• Nenhum resultado encontrado

A corporeidade do cantor na contemporaneidade

1. A PERFORMANCE MUSICAL E ASPECTOS CONTEMPORÂNEOS

1.2. Contribuições do Teatro

1.2.4. A corporeidade do cantor na contemporaneidade

Um importante ponto comum entre os métodos é a questão do desenvolvimento da técnica do canto associada ao trabalho corporal. Questões como exercícios de alongamento semelhante àqueles realizados antes da atividade física são mencionados como importantes aliados contra a tensão vocal e a tensão corporal, e assim, associados também ao

desenvolvimento adequado das capacidades expressivas. Sobre este ponto, foram dispostas a seguir citações que ilustram a importância do preparo do corpo, antes ou em conjunto com o preparo vocal.

Para Clark (2002) a força é um fator muito importante uma vez que é a partir da força dos músculos que se sustenta o diafragma. Porém, durante a execução desta força, os músculos que são contraídos podem produzir tensão, devido ao encurtamento da coluna vertebral. Por isso que preza para que os cantores assumam o controle do próprio corpo, como meio para aumentar a capacidade de se flexionarem e se alongarem. Com este domínio acredita-se que o cantor usará força com mais equilíbrio, flexibilidade e menos tensão. Sobre isso, Clark (2002) ressalta que:

Exercícios de alongamento, como aqueles feitos antes do exercício atlético, preparar nossos corpos para o movimento gracioso e coordenado. Eles trazem fôlego e energia em todas as nossas tarefas e fazem circular mais sangue para o cérebro. Mas o alongamento nem sempre é suficiente. Às vezes temos de ter flexibilidade para concentrar nossa energia, mantendo nosso corpo livre de tensão (CLARK, 2002).

Para Emmons e Thomas a questão da construção da performance a partir da integração dos aspectos musicais e cênicos é tão importante para o cantor quanto complexa, e por isso, acreditam que é necessário um treinamento físico e mental, de forma que corpo e mente não se separem durante a performance. A este respeito, relatam que:

Qualquer performance que alcança o auge resulta de fatores físicos, técnicos e mentais. Isto significa que o corpo e a cabeça não podem ser separado durante a performance. Na verdade, os aspectos físicos e técnicos são condições de performance de alto nível. Não há substituto para um completo domínio das habilidades técnicas e, mesmo nas artes, certo nível de bem estar físico. Quanto maior o seu nível de bem estar físico e seu domínio vocal, musical, lingüístico e habilidade dramáticas, mais controle você tem sobre sua performance (EMMONS e THOMAS, 1998, p. 335 “tradução nossa”) 8

O provável precursor de todas estas reflexões, Stanislavski, difundia veementemente o trabalho com exercícios corporais, e sobre isso, defendia que:

8

Any peak performance is an outcome of physical, technical, and mental factors. This means that the body and the mind cannot be separated in such a performance. In fact, the physical and technical aspects are conditions of high-level performance. There is no substitute for a complete mastery of the technical skills and, even in the arts, a certain level of physical well-being. The higher your level physical of physical well-being and your mastery of the vocal, musical, linguistic, and dramatic skills, the more control you have your performance (EMMONS & THOMAS, p. 335).

Sem exercício todos os músculos definham, e reavivando as suas funções, revigorando-os, chegamos a fazer novos movimentos, a experimentar novas sensações, a criar sensações sutis de ação e expressão. Os exercícios contribuem para tornar a nossa aparelhagem física mais móvel, flexível, expressiva e até mais sensível (STANISLAVSKI, 2013, p. 71).

Sobre o ponto de vista da expressão facial, Clark (2002), enfatiza que os olhos e o rosto são poderosos canais de energia e indicadores de uma emoção específica, e que quanto mais específica a expressão, mais o público receberá uma mensagem clara. Segundo o autor, a clareza é a chave para a comunicação; o rosto expressivo é um cara que está vivo com o pensamento, pois reflete a imaginação do cantor e convida o público a compartilhar esse momento.

Ainda para Clark, se o rosto não for expressivo o artista poderá sentir a emoção mais do que o público sentirá e, por isso, acredita que uma performance que gera emoção é muitas vezes produto de um rosto expressivo. Atenta para o fato de que o trabalho com emoções reais podem resultar em performances poderosas, mas podem levar a tensão física e vocal. Por isso, aposta na expressão facial, conforme elucida:

Um rosto expressivo pode servir como um catalisador para o público sentir a emoção, como também para os cantores. Por meio de uma expressão de raiva, sem realmente estar com raiva, o cantor pode sentir a emoção sem a tensão física. A expressão é controlada por uma máscara que pode ser colocada e retirada à vontade e não interfere com a técnica vocal (CLARK, 2002.)

Clark descreve as etapas de um exercício para desenvolver um rosto expressivo, que resume bem suas concepções sobre a expressão facial. Baseado na ária Deh vieni non tardar da Susanna da ópera Le Nozze de Figaro, disserta que “elementos importantes do rosto expressivo são os olhos e seu foco”,e em vista disso, o exercício é baseado no foco do olhar, conforme a tradução e transcrição abaixo.

Os olhos de um cantor podem se concentrar em outro cantor no palco, ou relembrar, revivendo alguma experiência anterior, ou ainda, com base na análise do que o texto descreve, como por exemplo, em Le Nozze di Figaro, de Mozart, momento em que Susanna canta o recitativo para a ária Deh vieni, non tardar.

A frase cantada é:

Giunse alfin il Momento che godrò senz'affanno in braccio tudo' mio ídolo. Na tradução para o português temos:

“Finalmente chega o momento, que virá sem preocupação nos braços de quem eu adoro”.

Clark dialoga que, olhando para a linha musical que sai este recitativo, Susanna fala uma parte para si mesma, a sotto você, que revela que ela sabe que Figaro está escondido por meio da seguinte frase: "Il Birbo è in Sentinella".

A partir de então o autor indica que neste momento há uma oportunidade de Susanna se concentrar na direção de uma amante de faz de conta de Figaro, como se estivesse em um ataque de ciúmes e que durante esse faz-de-conta para uma "amante", os interlúdios musicais dão à Susanna uma oportunidade para se concentrar novamente em Figaro apenas com os olhos, curiosa para saber sua reação, mesmo com a piada sobre ele.

Também indica outra oportunidade para uma mudança de foco no olhar, que é quando Susanna começa a descrever a natureza, estando Figaro escondido nos arbustos. Clark considera-o bastante propício para que ocorra uma mudança do estado de espírito de uma brincadeira superficial de Susanna para uma profunda apreciação da beleza de seus arredores e, por isso, é fundamental que Susanna realmente se concentre no foco do olhar e realmente olhe. Quando Susanna olha e realmente "vê" estas referências específicas a seu redor, há um estímulo da memória. Ela poderia ter passado o tempo neste jardim com Figaro? Esta é uma oportunidade para Susanna mudar o "jogo" e revelar seus verdadeiros sentimentos sobre Figaro. Este cenário é apenas um exemplo da importância do foco. Olhos que estão vivos com o pensamento e realmente vêem e não são fixos, sem foco, são convincentes para uma audiência.