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Algum referencial legal-formal

Sumário e texto da intervenção

3. Algum referencial legal-formal

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu Artigo 26.º, ponto 1, refere explicitamente que “Todos têm direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar e fundamental. O ensino elementar deve ser obrigatório.”6

Embora as Declarações não possuam carácter vinculativo, o facto de a Declaração Universal dos Direitos Humanos ser actualmente subscrita por mais de 184 países, confere-lhe a legitimidade necessária para funcionar como normativo orientador, não só da legislação produzida em cada país subscritor, como dos direitos e das práticas de cidadania inerentes a cada nação.

No que ao referencial legal-formal português diz respeito, a Constituição da República Portuguesa incorpora precisamente o constante na Declaração Universal dos direitos Humanos, ao referir, no seu Artigo 73.º, (Educação, cultura e ciência), pontos 1 e 2, que “Todos têm direito à educação e à cultura” e que “O Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais (…). No seu Artigo 74.º (Ensino), ponto 1, refere que “Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar.”

No que à Lei de Bases do Sistema Educativo diz respeito, o Artigo 2.º, ponto 2, refere que “É da especial responsabilidade do Estado promover a democratização do ensino, garantindo o direito a uma justa e efectiva igualdade de oportunidades no acesso e sucesso escolares. No Artigo 3.º, alínea d), pode ler-se que é dever do Estado “Assegurar o direito à diferença, mercê do respeito pelas personalidades e pelos projectos individuais da existência, bem como da consideração e valorização dos diferentes saberes e culturas.” Ainda no seu Artigo 7.º, pode ler-se que o Estado deve “Assegurar uma formação geral comum a todos os portugueses que lhes garanta a descoberta e o desenvolvimento dos seus interesses e aptidões, capacidade de

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Este texto assume declaradamente uma vertente normativa em termos da acção face a situações de injustiça social. Como referi há uma década atrás (Casa-Nova, 2004), a consciência da impossibilidade de não se ser normativo (já que a premissa “não se deve ser normativo” é, em si mesma, uma imposição normativa) deve levar-nos a reflectir sobre a importância de preconizar uma nova ordem social que, substituindo a existente, dê origem a discursos e práticas que possibilitem a construção de sociedades menos injustas, construindo um caminho potenciador de uma mudança paradigmática: a existência de sociedades de classe média, sem subordinações estruturais, o que significaria uma sociedade de cidadãs e cidadãos críticos, construtores de integrações emancipatórias.

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No original: “1. Everyone has the right to education. Education shall be free, at least in the elementary and fundamental stages. Elementary education shall be compulsory (…)” (Universal Declaration of Human Rights,

Minorias – que escolaridade? A escolarização de crianças e jovens ciganos: entre a inclusão- excludente e a integração subordinada

raciocínio, memória e espírito crítico, criatividade, sentido moral e sensibilidade estética, promovendo a realização individual em harmonia com os valores da solidariedade social.”

Da leitura dos articulados acima transcritos, não resta dúvida quanto à universalidade, obrigatoriedade e gratuitidade do ensino básico, da importância de uma formação geral

comum a todos os cidadãos e cidadãs e da responsabilidade do Estado na sua promoção e

defesa.

Estas são, portanto, premissas a ter constantemente em atenção em qualquer decisão a tomar por órgãos decisores, sejam eles governamentais, escolares, judiciais ou outros. No entanto, para que estas decisões procurem compatibilizar a dimensão legal-formal com a dimensão cultural, importa transformar o Direito enquanto normativo, no Direito enquanto justiça, flexibilizando, sempre que possível e necessário, as Leis vigentes, contextualizando-as.

Neste sentido, do ponto de vista judicial, importa tomar decisões homogéneas no que diz respeito à igualdade de acesso e sucesso escolares (obrigatoriedade de) mas, quando necessário, diferenciadoras no que diz respeito às formas de o conseguir, procurando articular, sempre que possível e necessário, as especificidades culturais com Direitos Humanos fundamentais.

Dentro desta heterogeneidade de possibilidades, inclui-se a frequência da escola pública com a valorização dos diferentes tipos de inteligência: matemático-dedutiva, artística, emocional, etc., criando, no Ensino Secundário, uma heterogeneidade de vias escolares socialmente equivalentes, adequadas às aspirações dos jovens, mas com iguais oportunidades de acesso ao conhecimento produzido nas diferentes ciências; o ensino doméstico, devidamente acompanhado por profissionais; frequência de Centros de Estudos com realização de exames no final de cada ciclo de estudos; eventual construção de turmas apenas de raparigas ou construção e frequência de escolas apenas para raparigas (como vários progenitores ciganos têm reivindicado), mas num currículo que lhes permita aceder ao conhecimento científico.

Embora, enquanto cidadã e investigadora, considere que algumas destas medidas colocam em causa a construção de uma educação intercultural, potenciadora da construção de pontes entre culturas, ou a co-educação, considero também que as possibilidades de acesso ao conhecimento escolar através das ofertas acima referidas, permitem conciliar a diversidade cultural e o acesso a um Direito Humano fundamental, não só para a aquisição de conhecimento científico, como também para o exercício de uma cidadania informada, crítica e responsável.

Caberá a cada decisor/a, devidamente informado/a pelo conhecimento científico produzido na área e pela contextualização das situações, ponderar as medidas a tomar no

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humana, social e cultural que aquela dimensão regulatória também pode (e importa) conter, articulando regulação com emancipação.

Bibliografia citada

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Legislação citada

 Universal Declaration of Human Rights, 1948

 Constituição da República Portuguesa, 2005