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A partir de sua experiência como pediatra, atendendo a um grande número de crianças, Winnicott (1971/1984) constatou a importância de se considerar a dependência do bebê aos cuidados do ambiente como fundamentais para a constituição do psiquismo infantil. Portanto, ele postulou a importância de se avaliar a influência dos fatores ambientais na saúde psíquica dos indivíduos e, consequentemente, reconheceu que a prática deveria incluir a avaliação ambiental para efetuar-se um diagnóstico completo em psiquiatria. Sendo assim, este autor destacou uma modalidade técnica de atendimento breve que incluía a família como auxiliar no tratamento infantil, a saber: a Consulta Terapêutica (CT). Nesse contexto, a ideia fundamental da técnica foi proporcionar à criança um espaço de autoexpressão abrangendo entrevistas com os pais seguidas de orientação.

As CTs se constituem numa possibilidade de avaliação e intervenção tendo em vista a importância das primeiras sessões nas quais há uma comunicação significativa entre paciente e terapeuta. Essa comunicação tem como base o momento de pedido de ajuda do paciente que anseia encontrar nesse espaço com quem o atende o objeto necessitado para a superação da sua dificuldade. A comunicação entre paciente e terapeuta ocorre em um nível verbal e não- verbal (por meio da fala, do brinquedo, dos desenhos). Nesses momentos, emergem aspectos essenciais da vida do paciente que estão relacionados ao motivo da consulta dos quais ele não tinha consciência. Assim, na primeira entrevista o paciente mostra-se disponível para trazer o máximo de informações sobre si mesmo (Winnicott, 1965/1994).

No intuito de facilitar a comunicação com a criança, Winnicott (1964-1968/1994) utilizava o Jogo de Rabiscos (JR) como uma técnica durante a realização das CTs. O JR consistia em uma forma de entrar em contato com o paciente, utilizando lápis e papel. “Vamos jogar alguma coisa. Sei o que gostaria de jogar e vou lhe mostrar”. Há uma mesa entre a criança e o terapeuta, com papel e dois lápis. Primeiro ele apanha um pouco de papel e rasga as folhas ao meio, dando a impressão de que o que estão fazendo não é freneticamente importante e, então, começa a explicar. Diz: “Este jogo que gosto de jogar não tem regras. Pego apenas o meu lápis e faço assim...”. Ele fecha os olhos e faz um rabisco às cegas. Prossegue com a explicação, dizendo: “Mostre-me se se parece com alguma coisa a você ou se pode transformá-lo em algo; depois, faça o mesmo comigo e verei se posso fazer algo com o seu rabisco”. “Isto é tudo o que existe a título de técnica, e tem-se de enfatizar que sou totalmente flexível mesmo neste estágio muito inicial, de maneira que se a criança quer desenhar, ou conversar, ou brincar com brinquedos, ou fazer música ou traquinagens, fico livre para adaptar-me aos desejos dela” (p. 232).

Ao contrário de jogos com regras, sua principal característica é a flexibilidade. Destarte, no jogo, o terapeuta faz um rabisco sem propósito, que pode ser transformado pelo paciente em um desenho. Em seguida, o paciente faz o seu rabisco e o terapeuta pode transformá-lo em outro desenho e assim por diante. Ao longo dessa técnica o paciente escolhe se prefere desenhar sozinho, nomear os rabiscos, em vez de produzir ativamente transformações gráficas, ou parar o jogo e conversar. Dessa maneira, o JR é mais um recurso que pode ser utilizado durante as CTs (Winnicott, 1964-1968/1994).

É um jogo que duas pessoas quaisquer podem jogar, mas geralmente, na vida social, o jogo rapidamente deixa de ter significado. A razão por que este jogo pode ter valor para a consulta terapêutica é que o terapeuta utiliza os resultados de acordo com o seu conhecimento sobre o que a criança gostaria de comunicar. É a maneira pela qual o material produzido no ato de brincar ou jogar é utilizado que mantém a criança interessada (Winnicott, 1964-1968/1994, p. 231).

Cabe destacar que a brevidade do número de sessões nas consultas (entre uma e três) teve um motivo pragmático para Winnicott (1962/1983). Ele estava preocupado com a grande demanda de crianças que necessitavam atendimento em comparação com a escassez de profissionais para atendê-las. Dentro desse contexto, referiu a importância de se levar em conta as condições socioeconômicas dos pacientes como elemento de distinção entre as CTs às práticas psicanalíticas. Ao tecer comparações entre tais modalidades, o autor revelou que “Em análise se pergunta: quanto se deve fazer? Em contrapartida, na minha clínica o lema é: quão pouco é necessário ser feito?” (p. 152). Nesse sentido, pode-se dizer que há diferenças de variações da técnica. No entanto, Winnicott (1971/1984) sustenta que para realizar as CTs

o profissional deve ter uma formação analítica incluindo análise pessoal e experiência em tratamentos psicanalíticos prolongados.

As CTs caracterizam-se por ser um procedimento terapêutico eficaz e econômico, servindo tanto como instrumento de pesquisa dos mecanismos primários do desenvolvimento, quanto como elemento de diagnóstico. Durante as consultas a criança tem a oportunidade de expressar suas necessidades, conflitos e tensões. O terapeuta, por sua vez, a compreende e realiza intervenções a partir das experiências da dupla. Deste modo, é possível realizar um diagnóstico dinâmico norteador das orientações aos pais. Após, são combinados retornos esporádicos da criança para fins de acompanhamento do caso. É de suma importância a realização do diagnóstico relativo ao meio ambiente (situações familiares e sociais, fatores econômicos) no tratamento das crianças (Winnicott, 1971/1984).

Traçando-se um paralelo entre a concepção winnicottiana de mãe suficientemente boa e o trabalho do terapeuta (Loparic, 1996; Dias, 1998, 1999), inclusive nas CTs, pode-se dizer que esse profissional tem função semelhante à da mãe em estado de devoção no cuidado de seu bebê. De acordo com a teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott, na saúde o bebê constrói gradualmente a realidade compartilhada graças aos processos de apercepção e ilusão. Quando a mãe está a serviço do objeto subjetivo necessitado pela criança ocorre o fenômeno da ilusão que favorece a criatividade originária, permitindo no futuro que as experiências de vida do bebê se tornem pessoais. O terapeuta deve ser capaz de favorecer o processo de ilusão por meio de sua postura de confiabilidade e previsibilidade profissional e ambiental (Dias, 1999). Em decorrência, poderá ocorrer o estabelecimento de um espaço potencial ou terceira área de experiência, onde acontecem os fenômenos transicionais. Assim, é possível uma comunicação autêntica, um diálogo por meio da atividade lúdica, do brincar mútuo. Winnicott (1971/1984) referiu que o terapeuta que tem a capacidade de brincar consegue ao mesmo tempo em que se identifica com seu paciente, preservar sua identidade pessoal e atentar para os acontecimentos à luz da teoria.

De modo mais específico, a teoria winnicottiana compreende que um bom trabalho terapêutico perpassa a mesma qualidade subjetiva da relação mãe-bebê e, portanto, deverá estar presente na transferência e contratransferência das relações terapêuticas de cuidado. Por esse motivo, o setting terapêutico deve propiciar o mesmo holding que a mãe suficientemente boa oferece ao seu bebê. Ou seja, constância, previsibilidade e confiabilidade por meio do terapeuta que é capaz de ajustar-se às expectativas da criança propiciando o aparecimento do self verdadeiro. No que diz respeito ao handling ou o manejo adequado do terapeuta, essa conduta contribui para a emergência de uma comunição significativa com o paciente (Lins, 2006). Para tanto, é necessário que o profissional não “atropele” a brincadeira da criança com

interpretações prematuras e saiba ouvi-la, respeitando seu ritmo e suas características, assim como a experiência da dupla a cada momento. Dessa maneira, uma interpretação precoce, pode ser sentida pelo paciente como uma invasão ambiental, podendo esse submeter-se ou reagir à invasão.

Winnicott (1971/1984) destacou que no trabalho de CTs ele geralmente não realiza interpretações, mas quando o faz aguarda até que o aspecto essencial da comunicação da criança apareça.

Sempre que compreendemos profundamente um paciente e mostramos isso através de uma interpretação correta e oportuna, estamos, de fato, oferecendo um holding ao paciente e tomando parte de um relacionamento no qual o paciente está, em algum grau, regredido e dependente (Winnicott, 1972/1991, p. 215).

A partir de uma adaptação às necessidades da criança sem invadi-la, de um holding no ambiente terapêutico, sendo esse identificável como um ambiente facilitador, o resultado é a confiabilidade. Por meio de um ambiente confiável, a integração psíquica normal conservará a capacidade de regressar a estados de não-integração, que diz respeito a “um estado normal do bebê, que pode permanecer relaxado enquanto a mãe se encarrega da função de sustentação” (Abadi, 1998, p. 86). Deste modo, o paciente encontra-se menos defensivo podendo vir à tona o verdadeiro self. Por meio dessa comunicação não-verbal e indiferenciada, na qual o terapeuta passa a ser concebido como objeto subjetivo, há o alcance da integração de aspectos cindidos do paciente. A ocorrência dos processos integrativos propicia a ocorrência da experiência (principal intervenção nas CTs, sendo a comunicação verbal uma facilitadora do processo, portanto, interpretação é usada quando necessária), que por sua vez auxilia o indivíduo a se conhecer (Winnicott, 1962/1983; 1971/1984). A essência das CTs está na elaboração do material não defendido do paciente, inerente à natureza humana e que se mostra presente por meio da transferência desde as primeiras consultas. Então, a intenção das CTs é a busca da integração do paciente (na presença de terapeuta) de alguma dificuldade, sofrimento ou qualquer aspecto dissociado da personalidade.

Nesse sentido, tendo em vista a comunicação em nível pré-verbal que permeia a transferência e a contratransferência nos processo de CTs, Winnicott (1971/1984) referiu que essa é o ponto crucial da consulta e, ao mesmo tempo, o aspecto mais difícil de ser transmitido aos colegas que exercem a psicanálise. Portanto, cada encontro tem a sua singularidade, haja vista que cada terapeuta tem as suas limitações e capacidades. Assim, o autor relatou que outros resultados seriam obtidos se ao invés dele, como analista, estivesse presente outro psiquiatra.

As CTs são modalidades específicas de intervenção e ajuda a partir do ritmo e do manejo da temporalidade próprios de cada paciente que facilitam os processos integrativos e a

constituição do si-mesmo. De acordo com o enfoque winnicottiano, não se almeja a cura de quadros psicopatológicos, mas sim favorecer o acontecimento de experiências nas quais o paciente consegue dar um sentido único e verdadeiro a sua existência (Aiello-Vaisberg, 2004).

Cabe destacar que, na perspectiva winnicottiana, toda situação nas consultas deve ser compreendida levando-se em conta o contexto ambiental. Dessa maneira, Winnicott (1965/1994) questionou-se se o ambiente no qual a criança está inserida é capaz de favorecer os progressos alcançados no ambiente terapêutico.

Se a criança sai da consulta terapêutica e retorna para uma situação familiar ou social anormal, então não há provisão ambiental alguma da espécie necessária e que eu julgaria admissível. Confio em um ‘ambiente expectável médio’ para encontrar e utilizar as mudanças que ocorrem no menino ou na menina durante a entrevista, mudanças que indicam uma anulação da dificuldade no processo de desenvolvimento. De fato, a principal dificuldade na avaliação dos casos para essa espécie de trabalho é a de avaliar o meio ambiente imediato da criança (Winnicott, 1971/1984, p. 13).

De acordo com Winnicott (1956/2000b), por meio da inclusão dos pais no processo psicoterápico da criança, é possível a mobilização da reparação materna ou paterna e dos aspectos de autoconfiança, surtindo efeitos terapêuticos nos próprios pais. Tendo em vista que os pais revivem os mesmos estágios de desenvolvimento do filho, pode-se pensar que, a partir do contato terapêutico da criança com o profissional, aconteçam também modificações na dinâmica familiar. Deste modo, a utilização de testes psicológicos juntamente com a entrevista de avaliação dos pais torna-se fundamental para obter-se um panorama acerca de suas possibilidades de auxiliar terapeuticamente o filho. Assim, a sistematização de um tipo de CT com aplicação de testes projetivos na criança e nos pais, em um enfoque interventivo, preserva as vantagens do método winnicottiano tradicional e fornecer maior segurança no que se refere ao diagnóstico e prognóstico, implementando a qualidade dos encaminhamentos ulteriores, quando necessário (Barbieri, 2002).

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