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Gestão democrática e o contexto social e político brasileiro

A escola pública brasileira está inserida em um contexto social e político marcado por conflitos e contradições. Nas relações estabelecidas com esta estrutura, são construídos os conceitos e significações das “palavras sagradas”, analisadas no primeiro capítulo deste estudo.

Nesta construção histórica, a educação brasileira se caracterizou, segundo Mendonça (2000), por uma democratização tardia com predomínio do ideário liberal e de uma política autoritária. O autor entende que o processo de democratização da educação vai sendo escrito de um lado pela REGRA, definida como elemento formal que decorre do sistema normativo institucional, e de outro pelo JOGO, construído nas relações estabelecidas neste contexto como um conjunto de circunstâncias históricas, políticas e sociais que caracterizam a ação política de todos os envolvidos com a institucionalização e com o funcionamento da gestão democrática do ensino público.

Consideramos também que o nascimento formal do Conselho de Escola corresponde ao campo da regra, já a sua trajetória, como um espaço consagrado à participação dos atores da educação na escola pública paulista, faz parte do jogo

estabelecido nas diversas conjunturas, por meio das tensões e conflitos que ai se estabelecem.

Para o autor acima citado, pensar a gestão democrática envolve a necessidade de uma abordagem teórica sobre o Estado, que se torna essencial para a análise do exercício do poder, que combinou teses de liberalismo com o caráter patrimonial do Estado brasileiro, numa tensão entre os princípios liberais e a estrutura patrimonial. Considera como contradição inicial o fato de a gestão democrática, inscrita como princípio constitucional e desta forma, obrigando os sistemas a adotá-la como diretriz política, ter sido instituída como política por um estado marcado por ordenamentos patrimonialistas. A base para a construção do Estado patrimonialista pode ser refletida pela caracterização da sociedade brasileira.

Chauí (2001) analisa que o contexto social brasileiro conserva uma “cultura senhorial” marcada por características peculiares, marcas históricas que não foram superadas. Como marca significativa desta sociedade temos a hierarquização do espaço social que cria uma sociedade verticalizada, característica de uma estrutura autoritária com raízes históricas construídas na desigualdade, exclusão e violência. A estrutura autoritária da sociedade revela-se na organização núcleo-familiar; no princípio liberal de igualdade formal, onde as diferenças são vistas como inferioridade, ou muitas vezes monstruosidade; nas relações hierárquicas verticais; na ação das instituições sociais que alimentam a idéia de subalterno, naturalizando a desigualdade e na relação política de clientelismo, que bloqueia a prática de representação e participação.

Neste contexto, a lei tem muitas vezes caráter de privilégio e repressão, sendo inócua porque é descontextualizada e produzida negando a soberania da sociedade. Segundo a autora, estas leis são feitas para serem transgredidas.

Considera que quanto maior for o espaço para a participação social na construção de normas, maior será a possibilidade de que estas se efetivem.

A autora considera ainda outras características desta estrutura autoritária que nos levam a entender a organização da sociedade brasileira: poder judiciário distante, secreto, agindo muitas vezes como representante de privilégios; indistinções entre o público e o privado, onde fundos públicos são usados sem percepção de bem comum; uma política oligárquica onde a corrupção é vista como natural. A estrutura política brasileira, fruto desta “cultura senhorial” tem como procedimento a sociedade de consumo e do espetáculo. Desta forma, o político cria uma imagem da qual o cidadão é o consumidor, a relação que se estabelece entre o cidadão e o governante é reduzida à esfera privada. Segundo a autora, a sociedade brasileira:

[...] Têm na indistinção entre o público e o privado a forma de realização da vida social e política (...) essa indistinção é reforçada pela indústria política, com o emprego dos procedimentos da sociedade de consumo e de espetáculo e que, para vender a imagem do político, e reduzir o cidadão à figura privada do consumidor, produz a imagem do político enquanto pessoa privada, apresentando suas características corporais, preferências sexuais, culinárias, literárias, esportivas, hábitos cotidianos, vida em família, bichos de estimação [...](CHAUI, 2004:3).

A garantia de uma sociedade ”ordeira e pacífica” , como analisamos na concepção de democracia dominante, é construída escamoteando-se os conflitos e as contradições tidos como desordem e crise, isto é possível, pois a esfera pública da opinião é bloqueada e a informação passa a ter mão-única, utilizada como instrumento de persuasão e inculcação das ideologias desmobilizadoras. Nesta sociedade as contradições e os conflitos são sinônimos de perigo para a estrutura

do poder, por isso devem receber como respostas: a repressão para a camada popular e para o opositor, o desprezo e a desqualificação.

Em outras palavras, a classe dominante brasileira é altamente eficaz para bloquear a esfera pública das ações sociais e da opinião como expressão dos interesses e dos direitos dos grupos e das classes sociais diferenciadas e/ou antagônicas, através do uso da mídia monopolizando informação e de outro definindo consenso através do discurso do poder. (CHAUI, 2001: 93).

Neste tipo de sociedade, as diferenças são transformadas em desigualdades; as relações são de mando e obediência; não se reconhece no outro o sujeito de direitos (processo de “coisificação”). A sociedade mantém relações como de parentesco e compadrio, e o tratamento dado aos desiguais é de clientela, tutela, cooptação; o que marca a relação social é a opressão física ou psíquica. A idéia de que o autoritarismo é um fenômeno apenas político, encobre o autoritarismo da própria sociedade.

Os traços mais marcantes dessa sociedade autoritária são: a igualdade formal dos indivíduos perante a lei; as divisões sociais naturalizadas como inferioridade natural; as relações privadas de mando/obediência e a recusa de operar com direitos civis. Permanece a indistinção entre o público/privado, produzida historicamente, marcada pela relação de clientela/tutela. Como resultado desta indistinção, temos a corrupção com fundos públicos, o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado. Esta característica é essencial para qualificar o Estado brasileiro como patrimonialista, pois, segundo Mendonça (2000), todas as vezes que o direito de origem puramente político é tratado como direito privado, temos uma dominação patrimonial.

Ao fazer uso da concepção weberiana para definir tipos de Estado, o autor afirma que este pode ser contratualista, que corresponde aos modelos existentes na Europa ocidental, herança da tradição feudal que ensejou o moderno parlamentarismo e patrimonial, isto é, com poder centrípeto, tendência patriarcal sobreposta às forças sociais. Na Europa, um movimento fundamental para criação do Estado Moderno foi a despatrimonialização e criação da burocracia como expressão da dominação legal. Já o Brasil enfrentou dificuldades e condições adversas que retardaram o surgimento desse aparato racional e, ao mesmo tempo, a construção do estado brasileiro foi marcada pela presença de grupos privados.

Um conceito importante para entender o Estado Patrimonial é o da dominação tradicional que deriva do patrimonialismo, isto é, está baseada na crença cotidiana da “santidade” das tradições vigentes. A dominação tradicional apresenta um quadro administrativo de servidores pessoais e não-públicos, que apresentam fidelidade pessoal ao senhor. Assim, a obediência se dá à pessoa ungida pela tradição. As ordens são “legítimas” de dois modos: pelo conteúdo e livre arbítrio do senhor “sultanismo” e, pelo servo que se apropria de rendas pelo senhor, isto é, “se na dominação legal o funcionário recebe salário pelo seu trabalho, na dominação tradicional, o servidor obtém o seu sustento por alimentação na mesa do senhor...” (MENDONÇA, 2000:47). Assim, o autor define patrimonialismo como “forma de organização social baseada no patrimônio [...]” (MENDONÇA, 2000:50), inspirado na economia/poder doméstico e na autoridade santificada pela tradição. No Estado patrimonialista ocorre à satisfação das necessidades pessoais, ordem privada, e os servidores são selecionados na base da confiança pessoal e atuam por dever e respeito à obediência.

Nesse Estado o poder político é apropriado como instância privada, criando confusão na relação da coisa pública e da coisa privada, esta indistinção dificultou a instalação da ordem legal burocrática. O estamento, como forma de organização do quadro administrativo, colaborou para aprofundar a separação entre estado e sociedade, “o Brasil seria, dessa maneira, uma forma patrimonial-burocrática com um estamento atrelado ao Estado, dele se apoderando para dominar a sociedade” (MENDONÇA. 2000:58). Neste modelo de Estado o poder político é entendido como privado o que reflete na sua delegação, sendo esta recebida também como propriedade particular. Ainda segundo o autor, entre as características do Estado Patrimonial, a que mais se relaciona contraditoriamente à tentativa de construção da gestão democrática é o fato de o Estado constituir-se mais forte que a sociedade, característica histórica do estado brasileiro. É a ação de uma burocracia pesada sobre uma sociedade civil pouco articulada. Como instrumentos de mudança, tanto a democracia quanto a gestão democrática são fins a serem alcançados. Processos a serem construídos em meio a contradições, devido à existência de um estado de fortes marcas patrimonialistas.

As marcas históricas da sociedade com “cultura senhorial” e o Estado Patrimonialista ganharam facetas novas no processo de globalização mundial. Esse processo caracterizado pela formação de um mercado unificado e global que desconsidera os estados nacionais e implanta mercados sem pátria afeta a soberania do Estado-nação.(cf. Mendonça, 2000). Neste processo, temos a diminuição do papel do estado no atendimento a demandas sociais, em função da lógica do mercado, porque atua como regulador das ações econômicas.

Segundo Chauí, a partir da década de 90, o Neoliberalismo brasileiro ampliou o abismo da desigualdade social. Do lado econômico não necessita incorporar

pessoas ao mercado de trabalho e consumo, operando com o desemprego estrutural, e do lado político garantiu a ampliação do espaço privado, com a privatização do público pelo abandono de políticas sociais. 12

[...] a política neoliberal recrudesce a estrutura histórica da sociedade brasileira, centrada no espaço privado e na divisão social sob forma de carência popular e do privilégio do dominante. (CHAUI, 2001:94).

Para Mendonça (2000) o papel do Estado no cenário atual é de incompatibilidade capitalismo/democracia, pois os programas de ajuste neoliberal atingem a educação e suas políticas públicas ao lançar mão de medidas autoritárias, restritivas da democracia, e ao provocar o esvaziamento do poder político. A política da descentralização, como concessão de autonomia controlada a órgãos locais, pode ser parte da nova lógica do capital. O autor estabelece uma analogia com os processos de descentralização e autonomia dos sistemas públicos de ensino, entendendo que a autonomia controlada pelo poder central é utilizada nas unidades básicas para operacionalizar ações concebidas de forma centralizada.

[...] na verdade, a participação e a distribuição de poder que se vislumbram pela criação de pequenas estruturas descentralizadas e autônomas são a aparente democracia de um mecanismo concentrador de poder em alguns poucos pólos que detêm o controle efetivo das políticas, das informações, dos padrões a serem estabelecidos e dos recursos. (MENDONÇA, 2000:71).

Ao traçar a estrutura social e política historicamente construída no Brasil, bem como o recrudescimento dos aspectos autoritários nas últimas décadas no processo de implantação de políticas neoliberais, é possível refletir que neste contexto a ação 12Sobre este assunto consultar Carlos Montano: Terceiro setor e a questão social.

da colegialidade pode ser limitadora da dominação, por possibilitar a divisão de poderes. No entanto, a GD não está consolidada apenas por constar da legislação, mas encontra-se em processo de construção. O Conselho de Escola vivencia em seu cotidiano todas as contradições existentes neste contexto social e político.