente, negando o direito à diferença e negligenciando assim a importância de compatibilizar o respeito pelas regras escolares com o direito à diferença consagrado na Lei de Bases do Sistema Educativo, nomeadamente no seu artigo 3.º, alínea d).

Do ponto de vista científico, na perspectiva crítica em que me situo, diferenciar em educação significa elaborar “dispositivos de diferenciação pedagógica” (Stoer & Cortesão, 1999), que possibilitem às crianças provenientes de universos culturais e sociais não coincidentes com o universo cultural e social escolar (nomeadamente crianças de origem cigana ou crianças provenientes de classes consideradas de menor estatuto social) a aquisição da cultura-padrão escolar sem perda da sua cultura de origem, potenciando a aquisição de um “bilinguismo cultural” (Ibid.) que as torna portadoras de duas culturas e, consequentemente, mais preparadas para os desafios das sociedades contemporâneas. Desenvolver práticas pedagógicas neste sentido, significa construir práticas educativas “maximamente abrangentes” (Casa-Nova, 2002), que permitam a aquisição do “conhecimento independente do contexto” (Young, 2011), que é o conhecimento teórico produzido nas diversas ciências, o conhecimento abstracto, vertido nos programas académicos e ensinados nas escolas, mas tornando-o

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O desafio está em conseguir que estas crianças e jovens frequentem a educação escolar (regular) proposta pela sociedade maioritária numa perspectiva de igualdade, sem que esta frequência e o êxito na mesma signifiquem a perda, a substituição de uma cultura por uma outra que, numa escala valorativa, é considerada como superior ou como estando num estádio de desenvolvimento superior.

Para que a escolarização destas crianças e jovens seja bem sucedida nos termos acima descritos, ou seja, em currículos que potenciam uma mobilidade social ascendente, ministrados através de dispositivos pedagógicos, importa ter presente o que significa o conceitos de igualdade, de equidade e de racismo institucional.

1.3. Igualdade e equidade

Importa ter em consideração que o conceito de igualdade implica: a) a formulação legal dessa igualdade; b) o efectivo acesso a ela; c) formas de concretização da igualdade e d) formas de potenciar oportunidades na vida. Esta acepção de igualdade, transposta para o campo escolar, significa a garantia, por parte do Estado: a) da concretização da igualdade de acesso através de subsídios às famílias de escassos recursos materiais no sentido de lhes proporcionar condições de efectiva acessibilidade à escola; b) da formulação de políticas que permitam, dentro da escola, a construção de uma igualdade de sucessos e não de sucessos centrais e de sucessos periféricos; c) da consciencialização, por parte dos actores no terreno, da importância da “recontextualização pedagógica” dos alunos, introduzindo- os e socializando-os adequadamente nos saberes escolares, fazendo a ponte entre diferentes universos socioculturais. É esta definição lata e complexa de igualdade, que combina a igualdade de acesso (formal e de facto) com a igualdade de processos, de resultados e de construção de oportunidades na vida, que permite a construção de uma integração paritária e emancipatória de todos os actores sociais na escola em vez de uma integração subordinada (Casa-Nova, 2013a), que é o tipo de integração que está subjacente à maioria dos processos de escolarização das crianças e jovens ciganos, bem como à escolarização de grande parte das crianças provenientes de classes de menor estatuto social.

No entanto, aquilo a que temos vindo a assistir ao longo fundamentalmente do último decénio, é a um retrocesso na concretização do conceito de igualdade que, por efeito de políticas neoliberais, foi substituído pelo conceito de equidade, segundo o qual se deve dar a cada um de acordo com as suas necessidades ou segundo a sua contribuição (Casa-Nova, 2013b)

Há mais de uma década atrás (Casa-Nova, 2002), a propósito do conceito de equidade e da (pretensa) maior abrangência do mesmo em termos do potenciamento de oportunidades de vida, escrevi que o conceito de equidade tem implícito o reconhecimento das

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diferenciado em função daquelas especificidades. Esta definição, remetendo, na prática, para um tratamento mais individualizado, dando a cada um de acordo com as suas necessidades, parece apontar para o exercício de uma maior justiça social. No entanto, chamava a atenção na altura para o facto de a transposição para a prática do conceito de equidade (como substituto do conceito de igualdade), a pretexto do exercício de uma maior justiça social (mas resultando do exercício de uma política neoliberal), poder ter como consequência a negação de direitos consagrados e implícitos no conceito clássico de igualdade, reduzindo e não ampliando o acesso a e o usufruto desses direitos. Como refere Estêvão (2001), o conceito de equidade acentua demasiado as dimensões individualista e produtivista, ambas caras ao mercado já que este tem em conta o princípio de ‘a cada um segundo a sua contribuição’. Com efeito, a aplicação daquele princípio isolado do princípio de igualdade pode ter como consequência a negação da justiça como redistribuição, deixando na pobreza extrema todos os seres humanos que, quer por razões de ordem biológica, quer por razões históricas, quer por razões inerentes aos interesses do mercado, se vêm afastados do mercado de trabalho, impedidos de contribuir para o bem-estar individual e social (Casa-Nova, 2013c).

Por sua vez, o racismo, em todas as suas formas, funcionando frequentemente de forma não consciencializada, fazendo parte de automatismos de pensamento2 e de acção, estabelece mecanismos inibidores do sucesso escolar de muitas crianças e jovens, nomeadamente daqueles que pertencem ao grupo sociocultural cigano, diminuindo as possibilidades de uma integração emancipatória ao nível da sociedade abrangente.