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A escrita como formação pessoal

CAPÍTULO II – A ESCRITA DO “EU”

2.1 O PROCESSO DA ESCRITA DE SI

2.1.1 A escrita como formação pessoal

Eis uma coisa a observar para se ter a certeza de não pecar. Que cada um de nós note e escreva as acções e os movimentos de nossa alma, como que para no-los dar mutuamente a conhecer e que estejamos certos que, por vergonha de sermos conhecidos, deixaremos de pecar e de trazer no coração o que quer que seja de perverso. Pois quem consente ser visto quando peca, e após ter pecado, não prefere mentir para ocultar a sua falta? Não fornicaríamos diante de testemunhas. Do mesmo modo, escrevendo nossos pensamentos como se os tivéssemos de comunicar mutuamente, melhor nos defenderemos de nossos pensamentos impuros por vergonha de os termos conhecido. Que a escrita tome o lugar dos companheiros de ascese: de tanto enrubescermos por escrever como por sermos vistos, abstenhamo- nos de todo o mau pensamento. Disciplinando-nos dessa forma, poderemos reduzir o corpo à servidão e frustrar as astúcias do inimigo.

(SANTO ATANÁSIO) Depois de Michel Foucault dedicar-se a um estudo aprofundado sobre a história da sexualidade, na década de 80, outra matéria passa a instigá-lo – a problematização dos processos de subjetivação do sujeito a partir “do entendimento de si”. Este posterior estudo leva o autor à observação do sujeito em sua relação consigo e com os outros e,

consequentemente, ao tema de uma conduta de vida. Segundo o autor, a Antiguidade - por propiciar pensar as formas de subjetivação enquanto práticas de liberdade - foi seu ponto de partida para tais estudos, por conta da decadência em que se encontrava a moral cristã no momento de suas observações (FOUCAULT, 1984 apud MOTTA, 2004).

O autor (1980-1981) afirma que os séculos, I e II, apresentam o período de maior desenvolvimento de uma “arte da existência”, constituído pelo que ele chama de “técnicas de si”- que seriam um conjunto de procedimentos relacionados ao domínio de si sobre si, através dos quais propiciavam-se a fixação, a manutenção ou até a transformação das identidades dos indivíduos em função de determinados objetivos (FOUCAULT, 1980-1981 apud DAHER, 1997, p. 109).

Em outro texto de Foucault, A hermenêutica do sujeito (2006), encontramos o episódio em que Serenus, um jovem provinciano que vai a Roma com o intuito de educar-se. Ele procura Sêneca, seu tio e um sábio, para pedir-lhe conselhos sobre qual filosofia deveria seguir para alcançar seu objetivo. Sêneca lhe apresenta dois caminhos: a religião (de cunho mais popular) e o cuidado de si (de cunho erudito).

Será que poderíamos concluir assim que ambos os “caminhos” instruem o indivíduo pela confissão? Podemos observar que, uma vez havendo a confissão, na prática sacramental cristã, o indivíduo deveria buscar o crescimento através da vergonha causada pela exposição de seus pecados, de suas falhas. Enquanto que na prática do cuidado de si, o objetivo seria o autoconhecimento, alcançado através da técnica da “produção da verdade”, capaz de levá-lo à subjetivação e, assim, à transformação deste indivíduo em sujeito.

Segundo Foucault (2009), comparando o ato da escrita de si - que é o que Patrícia Galvão empreende em suas páginas memorialísticas - com a prática da ascese cristã descrita em Vida e conduta de nosso pai Santo Antônio, de Santo Atanásio: “o constrangimento que a presença alheia exerce sobre a ordem da conduta, exercê-lo-á a escrita na ordem dos movimentos internos da alma” (FOUCAULT, 2009, p. 131). Ou seja, o desnudamento total de seu ser, este que só poderia vir à tona com o olhar de fora, com o excedente de visão 10, o

10

Mikhail Bakhtin chamou de excedente de visão o princípio com o qual elaborou o conceito de exotopia: “Pelo

princípio da exotopia, eu só posso me imaginar, por inteiro, sob o olhar do outro; pelo princípio dialógico, que, em certo sentido, decorre da exotopia, a minha palavra está inexoravelmente contaminada do olhar de fora, do outro que lhe dá sentido e acabamento” (TEZZA, 1995). Segundo Bakhtin (1992), o “acabamento” do homem é

limitado por ele mesmo; esse processo somente ocorre de fora para dentro, depende do outro que o observa, o que leva a uma dependência em relação a esse olhar e a essa voz do outro. Assim, temos um horizonte que só pode ser completado a partir de outro horizonte, integrando a visão que nos falta sobre nós mesmos: “é o

olhar do outro. Afinal, há que se atentar que, neste momento, a Patrícia que analisava sua história e a escrevia não era mais a mesma Patrícia que viveu aqueles acontecimentos. No instante em que escrevia, esta Patrícia era um outro.

Importante lembrar que, no período analisado por Foucault - a Antiguidade -, a produção da subjetividade (a moral do indivíduo) se dava pela interiorização de valores e experiências, enquanto que, dentro da cultura cristã, o mesmo processo ocorria a partir da crença da existência prévia de uma interioridade que deveria apenas ser conhecida e controlada. Sendo assim, a partir das observações de Foucault (2006), percebemos que a ascese (a confissão) cristã é marcada por um apagamento de si através da vergonha, enquanto que, a ascese filosófica (erudita), visa à constituição de si mesmo, ou seja, o autoconhecimento. Porém, Foucault percebe a prática da confissão como sendo um exercício importante tanto para a religião quanto para o paganismo.

Foucault (2009), em seus estudos sobre a “cultura de si”, praticada na Antiguidade, encontra então no modo de subjetivação antigo/clássico, a ideia e a prática de um falar de si através da escrita. Essa espécie de confissão particular substituía o olhar do outro, e era uma forma disciplinadora de ações e pensamentos. O extrato do texto de Santo Atanásio, citado no início deste tópico, segundo Foucault, seria “um dos mais antigos que a literatura cristã nos terá deixado sobre este assunto da escrita espiritual” (FOUCAULT, 2009, p. 131).

A escrita pode ser observada neste momento como um exercício da formação pessoal. Além de trazer à memória os conhecimentos já adquiridos para serem reforçados e analisados é também uma forma de conservá-los. Tal processo também exercia a função de transformar discursos considerados “verdades” em ação. E, assim, surgem nos séculos I e II duas formas de escrita: os hypomnemata (prática de tomar notas sobre leituras, conversas, reflexões ouvidas, ou feitas pelo próprio indivíduo) e a correspondência (um exercício do Eu, que se utiliza da matéria dos hypomnemata, atuante não só sobre aquele que envia quanto sobre quem recebe).

outroque nos completa, que vê o que não podemos ver, assim como nós vemos no outro o que ele próprio não pode ver” (Bakhtin apud Tezza, 2001, p. 284).