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CAPÍTULO II – A ESCRITA DO “EU”

2.3 A AUTORIA

2.3.1 A construção do autor

Diante do todo exposto até aqui, será que podemos definir quem é que narra as histórias de Pagu e Bruna? Podemos identificar o “Eu” expresso nas páginas publicadas como “autobiografias” como realmente tratando-se das autoras empíricas dos textos?

Se observarmos as palavras da autora de Paixão Pagu, parece-nos que devemos reconhecer Patrícia Galvão como narradora da história. Afinal, como já vimos anteriormente, a própria autora declara em seu texto estar contando a história de Pagu, essa que já não existia mais no momento da escrita. Parece que até mesmo ela considerava Pagu uma “doidivanas” e, justamente por isto, em uma espécie de recusa de quem foi, estivesse “matando” esta outra: “Talvez eu tenha uma expressão confusa. Há uma intoxicação de vida. [...] É difícil a procura

de termos para expor o resultado da sondagem. É muito difícil levar as palavras usadas lá dentro de mim” (PAGU, 2005, p. 52). Ou, quem sabe, ela era apenas uma sonhadora que, uma vez desiludida, não tinha mais intenção de deixar aquela outra existir.

Já no caso de Bruna, ou melhor, de Raquel, sabemos que a escrita ocorreu com colaboração, com a ajuda de um nègre, ou seja, ela relatou a história e outra pessoa escreveu – por isso nossa dificuldade em definir aqui a questão. Segundo Lejeune (2008), na autobiografia em colaboração, o nègre deve buscar manter uma relação interpessoal com o diálogo com qual trabalha. Já ficou óbvio que haverá sua intervenção, porém, no momento do registro, este deve apagar essa intervenção e assumir, como se fosse sua fonte, a relação com o leitor (LEJEUNE, 2008, p. 120).

O redator de uma autobiografia em colaboração se encontra, durante a primeira fase do trabalho, nessa posição intermediária de escuta e questionamento. Mas deve, em seguida, renunciar a esse papel. A única posição que poderá então ocupar, se quiser dar dignidade a seu trabalho, será a do romancista. Deve apostar não no distanciamento, mas na identificação. Embebido da fala do modelo de sua história, ele tentará pôr-se em seu lugar para poder escrever como se fosse ele. (LEJEUNE, 2008, p. 121-122)

Neste caso de autobiografia, segundo Lejeune (2008), quando bem sucedido o resultado final dos trabalhos (o texto), podem ocorrer dois problemas: um, o modelo (ou fonte) acreditar que foi ele quem escreveu, quem registrou no papel a história de sua vida (o que por vezes parece ocorrer com Raquel quando questionada sobre a produção do texto); e outro, seu nègre, o redator, acreditar que aquela história, aquela vida, é sua (fato que não temos conhecimento que ocorra com Tarquini). E, assim, ambos se sentem autores únicos, dignos de reconhecimento, daquele texto. Quando, segundo o teórico:

Na verdade, nunca somos causa de nossa vida, mas podemos ter a ilusão de nos tornarmos seu autor, escrevendo-a, com a condição de esquecermos que somos tampouco causa a escrita quanto de nossa vida. A forma autobiográfica dá a cada um de nós a oportunidade de se crer um sujeito pleno e responsável. [...] Somos talvez, enquanto sujeitos plenos, apenas personagens de um romance sem autor. A forma autobiográfica talvez não seja o instrumento de expressão de um sujeito preexistente a ela, nem mesmo um “papel”, mas antes o que determina a própria existência de “sujeitos”. (LEJEUNE, 2008, p. 124)

O problema que encontramos no caso da obra de Bruna Surfistinha é não sabermos ao certo como se deu produção de “seu” texto. Em algumas entrevistas (quando é questionada), ela afirma que teve apenas uma “ajuda” de seu amigo jornalista, Jorge Tarquini

(entrevista concedida a Jô Soares 29), exclusivamente com questões de ortografia (diz não ter sido uma boa aluna). Em outras, já lhe atribui a produção total do texto (Programa, Nada além da verdade, SBT 30). Porém, como já mencionamos, é claro na contracapa do livro: “depoimento a Jorge Tarquini”.

Lejeune (2008) afirma que a autoria só pode ser confirmada depois de assumida, ou, concedida, atribuída por alguém. Ou seja, não basta escrever ou relatar o texto a ser escrito (p. 124). Assim, consideraríamos Surfistinha autora de seu primeiro livro e Pacheco, do segundo?

O teórico ainda chama a atenção para outros agentes externos preponderantes na composição da autobiografia composta em colaboração, como: o papel dos editores, por exemplo, e seus estudos quanto ao mercado a ser explorado. Estes que se tornam mais que “simples engrenagens de transmissão, mas, em geral tomam a iniciativa e assumem uma responsabilidade considerável quanto à existência e à própria forma do livro” (LEJEUNE, 2008, p. 125). Assim, o “verdadeiro” autor, tanto pode ser considerado “o empresário que se orienta pela demanda do público e providencia o que poderá satisfazê-la” (p. 126) quanto “o próprio público cujo desejo e credulidade complacente – pois se deixa enganar desde que se usem luvas de pelica – dão a todos os livros um peso (a autoridade) que não teriam sem essa mediação.” (p.126). O nègre sempre terá sua participação posta em segundo plano: seja (muitas vezes) omitida ou exposta claramente como secundária, em um prefácio, por exemplo. A ele pode até ser concedido um certo lugar de destaque, mas, nunca aquele a que muitos almejam: a assinatura. A sua participação junto àqueles considerados “não pertencentes do ramo” (não escritores), quando exposta, pode até ser muito bem aceita (quando não, simplesmente ignorada) (p.127).

A pessoa gloriosa, ou exemplar, deve ser um sujeito pleno e completo. Se Deus é, por definição, completo, deve possuir em seu mais alto grau, todos os atributos possíveis, inclusive a existência. Da mesma forma desde o momento em que se revela sua vida em um livro, o herói deve possuir a escrita ou, ao menos, sua representação simbólica: a assinatura. O fato de que essa escrita se faça carne por intermédio da pena de um outro tem pouca importância , desde que o leitor tenha fé. “Leia, isso é a minha vida.” O importante é a presença real do corpo de Cristo na hóstia. Obviamente, sempre há um padeiro envolvido na história. (LEJEUNE, 2008, p. 128)

29

* A entrevista foi enviada ao site You Tube em duas partes, porém, a primeira parte – que é onde Surfistinha é questionada a esse respeito -, não está mais disponível. Por isso não conseguimos colocar aqui esse trecho. 30http://www.youtube.com/watch?NR=1&v=rRgH_ztgdgQ

Como pudemos observar pelos apontamentos de Foucault (2009) com respeito à escrita dos “excluídos” em A vida dos homens infames, o que se torna realmente relevante para a escrita do subalterno é sua expressão. A publicação, a glória, o “estrelato”, pode vir como “lucro”. Ou seja, não importa quem “fala”, mas sim, que este alguém “se fale”. E, neste sentido, que importa se é Bruna, Raquel ou Tarquine quem escreve? A “fala” é da pessoa contida no corpo em que habitam Bruna e Raquel, ou seja, de uma subalterna, de uma excluída que “ganha voz”, justamente por sua condição. Semelhante ao que ocorre com Pagu: apesar de “conquistar sua voz”, diríamos, com um pouco mais de facilidade, devido ao momento de transformações culturais e irreverência em que viveu. Apesar de sua condição de mulher, Pagu encontrou um meio (o dos escritores modernistas) em que sua voz (cheia de ousadia e irreverência) tornou-se interessante e lhe “permitiram falar”, mesmo que depois ela tivesse que nergar-se.

CAPÍTULO III – PAGU OU PATRÍCIA?