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A construção inconclusa da sociedade democrática brasileira

O golpe de 64, segundo Cury (2002), interrompeu as promessas de democratização social e política do país. As relações autoritárias instituídas estabeleceram uma forma corrompida de gestão no interior da escola por meio do “vigiar e punir” valendo-se de comandos verticais. As ações do Estado ditatorial geraram um espaço público mais próximo do privado e secreto, e estabeleceram como pressupostos o temor, a obediência e o dever, opondo-se a relações de respeito, diálogo e direito. No processo de contestação ao regime militar, a elaboração de um novo texto constitucional, que consagrasse os princípios democráticos, foi impulsionada pela sociedade. No entanto, segundo o autor, “[...] Isto não significa que a construção da ordem democrática tenha se estendido do campo jurídico para o conjunto das práticas sociais e políticas” (CURY, 2002:167).

Os educadores, representados por diversas entidades de caráter acadêmico e cientifico, e representantes de diversas categorias profissionais, organizaram resistência à política educacional tecnicista imposta pelos governos militares. Seus ideais foram expressos nas Conferências Brasileiras de Educação (CBE), ocorridas entre 1980 e 1991.

Para Mendonça (2000) o processo de conquistas da educação foi favorecido pela “redemocratização” vivida pela sociedade brasileira nos anos 80. A eleição de governadores estaduais de oposição em 1982, especialmente no Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Paraná possibilitou que as secretarias da educação destes estados fossem ocupadas por educadores identificados com as causas da democratização do ensino público. A ação destes educadores conduziu seus sistemas a experiências de participação. Os Conselhos Estaduais da Educação também foram ocupados por educadores que tentaram tornar este espaço referência no processo de mudança dos sistemas de ensino.

Como governador Franco Montoro vincula-se ao processo de “redemocratização” do início dos anos 80, com uma visão muito particular do que deveria ser essa democratização. Frente ao governo paulista (1983-1986), segundo Lima e Viriato (2000) 13, inicia-se uma política de descentralização com ações como

os programas: de Municipalização da Merenda Escolar, de Construções Escolares, de Transporte de Alunos, de Formação Integral da Criança (PROFIC) e do Ciclo Básico.

O conceito de participação que permeava a ação nas políticas públicas, segundo Montoro (1991), era a que “[...] abrange a atuação organizada e responsável dos múltiplos setores da sociedade na solução de problemas coletivos e na produção do Bem Comum”. (MONTORO, 1991:12). A participação é instrumento de promoção humana e desenvolvimento, a indicação de participação relacionada ao plano local, de trabalho, educação e política é um modo restritivo, pois existe também a participação das empresas, da comunidade cultural (científica, tecnológica e artística) e de órgãos do próprio Estado na tarefa da promoção do 13Trabalho apresentado na 23ª reunião anual da ANPED no GT 5 – O Estado e a política.

desenvolvimento, isto é, um contexto amplo de participação. Neste ganha importância a chamada “consertação social” realizada por meio de pactos sociais. Também é inegável para o autor que são os “corpos intermediários” entre Estado/indivíduo que constituem os principais instrumentos de participação. Os níveis de participação se dão em participação na informação, relativo ao dever de transparência da administração e na aplicação de recursos públicos; participação na fiscalização ou controle da gestão em organismos governamentais e não governamentais; participação no levantamento de problemas e soluções; participação na execução e participação nas decisões. “[...] é através do diálogo que a pessoa toma consciência de sua situação e de seus problemas e é, também, através do diálogo que o grupo social se constitui como realidade sócio-cultural”. (MONTORO, 1991:16). Para ele, as concepções individuais afastam a presença do Estado, limitam a vida social a competições, pretendem impor ao indivíduo determinações do poder político, enquanto que o caminho democrático por excelência é o do diálogo “[...] que constitui a própria essência da participação e o instrumento insubstituível do desenvolvimento político, econômico, social e cultural”. (MONTORO, 1991:19).

Desta forma, a participação social abrange múltiplas modalidades dos setores da sociedade civil, na solução de problemas coletivos. Ao lado do poder público, em processo de desenvolvimento local, regional e nacional, temos a ação de empresas, organizações de agricultura, comércio, indústria, grandes organizações profissionais, organizações religiosas como a CNBB, sociedade de bairros, movimentos sociais, partidos políticos, enfim a sociedade civil organizada no debate e solução dos problemas da coletividade, que participa em diferentes níveis, local, empresarial. O governo Montoro propunha uma participação capaz de gerar uma “consertação

social” através de “pactos sociais” entre o mercado livre e competitivo e estatismo burocrático e centralizador, com o objetivo de evitar o “caos” e assegurar a governabilidade do país em crise.

Para Martins (2003) o Estado de São Paulo estava realizando experiências de descentralização e participação no governo ao destacar na educação a municipalização da merenda escolar; a municipalização das construções escolares; a descentralização na compra de material escolar; a elaboração do Estatuto do Magistério, por meio de mecanismos democráticos de participação de todas as entidades representativas do professorado e da educação do Estado; medidas de descentralização administrativa e a criação do Conselho de Escola deliberativo e outros colegiados.

Mas não foi apenas a ação do governo de oposição que impulsionou as decisões para o processo de democratização na área educacional. No histórico da Apeoesp constatamos que este governo não esteve imune à ação de luta e resistência dos educadores. Em 1984, enfrentou greve de três semanas, quando foram conquistadas cinco referências que haviam sido retiradas pelo Governo Maluf. .14

Em 1985, por meio da ação e da participação dos educadores, se torna possível a conquista de um novo Estatuto do Magistério que possibilitou, entre outros: o fim da avaliação de desempenho; a introdução da promoção automática a cada dois anos; 10% de adicional noturno; 20% de horas-atividade; contagem de

14 Instituída pela Lei Complementar Nº 180, de 12 de maio de 1978, que trata do Sistema de

Administração de Pessoal relativo aos funcionários públicos civis e servidores da Administração Centralizada e da Autarquia do Estado, a referência é símbolo indicativo do nível de vencimentos fixado para o cargo ou função-atividade; sendo que cada uma possui valores fixados definidos como grau, e o padrão do servidor público é determinado pelo conjunto da referência numérica e do grau.

tempo em dias corridos; valorização da educação continuada por meio de atribuição de pontos por cursos; duas referências para mestrado e doutorado; afastamento com vencimentos para elaboração de tese; férias proporcionais para os ACTs; pagamento das aulas excedentes pelo valor do padrão; garantia de jornada para o celetista, hora-atividade e direito a férias de acordo com o calendário escolar para o professor readaptado, promoção por antiguidade e Conselho de Escola deliberativo.

Já, em 1986, os educadores realizaram um Ato Público com 30 mil professores. Após três semanas de greve e outras formas de pressão, o resultado foi a conquista de seis referências, 25% de reajuste e concessão do gatilho salarial a todo o funcionalismo. As conquistas democráticas do período foram resultado de embates e negociações entre governo e movimento organizado dos educadores.

A efervescência social não ficou restrita ao estado de São Paulo. Ao considerar a organização da sociedade civil da época, Rossi analisa:

[...] em 70/80, as lutas sociais tornaram-se mais autônomas e mais numerosas (inclusive a dos professores das redes públicas), quando o eixo de decisão ficou concentrado nas assembléias e comitês de greves, houve um duplo alerta aos capitalistas [...] (ROSSI, 2001:100).

Para a autora, este duplo alerta sinalizava que os conflitos estavam fora de controle, e que desta forma a classe trabalhadora poderia inaugurar uma nova ordem social, mas sinalizava também que trabalhadores auto-organizados poderiam explorar a sua inteligência e a sua capacidade de auto-organização para garantir um trabalho cooperativo e coletivo.

Analisando este contexto, Rodrigues (1992), afirma que a pressão dos movimentos sociais foi fundamental para garantir a abertura, mas para garantir o avanço da democracia era necessária uma profunda reforma nos mecanismos de

decisão política, criando canais efetivos de participação da classe trabalhadora. No entanto, gradativamente, este processo foi sendo reduzido ao voto e às manifestações públicas.

Como reação dos grupos dominantes, os conflitos e a auto-organização dos trabalhadores deveriam ser controlados e conduzidos. A inteligência e capacidade de auto-organização para trabalhar cooperativa e coletivamente poderiam ser assimiladas pelo capitalismo para diluir conflitos e oposições. Desta forma, a repressão direta praticada pelos regimes ditatoriais brasileiros foi sendo substituída por uma nova estrutura de poder que buscava reduzir custos e atritos sociais.

Neste embate entre as forças sociais e os grupos dominantes, realizava-se o processo de “abertura democrática”, conquista da sociedade brasileira, tendo como fatores fundamentais o retorno do pluripartidarismo e a Lei de Anistia.15

Segundo Rodrigues (1992), com o slogan histórico da transição, militares, burguesia e a maioria dos políticos concordavam que a abertura política deveria se dar nos limites institucionais, a fim de se garantir a passagem do regime ditatorial para o regime "democrático” de forma lenta, gradual e segura, substituindo dispositivos de exceção por outros que garantissem participação popular dentro dos limites da lei.

No Congresso Nacional é apresentada a emenda "Dante de Oliveira" que previa a realização de eleições diretas para presidente e ganha as ruas uma campanha em nível nacional, o movimento "Diretas Já". Com a Emenda rejeitada, o extinto Colégio Eleitoral elege o presidente Tancredo Neves, candidato pela Aliança Democrática. Sua morte, no entanto, levou à Presidência da República, seu vice, 15

Sobre este assunto consultar a seguinte obra: GERMANO, José Wellington. Estado militar e educação no Brasil (1964-1985). São Paulo: Cortez, 1993.

José de Ribamar Sarney.

Para Frigotto (2003), apesar de todo esforço para democratização da sociedade, a travessia rumo à construção de uma sociedade democrática ficou inconclusa a partir da eleição de Collor, quando o Estado brasileiro se submete à Agenda Internacional obedecendo às estratégias de desregulamentação, descentralização, autonomia e privatização, substituição de “direitos”, rotulados como “privilégios”, para não inibir as leis de mercado. Para atender às exigências destas estratégias, o Estado deve ser mínimo no sentido de atuação no espaço público e funcional ao mercado. O mercado torna-se, neste contexto, regulador até de direitos. Para o autor, neste contexto histórico, a educação brasileira que rompeu com as leis da ditadura militar, conflita-se agora com a ditadura da ideologia do mercado, em embates como os que poderemos analisar a seguir, na construção da CF/88, da LDBEN/96 e do PNE.